Máquina de achaque

Certificado de quitação do ISS-Obra não tem base legal

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19 de janeiro de 2014, 7h45

Passado o impacto do estrepitoso escândalo de mais uma máfia paulistana, que veio à tona há algumas semanas, e colhidos os primeiros frutos midiáticos e políticos, é importante jogarmos um pouco de luz técnica nesse trevoso assunto, para que aqueles menos afeitos ao setor de construção e os meandros tributários possam receber um mínimo de verdades nos muitos temas que o envolvem.

Falar de impostos sempre traz um frio na espinha, mas podem ficar tranquilos, que pouco será tratado sobre tributos efetivamente neste artigo.

Importante começarmos por um pano rápido histórico para que se possa compreender a origem da questão. Os serviços de construção civil são, certamente, um dos tipos de serviços mais antigos que se tem conhecimento e também um dos setores mais relevantes em termos de dimensão econômica, merecendo naturalmente grande atenção das prefeituras, a quem cabe a tributação desta atividade, pelo chamado ISS — Imposto Sobre Serviços.

Nos idos de 1966, antes mesmo do surgimento do CTN — Código Tributário Nacional (que é a norma complementar que, em grande parte, ainda traz as regras gerais tributárias em âmbito nacional desde 1968) e, naturalmente, muito antes da Constituição Federal de 1988, a municipalidade paulistana estabeleceu uma pauta fiscal mínima para fins de valoração dos serviços para a construção civil. Esta forma anormal de quantificação da base de cálculo do tributo, já largamente refutada por todos os tribunais nacionais, mesmo que aceitável à época, nunca teve base legal consistente, exceto como mecanismo excepcional de arbitramento, unicamente para as situações de falta de documentação, mas jamais fazendo sentido em situações regulares no Estado de direito.

Desde então e por muitos anos, todavia, pouca relevância teve tal situação, seja porque, na prática, não trazia grandes impactos financeiros, já que a fiscalização utilizava-se de critérios objetivos, acatando com normalidade as deduções aplicáveis, seja pelo fato de que efetivamente grassava um nível tal de informalidade no setor, fazendo com que a grande maioria dos contribuintes não tivesse interesse ou condição de discutir, sendo-lhes até uma facilidade simplesmente calcular pela pauta.

O impacto da pauta se resumia, neste cenário, à quantificação do ISS devido pelas construtoras na prestação de serviços, sendo pacificamente aceitas as deduções dos materiais aplicados à obra e todos os demais serviços atrelados ao desenvolvimento natural de uma obra, estes prestados por terceiros. A questão, portanto, era restrita ao quanto seria devido pela contribuinte (construtora) na entrega de seu serviço (construção), o que é inerente e comum à maioria dos tributos.

Eis que, então, surge uma ideia genial de se atrelar este mundo estritamente tributário ao mundo dos licenciamentos urbanísticos, passando a ser condicionada a emissão do auto ou certificado de conclusão física das obras (usualmente denominado de “Habite-se”), à apresentação de um certificado de quitação do ISS “devido pela obra”. Junto ao nascimento desta nova exigência temos um verdadeiro aborto tributário, que trouxe ao mundo, pela via mais transversa e aberracional, um novo tributo e seu contribuinte esdrúxulo: o ISS-Habite-se, devido por um ente abstrato chamado “Obra”!

O Habite-se é um direito do proprietário do imóvel em decorrência de ter concluído uma obra (de reforma, demolição ou construção) em conformidade com o respectivo alvará anteriormente emitido pela municipalidade, e que lhe permitiu a execução de tal obra. É, assim, um simples ato de verificação de conformidade física, a ser realizado pelo setor responsável por tal aspecto (engenharia e urbanismo), pelo que não deveria ter qualquer relação com os setores de arrecadação tributária.

Este atrelamento, mal comparando, seria como exigir a quitação do ISS do médico ou do hospital para se dar alta a um paciente!

