Dispositivo ineficaz

Suspensão de direito político por improbidade é inconstitucional

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23 de janeiro de 2014, 16h33

A militância na advocacia contenciosa é atividade que exige constante estudo crítico da literatura especializada e dos precedentes jurisprudenciais, de forma a propiciar o necessário arsenal de compreensão das estruturas jurídicas que ordenam a vida em sociedade, bem como a dinâmica de sua aplicação diuturnamente realizada nos fóruns e Tribunais.

Para além do estudo das questões de trato diário, ou seja, a seleção de fontes e argumentos que apóiem a defesa judicial do caso concreto, por vezes se faz necessário elevar a vista para questões relacionadas às próprias relações internas das normas jurídicas, no imenso emaranhado de normas editadas nos mais diversos níveis de hierarquia do ordenamento, combatendo a tentação, assaz recorrente em manifestações judiciais, de buscar interpretar a Constituição a partir da lei, ou pior, através de regulamentação conferida por decreto ou portaria.

Pois bem.

Acerca dos atos de improbidade, importa recordar que o legislador constituinte previu pena de suspensão dos direitos políticos em dois momentos do texto: i) o artigo 15, inciso IV admite excepcional suspensão temporária dos direitos políticos em virtude de improbidade administrativa, com expressa remissão ao outro dispositivo do ii) artigo 37, §4ª que arrola as penas aplicáveis, reafirmando a possibilidade de cominação legal da indicada suspensão.

Em observância desse imperativo constitucional, sobreveio legislação específica (Lei 8.249/1992) destinada a regular as hipóteses (tipos legais), espécies e graduação das penas, processo e procedimento, dando os contornos necessários à sua aplicação. Assim, coube ao artifo 12, em seus incisos I, II e III da lei estabelecer a pena de suspensão dos direitos políticos em quantum variável condicionado à tipologia legal do ato ímprobo e à gravidade apontada na mesma lei, segundo se cuide de infração aos seus artigos 9º, 10º e 11.

Outra premissa a ser firmado sem dificuldade é a de que a improbidade administrativa está sujeita ao regime jurídico de sancionamento cível, sendo também cível a natureza da correlata ação judicial, como reconhecido em reiteradas ocasiões pelo Supremo Tribunal Federal, com destaque para o julgamento da ADI 2.797/DF, onde reconhecida a inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal (acrescido pela Lei 10.628/02).

Ocorre, todavia, que a reconhecida natureza cível das ações de improbidade é absolutamente incompatível com a fixação da referida pena, segundo normas constantes da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), pactuada em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e aprovada no Brasil através do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.

A referida Convenção Americana de Direitos Humanos assegura direitos políticos de participação ativa e passiva nos pleitos eleitorais, mais especificamente nos ditames do seu artigo 23, assim redigido: “Artigo 23. Direitos políticos. 1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: a. de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; b. de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e c. de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país. 2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal” (grifo nosso).

Como se verifica dessa importante limitação, os Estados convenentes consentiram em garantir os direitos políticos de seus cidadãos, permitindo somente as restrições relativas às matérias contidas na própria ressalva e, no que tange às demandas judiciais, restritas àquelas prolatadas em sede de condenação criminal decorrente de regular processo de natureza penal.

Acreditamos que tal disposição deva ser vista pela perspectiva do artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição Federal (acrescentado pela EC 45/2004), que determina que: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Assim, ressoa evidente que as disposições da referida Convenção Internacional passaram a integrar — ao menos a partir da edição da Emenda Constitucional 45 de 2004, o denominado Bloco da Constitucionalidade do ordenamento brasileiro, de sorte que, por exata incongruência, não mais se admite a suspensão de direitos políticos em razão de condenações por improbidade administrativa por não configurar, na forma de entendimento consagrado, condenação de cunho criminal.

Não se desconhece o dissenso doutrinário existente sobre a posição hierárquica das normas dos tratados e convenções internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, inventariando-se quatro distintas correntes que classificam sua hierarquia como: i) supraconstitucional; ii) constitucional; iii) infraconstitucional, porém supralegal; ou iv) infraconstitucional, com hierarquia de lei federal (legalidade).

Sobre o tema, o Excelso Pretório adotou posição de que tais normas ingressariam no ordenamento pátrio com o patamar de supralegalidade, rompendo a ligação porventura existente entre a disposição constitucional e a legislação federal, de acordo com a compreensão sufragada no julgamento do RE 466.343/SP pela Corte Suprema.

Relembre-se que o precedente adotado como paradigma cuidava da (in)eficácia da prisão do depositário infiel — admitida pelo artigo 5º, inciso LXVII da Carta Federal e na legislação federal — artigo 1287 do CC/1916, artigo 652 CC/2002, e DL 911/1969) — porém não excepcionada à vedação de aprisionamento civil na referida Convenção Americana dos Direitos Humanos.

No julgamento do referido RE 466.343/SP, prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes, cuja transcrição dos principais excertos, pede-se vênia para transcrever, in litteris:

“Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969.

Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/02), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.

Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.” (grifos nossos)

O mesmo procedimento hermenêutico adotado no célebre precedente ganha lugar na hipótese presente, pois ainda que se aceite a supralegalidade da disposição internacional que limita a suspensão dos direitos políticos às condenações criminais, é de rigor apurar o efeito paralisante dessa Convenção em relação à legislação infraconstitucional, especificamente, os incisos I, II e III do artigo 12 da Lei 8.429/1992, na parte em que dispõem acerca dessa pena.

A contrariedade dos dispositivos constitucionais resta flagrante diante dos termos do artigo 23.2 da CADH que somente admite a suspensão dos direitos políticos como decorrência de condenação criminal, portanto, de índole processual penal o que, declaradamente, não corrobora a natureza da improbidade administrativa.

Ocorre que, cuidando-se de tratado sobre direitos fundamentais, como sói ocorrer na hipótese, é hora de avançar para reconhecer o ingresso das suas normas no patamar materialmente e formalmente constitucional.

Tem-se, por derivação lógica e necessária, que o artigo 23.2 da CADH revogou, por contrariedade direta, as disposições constantes do artigo 15, inciso V e 37, parágrafo 4º da Constituição Federal.

Por essas razões, temos sustentado a ineficácia (por inconstitucionalidade ou pela supralegalidade) das disposições legais que prevêem a (inadmitida) suspensão de direitos políticos, especialmente, os ditamos dos incisos I, II e III do artigo 12 da Lei 8.429/1992, que deverá ser analisada, e eventualmente, reconhecida de forma incidental nas inúmeras demandas atualmente correntes no Judiciário.

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