Sistema financeiro

Quebra de sigilo não pode sacrificar direitos constitucionais

Autores

22 de janeiro de 2014, 8h30

Em se tratando de crimes contra o sistema financeiro, é usual que a notitia criminis seja oriunda de comunicação feita pelo Banco Central do Brasil (Bacen), tendo por fundamento o art. 28 da Lei 7.492/1.986[1] ou o art. 1º, § 3º, IV, da Lei 105/2001[2]. Ocorre que a referida prática do Bacen de, ao noticiar o suposto fato, remeter outras informações bancárias ao Parquet ou à polícia, vem tendo sua constitucionalidade questionada. É o que se aborda no presente artigo.

O tema é de relevância doutrinária e jurisprudencial. Não se quer marcar passo e repisar a clássica discussão sobre a imprestabilidade de provas ilícitas, mas impende assinalar que, em se reconhecendo a inconstitucionalidade por violação da cláusula de reserva jurisdicional do dispositivo da Lei 7.492/1.986, que versa sobre a remessa de dados bancários de indivíduos pelo Bacen ao órgão ministerial, é forçosa a conseguinte decretação da inservibilidade dessas provas e, a depender do caso, da impossibilidade da persecução penal.

Outrossim, a temática tem profundas repercussões na práxis forense, possuindo ramificações para além da matéria penal, atingindo igualmente a seara tributária e repercutindo na existência ou não de permissivo de acesso à informações bancárias dos cidadãos e seu intercâmbio pelos variados órgãos (como Bacen, Coaf, Parquet e Receita Federal). Ao texto!

Hermenêutica jurídico-constitucional
Em um Estado de Direito, consagra-se a primazia da Constituição e inscrevem-se nesse documento solene as disposições que servirão de alicerce e de fundamento de validade das demais normas. Tem-se, aí, a Lei Fundamental, critério de validade das demais disposições legislativas (KELSEN, 1998). Assim, toda outra norma – em tal escalonamento – deverá auferir sua capacidade de existência a partir do cotejo com a Carta Política. Evitando-se antinomias, tem-se como metarregras interpretativas o princípio da hierarquia, da unidade e o da não-contradição (BOBBIO, 1995; DINIZ, 1998), que estabelecem a coerência ao sistema normativo, expurgando-o de preceitos colidentes.

Além desses postulados hermenêuticos, registre-se a cláusula de interpretação estrita (de normas penais, tributárias), constando, por força do princípio da estrita legalidade – da interdição de interpretação extensiva de norma incriminadora in mallan partem – e, em sentido adverso, da aplicabilidade de interpretação ampliativa (de normas definidoras de direitos, de garantias e de liberdades) – dispondo, nesse caso, da primazia da regra mais favorável à proteção do indivíduo[3] (LARENZ, 1997).

Em síntese, flertando com a obviedade para fins de clareza, enquanto regras fundamentais da hermenêutica jurídica, há que sopesar-se a constitucionalidade de qualquer norma (em termos de adequação e cronologia) e, em caso de normas de natureza penal, aplicar-se, ademais, o gravoso óbice às interpretações que sejam extensivas.

Com essas noções em mente, passamos a apreciar os demais pontos.

Sigilo bancário e cláusula de reserva jurisdicional
O animus/jus puniendi encontra lindes de difícil superação em um Estado Constitucional. A seleta doutrina de Direitos Fundamentais faz ressalvas aos procedimentos investigatórios e apuratórios:

O dever de investigar com ética significa, ainda, que algumas medidas investigatórias que impliquem em restrições a relevantes valores constitucionais sejam realizadas somente após apreciação judicial por autoridade judiciária competente. É a chamada cláusula da reserva de jurisdição (MARMELSTEIN, 2013, p. 167).

Daí, do dever ético-constitucional de cumprir direitos e observar garantias, decorre a cláusula de reserva de jurisdição, impondo que certos direitos fundamentais (à privacidade e intimidade, inviolabilidade do lar, comunicações) só podem ser afastados por meio de decisão judicial devidamente fundamentada. A supressão – sempre temporária – de tais direitos, como com a determinação de escutas telefônicas, de quebra de sigilo fiscal ou bancário[4], por exemplo, por caracterizarem devassa à intimidade, só podem ser efetivados a partir da autorização judicial.

