Decreto polêmico

Política de participação social não ameaça sistema representativo

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1 de julho de 2014, 17h05

O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, tem sido extremamente polêmico desde sua publicação. Tendo sido correntes as críticas ao seu conteúdo e mais incomuns os elogios, o decreto foi acusado de ameaçar seriamente o regime representativo, de ter conteúdo ditatorial e de pretender instituir ilicitamente formas paralelas de poder na democracia brasileira.

Não apenas pelas reações que gerou, mas principalmente pela sua importância em um contexto histórico onde é cada vez mais exigida uma revitalização da democracia brasileira, tal norma exige uma análise jurídica cuidadosa. Assim, não se pretendeu aqui especular sobre as razões ou finalidades políticas dessa norma, mas apenas tratar tecnicamente do seu conteúdo e de algumas consequências que ele pode acarretar à realidade burocrática nacional. Dessa forma, mostra-se relevante uma análise que não seja sectária, principalmente porque questões associadas à democracia — como é o caso da participação — não podem ser associadas ou apropriadas por quaisquer partidos ou grupos, mas devem interessar indistintamente a todos os brasileiros.

Produzido a partir das atribuições presidenciais de regulamentação da execução das leis e de organização da atividade administrativa (artigo 84, IV e VI, “a” da Constituição), o decreto institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Pretende-se com a primeira estabelecer e fortalecer mecanismos associados à democracia participativa, enquanto o segundo cria todo um sistema coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República voltado ao fomento e ao estímulo da participação no âmbito da Administração Federal.

A política instituída pelo decreto é ousada. Ela é explícita ao objetivar “consolidar a participação social como método de governo” (art. 4º, I) e ao exigir ser considerada a participação da sociedade civil em todas as etapas das políticas públicas e no aprimoramento da gestão federal (artigo 1º, parágrafo único). Há um forte conteúdo programático que deixa explícita a intenção de os cidadãos da atuação administrativa, privilegiando espaços participativos tidos como instâncias democráticas de diálogo.

É possível que tal orientação tenha sido responsável por ter tornado o decreto tão polêmico. Tradicionalmente, a atividade administrativa é tida como uma atuação técnica, a ser isolada de influências externas para manter-se imparcial. Nesses termos, a legitimidade democrática da Administração estaria calcada principalmente nas leis (votadas por um parlamento eleito) que condicionam sua atuação e na sua direção máxima por dirigentes escolhidos pelo voto.

Um funcionamento diverso dos parâmetros burocráticos tradicionais, operantes em muitas democracias representativas, é algo que foge de perspectivas mais clássicas. Particularmente em um ambiente de descrença generalizada com o Poder Público e com o regime político vigente, podem ser geradas dúvidas quanto à possibilidade de ser ameaçado o sistema representativo, assim como a tecnicalidade e imparcialidade administrativa.

Embora ousado, todavia, o conteúdo do decreto não se mostra de forma alguma apto a afastar tais parâmetros de legitimidade democrática originados do sistema representativo: o administrador continuará adstrito ao princípio da legalidade, e a burocracia ainda será chefiada por representantes eleitos. Pelo contrário, aliás, a norma é explícita em estabelecer como diretriz a complementaridade entre mecanismos e instâncias democráticos diversos, no âmbito da democracia direta, indireta e participativa (artigo 3º, II).

Ademais, o texto da norma não autoriza em momento algum a substituição da atuação administrativa, principalmente de sua competência decisória e de outros de seus deveres legais, por quaisquer instâncias participativas. Não há, assim, qualquer ameaça ao sistema representativo, mas sim a exigência de sua conjugação às contribuições eventualmente ofertadas pela participação. Além disso, o Decreto também não tira da Administração a obrigação de atuar com tecnicalidade e imparcialidade. Não é estabelecida por ele qualquer forma de vinculação, obrigando o gestor público a atuar como quiserem os que participam; mas apenas estabelece a participação como um objetivo.

Não se observa, igualmente, que o decreto seja apto a suprimir quaisquer competências do Poder Legislativo. Ele mantém todas as suas prerrogativas asseguradas pela Constituição, e não corre o risco de ser substituído por qualquer instância participativa nos termos do diploma em exame.

Instrumento adequado
Pela importância de tal mudança de orientação, questiona-se também se tal política poderia vir a ser introduzida por decreto, ou seja, se não seria necessária lei para tanto. Tal crítica está relacionada inclusive à possibilidade mais ampla de ser instituída uma “política” por decreto, visto que diversas diretrizes nacionais desde a já antiga Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) até a recente Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12) vieram a receber tratamento legal.

