Livro Aberto

Os livros da vida do criminalista Pierpaolo Bottini

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29 de janeiro de 2014, 11h49

*Depoimento concedido a Livia Scocuglia.

Spacca
Todo domingo meu pai chegava em casa com gibis do Asterix. Eu tinha a coleção inteira. Essa foi minha estreia na leitura. Mesmo não entendendo várias pegadinhas  — já que eu tinha oito anos de idade — achava as histórias divertidas.

Um pouco mais velho eu comecei a ler muitos livros. Engraçado que eu sempre gostei muito da leitura criminal, como as histórias de Sherlock Holmes, do Arthur Ignatius Conan Doyle, e da obra Ladrão de Casaca (Arsène Lupin), do escritor francês Maurice Leblanc. Aquele ladrão elegante era bem interessante. O meu gosto por essa literatura desde a pré-adolescência deve ter alguma relação com a minha escolha pela carreira na advocacia criminal…

Muitos desses livros eu encontrava em casa, mas outros muitos eu comprava em sebo. O meu preferido era um que tinha na rua Joaquim Floriano [no Itaim Bibi, em São Paulo]. Meu pai me dava a mesada e me deixava no sebo. Eu achava o máximo ficar olhando as prateleiras e descobrindo livros novos. Além da coleção do Arsène Lupin, eu comprei todos os livros do Tarzan. E tenho as duas até hoje.

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Recentemente, voltei a ler alguns livros das minhas coleções antigas, só por curiosidade. O Arsène Lupin hoje é muito mais óbvio do que era na época em que eu li da primeira vez, mas ainda assim é um livro muito interessante. As histórias do Asterix, por exemplo, hoje eu faço outra leitura e “pego” aquelas sacadinhas que eu nunca enxerguei na infância. Lembro de um gibi em que os Asterix ajudaram os ingleses. Na volta os ingleses falaram: “Muito obrigado, esperamos um dia poder retribuir”. E eles respondem: “Ah, pode deixar que talvez um dia vocês retribuam”. E eles ajudam na Segunda Guerra.

Aliás, história sempre foi do meu gosto, principalmente sobre a Segunda Guerra. Na adolescência li o Enterprise, o Sobrevivente do Pacífico, do Georges Blond. O livro conta a história do único porta-aviões americano que sobreviveu à Segunda Guerra. O Enterprise participou de todas as grandes batalhas aeronavais do Pacífico, só ficou de fora da batalha do mar de Coral.

Eu também gostava muito de contos. Achava fantástico o livro Urupês, do Monteiro Lobato. O meu conto preferido desse livro, Os faroleiros, conta a história de Eduardo, que viveu em um farol por alguns dias e conheceu os faroleiros Gerebita e Cabrea. Após Gerebita matar Cabrea, o homem sai do farol e descobre que os dois tinham uma rixa porque Cabrea fugiu com a mulher de Gerebita.

Nessa época também li as obras de Edgar Allan Poe, do movimento romântico americano. Nunca fui muito envolvido pelos clássicos brasileiros. Gostei do Primo Basílio, mas não fui surpreendido. Talvez pela obrigação de ler na escola ou se eu os li na época errada. Por exemplo, O Cortiço eu li na adolescência e não gostei. Mas quando fiz a leitura mais velho, adorei.

Sempre li muitos livros, mas nunca nada próximo do Direito. Nem mais ou menos. Eu não pensava em ser advogado durante a adolescência. Só decidi minha profissão no terceiro colegial. Em época de vestibular eu foquei nos livros que eram pedidos nas provas e em poesia. Nessa época conheci a poesia de Manuel Bandeira e Clarice Lispector e fiquei encantado. Posso dizer que a leitura de obrigação foi muito prazerosa.

Meus preferidos são Libertinagem, do Manuel Bandeira, e A Hora da Estrela, da Lispector. E esse gosto não parou quando entrei na Faculdade de Direito da USP. No Largo São Francisco comecei a ler as poesias de Castro Alves e de Fagundes Varella. A partir daí eu realmente comecei a ler a obra completa de autores como Vinícius de Moraes. A gente fala muito das poesias do final da carreira dele, mas ele tem poesias do começo que são fantásticas e muito bem elaboradas, inclusive mais do que as do final de sua carreira.