No mesmo direcionamento, Alexandre de Moraes, em lições de Direito Constitucional, apresenta a exceção da medida judicial (e sempre judicial) de quebra do sigilo:

a quebra do sigilo bancário e fiscal só deve ser decretada, e sempre em caráter de absoluta excepcionalidade, quando existentes fundados elementos de suspeita que se apoiem em indícios idôneos, reveladores de possível autoria de prática ilícita por parte daquele que sofre a investigação; (MORAES, 2005, fl. 61).

Ter-se-ia caso de direitos de primeira geração, um típico direito de defesa do cidadão contra o Estado. Nesse sentido, configura-se como suma limitação ao poder de persecução penal, submetendo, dentre outros, à cláusula de reserva judicial. Um dos casos que aportou no STJ, encontrou tal entrave. In verbis:

1. Promotor de Justiça pode requisitar informações e documentos às instituições financeiras destinadas a instruir inquérito policial, ressalvadas as hipóteses de sigilo. (STJ – RHC: 1290 MG 1991/0012059-6, Relator: Ministro JESUS COSTA LIMA, Data de Julgamento: 16/09/1991, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 21.10.1991 p. 14749 RSTJ vol. 36 p. 113).

Se o Parquet, a quem compete à regência da ação criminal e da persecução penal, não pode promover a violação do sigilo fiscal, inobservando a cláusula de reserva jurisdicional, menos ainda poderia o Banco Central do Brasil, como delineiam precedentes judiciais[5], tanto, mas Cortes Federais como no STJ[6], mormente em matéria penal e tributária[7]. Mencione-se que esses precedentes vêm sendo reiterados pela própria Corte Constitucional[8]. Em arremate, sobre a inexistência de poderes de “quebra de sigilo” pelo Parquet, o que caracterizaria inobservância da cláusula de reserva judicial, o preclaro desembargador Guilherme de Souza Nucci, do Tribunal de Justiça de São Paulo, apostilou sobre a temática:

Requisição do MP e sigilo das operações financeiras: Parece-nos que o artigo precisa interpretado à luz do atual posicionamento predominante da jurisprudência. A operação financeira é de caráter sigiloso, mas essa situação não detém o Ministério Público de investigar as atividades das instituições financeiras ou de seus controladores e administradores. Porém, deve-se respeitar o direito à intimidade, garantindo-se o sigilo bancário e fiscal de pessoas físicas (diretores, gerentes e outros), em face do disposto no art. 5º, X, da CF. Logo, para quebrá-los necessita o Procurador da República de ordem judicial, a ser buscada no juízo federal competente (NUCCI, 2009, p. 1120).

Em atual e ainda inconcluso debate, o Supremo Tribunal aprecia as questões aqui em comento (STF – HC 99223 PR; informativos STF nº 687 e 689). Mas o teor do voto já publicado no informativo nº 689[9], o relator Ministro Marco Aurélio direciona pela vedação à quebra de sigilo sem autorização judicial, enquanto outros julgados vêm estendendo essa lógica aos demais casos[10].

Sem advogar uma constante inovação legislativa ou hipertrofias normativas, é preciso ter no horizonte que a Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro é do ano de 1986, completando quase 30 anos e que, nesse ínterim, foi atravessada por um marco político-constitucional diferenciado daquele que servira de moldura à lei.

Diante dessa dinâmica societal e da promulgação da Carta Política, de matiz democrático-garantista, e sabedores de que não há lei inflexível e nem dotada de validade universal e atemporal, como ensinou Maximiliano (“A palavra, quer considerada isoladamente, quer em combinação com outra para formar a norma jurídica, ostenta apenas rigidez ilusória, exterior. Por sua natureza elástica e dúctil, varia de significação com o transcorrer do tempo e a marcha da civilização”, 2009, p. 13) e tornam-se imperativas novas ponderações sobre os estatutos do Direito Penal Econômico.

Aqui, insiste-se na reavaliação da contradição entre as necessidades de coibir as práticas ilícitas e danosas à higidez do sistema financeiro, ao tempo em que se observa e dá cumprimento aos os mandamentos constitucionais, que sagram o direito fundamental ao sigilo bancário.