Embora constitua questão tecnicamente polêmica e ainda pouco estudada, no caso do decreto parece não ser exigida a produção de lei em sentido formal. Por se tratar de norma que visa organizar a atuação administrativa já existente, além de não serem tolhidos quaisquer direitos, não se entende essencial a edição de lei. Como instrumento de gestão, no sentido de orientar o Poder Público na execução de suas atividades e ser alterado com facilidade, talvez a forma escolhida constitua o meio mais adequado. Aliás, cabe notar, também não há óbices jurídicos para que fosse editada Medida Provisória sobre o tema, embora o Planalto não tenha optado por tal via.

É da perspectiva da organização da atuação administrativa, afetando diversas atividades em curso já associadas à participação, que o decreto inclusive talvez se mostre mais interessante e que talvez contribua com sua perenidade. Além de serem propostas diretrizes e objetivos participativos, são definidos e delimitados vários instrumentos participativos cotidianamente manejados pela Administração brasileira. É conferido um tratamento regulamentar, portanto, a diversos institutos participativos consolidados muitas vezes na legislação e na prática burocrática.

Não deve haver dúvidas de que hoje a intervenção dos cidadãos na atuação administrativa constitui uma realidade, na prática e na legislação, em diversos âmbitos: na atuação das agências reguladoras, no urbanismo, na gestão da saúde e do saneamento, na preservação ambiental, no planejamento orçamentário e em muitos outros. Também não é novidade serem tratados por normas infralegais os institutos participativos; as agências reguladoras, por exemplo, possuem diversos instrumentos normativos (resoluções) para regular a participação nas políticas setoriais, o que não costuma ser questionado pelos juristas brasileiros, mas até mesmo incentivado. É o caso também da participação realizada na seara ambiental, também tratada por resoluções expedidas por órgãos ambientais, sendo algumas delas já aplicadas há mais de uma década, como é o caso da Resolução Conama 09/87, que trata de audiências públicas.

É importante esclarecer que, desde a redemocratização, independentemente da orientação partidária, houve uma grande expansão das instâncias participativas. Diante disso, o decreto exerce função importante ao definir instrumentos muitas vezes exigidos ou mencionados pela legislação, como as audiências públicas, as consultas públicas e as conferências mencionadas no Estatuto da Cidade.

Além de definir, ele também é relevante ao impor exigências quanto à utilização de alguns institutos, de forma a buscar uma ocorrência sadia da participação ao combater problemas já habitualmente criticados pelos estudiosos do tema. São exemplos a necessidade de rotatividade e diversidade dos componentes dos conselhos de políticas públicas (art. 10, III; V; e § 3º), dificultando a captura dessas instâncias por poucos indivíduos, assim como a obrigação de serem dadas respostas às propostas apresentadas em audiências e consultas públicas (art. 16, V; e 17, VI), contribuindo para que as contribuições da sociedade, sejam propriamente consideradas pelo Poder Público.

Conforme se nota, uma análise mais detida do decreto faz com que muitas das polêmicas originadas pela sua edição pareçam não estar fundadas exatamente no seu texto, mas sim na ideia de democracia participativa que ele veicula. O decreto, como texto normativo, é apenas a positivação e formalização dessa proposta democrática na esfera administrativa.

Se tal mudança de orientação pode vir a não agradar, ela não chega a, abstratamente, ameaçar de forma alguma o substrato democrático de base representativa da Administração brasileira, nem o seu dever de atuar amparada na legalidade, de ser imparcial ou de agir com tecnicalidade. Ademais, não se entende presentes sérios problemas formais com a edição da norma, principalmente pelo conteúdo do decreto ser claro ao efetivamente pretender organizar a forma pela qual o Poder Público exerce suas atribuições. É nesse sentido, aliás, que dispõe sobre diversas instâncias participativas consolidadas na legislação e já usadas habitualmente pelo Poder Público, além de trazer inovações que podem levar ao seu aprimoramento.

O decreto, como todo texto normativo, tem seus méritos e deméritos, que não pretendem ser minuciados neste breve texto. Ocorre, todavia, que muitas de suas análises iniciais parecem não ter estado sempre atentas ao seu conteúdo e às consequências que possam com maior probabilidade decorrer de sua edição. Diante das expectativas crescentes dos brasileiros quanto ao Poder Público e à democracia, embora o tom crítico seja fundamental, a razoabilidade se mostra essencial. É para uma maior razoabilidade no debate sobre ele, por meio de sua análise técnica, que se busca contribuir com este texto.

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