A Quietação do Vinícius é uma das minhas preferidas. Ela diz “como desesperados de melancolia/ Uivam na estrada cães cheios de lua". E depois diz “eu penso em ti.  Minha boca cicia longamente o teu nome…” é tão bonita.  Ele não era um “poetinha”, ele era algo mais. O começo do Vinícius era algo mais sentido e não comercial.

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Conheci o Vinícius com o Antologia Poética. Eu achei o máximo aquele livro enorme. Recebi a poesia completa dele como prêmio de um concurso de redação do colégio Dante Alighieri — onde estudei da primeira série até o terceiro colegial e formei em 1993.

Do Manuel Bandeira eu gosto muito da Poética. “Estou farto do lirismo comedido. Do lirismo bem comportado”. Essa é muito conhecida, mas eu acho o máximo. Ele é ainda um dos meus autores preferidos, junto com João Cabral de Melo Neto e Vinícius de Moraes.

Na faculdade li os livros que marcaram minha vida. Por exemplo, o livro Chapadão do Bugre, do Mario Palmério, é um dos melhores livros que já li. É uma história regional e o autor era um pouco do grupo do Fernando Sabino e Otto Lara Resende. O livro foi indicação do meu médico e realmente é uma leitura que vale a pena. É brilhante na forma e conteúdo. Tanto é que o único livro que o superou foi o Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Esse realmente é o melhor livro que já li na minha vida.

Tomei coragem para ler o Grande Sertão: Veredas só em 2010. Eu tinha uma relação de respeito com o livro e não achava que estava preparado para ler. A obra me intimidava. Eu li outras coisas do Guimarães, como Sagarana e os contos, e fui chegando perto. Queria aproveitar ao máximo. Essa literatura regional sempre foi muito interessante e os autores muito fortes e interessantes.

Nessa fase de faculdade comecei com a leitura ativista. Tive o primeiro contato com a leitura política e li tudo o que achei de Karl Marx, Antonio Gramsci e Rosa Luxemburgo. Nessa época li Dez dias que abalaram o mundo, do John Reed, e achei a obra impressionante. Era aquela leitura engajada na faculdade que eu lia junto com os livros de Direito.

A escolha pelo Direito Penal veio nessa época. As aulas do professor Antonio Luís Chaves Camargo me influenciaram. As aulas eram fantásticas e ele me indicou uma série de livros que me despertaram para a minha especialização como o Problemas Fundamentais de Direito Penal, do Claus Roxin. É um livro pequeno e que joga uma série de questões que me instigaram. Nessa época li também Crime e Castigo. A partir daí, comecei toda a leitura na área Penal.

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Mais para o final da faculdade comecei a ler os clássicos do Brasil. Comecei pelo Os donos do poder, do Raymundo Faoro, que aí me pegou. Depois que eu li esse livro, comecei a perceber que não dá para exercer nenhuma atividade no Brasil sem ter lido esse livro. Sou professor, e no primeiro dia de aula eu passo para os alunos a biografia básica do curso de Penal e dou a bibliografia básica do curso de Direito.

São quatro os livros obrigatórios para a vida: Os donos do poder, Casa Grande e Senzala, do Gilberto Freyre, O Povo Brasileiro, do Darcy Ribeiro, e o Formação do Brasil Contemporâneo, do Caio Prado Junior. Você pode concordar ou discordar, mas tem que entender o Brasil.

Se você não conhece, nas discussões, você acaba importando assuntos e discutindo coisas que não necessariamente têm relação com os nossos problemas. Então a gente precisa conhecer. Li esses quatro livros por indicação do professor Fábio Konder Comparato.

Quando sai da faculdade, eu e o Igor Sant´Anna Tamasauskas — meu sócio ainda hoje — abrimos um escritório de fundo de quintal no Brooklin. Ao mesmo tempo, eu trabalhava no gabinete de uma deputada estadual e dava aula em um curso preparatório para o exame da Ordem dos Advogados do Brasil, porque eu precisava ganhar algum dinheiro. Essa época foi muito corrida.