Portanto, ainda há que se encontrar o ponto de equilíbrio entre as necessidades de regulação para o Sistema Financeiro nacional em matéria de Direito Penal e efetivar as garantias processuais, possibilitando o desenvolvimento econômico, sem que isso importe em inconstitucional sacrifício de direitos, como no caso de quebra de sigilo bancário sem a observância da restritiva cláusula de reserva judicial.


[1] Lei 7.492/1.986, Art. 28 – Quando, no exercício de suas atribuições legais, o Banco Central do Brasil ou a Comissão de Valores Mobiliários – CVM verificar a ocorrência de crime previsto nesta lei, disso deverá informar ao Ministério Público Federal, enviando-lhe os documentos necessários à comprovação do fato.

[2] LC 105/2.001, Art, 1º, § 3º – Não constitui violação do dever de sigilo: IV – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa;

[3] Sobre essa questão, é merecedor de realce o voto que segue: “Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. (…)” (HC 91.361, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 6-2-2009.) (g. n.).

[4] O direito ao sigilo de dados e de informações, mormente bancárias – tema que se concentra no atual trabalho – integra o próprio direito à intimidade e a vida privada, como já asseverou a Corte Constitucional (STF, HC 87.654, Min. Ellen Gracie, julg. 07/03/2006, DJ de 20/04/2006 “O chamado sigilo fiscal nada mais é que um desdobramento do direito à intimidade e à vida privada”).

[5] TRF-3: HC 5666 SP 2008.03.00.005666.

[6] (…) 2. Não se deve confundir o poder de fiscalização atribuído ao Bacen com o poder de violar o sigilo bancário, que é norma de ordem pública. 3. Agravo Regimental improvido. (STJ, AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 325.997 – DF 2001⁄0070875-1, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 23/03/2004, T2 – SEGUNDA TURMA)

[7] (…) 2. O Ministério Público não tem legitimidade para proceder a quebra de sigilo bancário e fiscal sem autorização judicial. Precedente desta Corte. 3. Apelação desprovida. (TRF-1 – AC: 53902 MG 2003.38.00.053902-2, Relator: JUIZ FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA, Data de Julgamento: 23/05/2013, 5ª TURMA SUPLEMENTAR, Data de Publicação: e-DJF1 p.174 de 06/06/2013).

[8] I. – A norma inscrita no inc. VIII, do art. 129, da C.F., não autoriza ao Ministério Público, sem a interferência da autoridade judiciária, quebrar o sigilo bancário de alguém. Se se tem presente que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade, que a C.F. consagra, art. 5º, X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa. II. – R.E. não conhecido (STF – RE: 215301 CE , Relator: CARLOS VELLOSO, Data de Julgamento: 12/04/1999, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 28-05-1999 PP-00024 EMENT VOL-01952-07 PP-01303 RTJ VOL-00169-02 PP-00700).

[9] Este Habeas surge como substitutivo do recurso ordinário constitucional, mostrando-se inadequado. (…) No mais, ao deferir a medida acauteladora, fiz ver: 2. Se, de um lado, a notícia da prática de crime é dever de todo cidadão e, com maior base, de entidade como o Banco Central, de outro, o afastamento do sigilo de dados, consoante disposto no artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal, somente se faz possível mediante ato de órgão judicial. Está-se diante de tema de grande importância considerada a ordem jurídica no que as Leis nº 4.729/65, 6.385/76 e 7.492/86 contêm preceitos abrangentes a versarem o envio de elementos ao Ministério Público. Em jogo está o primado do Judiciário presente a garantia constitucional revelada pelo artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal: XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (…) Em síntese, o Banco Central colocou em segundo plano a reserva do Judiciário prevista na Carta da República. Sem determinação de órgão judicial, implementou a quebra do sigilo bancário de cidadãos. A partir desse fenômeno é que nasceu a ação penal. Para declarar insubsistente o processo que a revela, concedo a ordem de ofício (g. n.). (STF – HC: 99223 PR, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 26/06/2009, Data de Publicação: DJe-145 DIVULG 03/08/2009 PUBLIC 04/08/2009).

[10] Ver, por exemplo, no tocante ao uso de informações do Coaf: STJ, HC Nº 191.378 – DF (2010/0216887-1), Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Data de Julgamento: 15/09/2011, T6 – 6ª Turma.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!