Depois, mudei para Brasília, para ser assessor na Secretaria de Reforma do Judiciário. Foi quando li Fernando Sabino, no livro A Cidade Vazia. Demorei para acostumar com Brasília. No começo morava em um hotel, o que era um pouco solitário. Não digo que a cidade era fria, porque fui para lá no governo Lula, então era uma confusão. Embora tivesse um monte de gente, morar em um hotel às vezes me dava a sensação de solidão. Eu me identificava com o livro do Sabino, ele resmungava de Nova York e eu de Brasília.

Quando teve a crise do mensalão, o advogado Sérgio Renault — que era o secretário da Reforma do Judiciário — passou a ocupar a subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil. E o Márcio Thomaz Bastos me chamou para assumir o cargo. Nessa época, além do Diário Oficial, li muito Claus Roxin e Günther Jakobs. Fiquei em Brasília até 2007 e voltei para São Paulo.

Senti muita falta de ler livros de lógica na faculdade. Só fui despertar para isso na pós-graduação, que também fiz na USP. Nunca vou esquecer do livro Tratado da Consequência — Curso de Lógica Formal, do Goffredo Telles Jr. Ganhei o livro do próprio autor, quando eu contei que tinha sido convidado a dar aulas de Direito Penal e estava nervoso. O professor sorriu e disse que o segredo de uma boa aula é a exposição lógica das ideias, e para isso, nada melhor do que uma leitura sobre o tema.

A lógica é tão importante para organizar o seu raciocínio e me abriu a cabeça de um jeito impressionante. Até então não tinha lido nada de lógica. Não tive orientação. E depois li o Lógica: Pensamento Formal e Argumentação, do Alaôr Caffé Alves, fazendo todas as críticas a tudo isso. Hoje quando eu vejo um processo consigo identificar o argumento “A” e então já sei que devo ir para o “não A”.

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Outro livro que me impressionou nessa época foi o Sociedade de Risco, do Ulrich Beck. Eu não concordo 100% com esse livro, mas ele foi relevante para a organização do meu raciocínio. Como eu trabalhava muito com crimes de perigo ou com risco, o livro Desafios aos Deuses — a Fascinante História do Risco, do Peter Bernstein, também me ajudou muito. O livro conta a história do risco da humanidade desde a pré-história até as primeiras navegações e fala dos dados da sociedade de risco até hoje. Esses dois livros de lógica me ajudam muito para fazer a sustentação oral.

Na Ação Penal 470, o processo do mensalão, por exemplo, eu tinha uma hora para encaixar tudo que precisava falar. O raciocínio lógico foi crucial nesse processo. Eu achei os pontos frágeis e precisava enfrentá-los. O resto é resto. Foi assim que fui organizando meu raciocínio. Com a lógica, você organiza o raciocínio e a vida também. Não digo que você tenha que ser quadrado, mas tendo uma estrutura e um método você pode fazer o que quiser.

Recentemente li duas biografias. O Getúlio Vargas — Dos anos de formação à conquista do poder, do Lira Neto, é um daqueles livros que traz um dos poucos personagens que você tem o sabor dos detalhes, já que Getúlio tinha um diário. Li também a biografia do músico e ativista político Fela Kuti. As duas me marcaram muito. Além desses, li o livro Beleza e Tristeza, do Yasunari Kawabata, que é um autor muito bom e o livro é sutil e muito sensível.

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Continuo indo em sebos. Em regra vou para olhar o que tem lá. Principalmente quando estou fora do país gosto de comprar algum livro sobre a história do lugar. Na Espanha comprei o livro A Outra História da Espanha. Sempre me interessei muito por livro de história. Mas história da história como história da arte e história da música. O livro Feitiço Decente: transformações do samba do Rio de Janeiro, do Carlos Sandroni, por exemplo, é muito interessante e conta a história de como o samba virou algo decente.

Eu tenho uma prateleira de livros urgentes para ler. Se ela cair, derruba o prédio. O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo, por exemplo, comprei no sebo a coleção inteira. Li o Ana Terra até Um Certo Capitão Rodrigo, e parei. Tenho todos os outros para ler ainda. Eles estão na minha mira.

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