Além de ser uma inescondível sanção indireta, pois dá ao ente tributante uma ferramenta ilegal para exigir tributo, cria uma exigência adicional ao processo de licenciamento urbanístico, que nenhuma relação guarda com as obrigações e posturas que são legitimamente aplicáveis a uma obra. Vale lembrar também que os parâmetros técnicos utilizados para a pauta, desde o início e até hoje, são aqueles vigentes na década de 80, não refletindo a realidade de tecnologias amplamente aplicadas nas obras atualmente, tais como o incremento de automação, diversidade de itens pré-fabricados, uso disseminado de materiais que reduzem a necessidade de mão de obra etc.

Digamos que, até aí, por mais incongruente e burocratizante que fosse tal previsão, era algo que o mundo imobiliário foi aprendendo a conviver, passando a recorrer ao judiciário naquelas situações mais agressivas de exigências descabidas no momento da conclusão das obras, valendo relembrar o cenário de fundo, já destacado acima, e um panorama econômico de pouca atividade no setor imobiliário.

A situação passou a ser efetivamente crítica com a aceleração econômica do setor imobiliário, em meados da década passada, quando passamos a ter vários fatores novos na cena: grande número de obras, escassez de mão de obra no setor, abertura de capital de diversas incorporadoras, agressividade fiscal sem precedentes e a aceleração da decadência moral em todos os setores da sociedade. Podem parecer fatores sem grande conexão, mas sua conjugação criou uma “tempestade perfeita”, como gostam de descrever os economistas.

Desde então (estamos falando de 20042005), houve uma crescente e quase inacreditável apropriação de grande parte dos órgãos de controle e fiscalização paulistanos, por algumas gangues de malfeitores, convenientemente alocados em posições chave, que criaram até normativos infra legais para lhes dar cada vez mais poder e ferramentas para o exercício pleno de uma verdadeira máquina de achaques, em detrimento do interesse público a que deveriam servir.

O que era apenas uma ilegalidade (pauta fiscal e atrelamento ao habite-se) virou uma arma letal, pois o cenário geral se tornou mais propício, com obras em atraso, cobrança de investidores e do “mercado”, baixa resistência moral dos envolvidos e uma disseminada leniência de todos os órgãos e entidades que deveriam atuar positivamente na questão.

Passaram a ser “exigíveis” novos critérios para avaliação da adequação dos recolhimentos do ISS à pauta fiscal, critérios esses que jamais foram objeto de uma norma publicada, valendo apenas sorrateira e soturnamente nos corredores e salas dos setores de fiscalização municipal, deixando ao livre arbítrio de cada auditor a aceitação, ou não, de determinados serviços para composição do total de valores a serem considerados para atendimento da pauta.

Com tamanho poder e a cada dia mais abusados, os integrantes da legião foram ditando o padrão dos novos critérios (até porque amparados e suportados pelos superiores), compelindo mesmo aqueles auditores honestos a seguir as mesmas diretrizes, a maioria delas contidas em orientações verbais ou escritas de circulação restrita aos auditores (há uma lendária Ordem de Serviço 9/2009, que supostamente contém a compilação de tais “critérios”), de tal sorte que mesmo as obras fiscalizadas por estes últimos ficavam sujeitas às absurdas exigências de valores adicionais a recolher. Por absurdo que pareça, esta minoria de infratores conseguiu controlar grande parte dos departamentos arrecadatórios ligados à fiscalização das obras, certamente graças à aparente conduta escorreita de alguns dos integrantes da gangue.

Para complementar a situação caótica, as instâncias administrativas recursais, especialmente o Conselho Municipal de Tributos, não podiam sequer analisar a questão da pauta fiscal, já que malandramente tal matéria ficou expressamente excluída de sua competência. Mera coincidência?

O ato final deste espetáculo triste e burlesco foi a edição da Instrução Normativa 3/2013, que enfim tornou públicos os critérios (?) de enquadramento dos serviços ditos aceitáveis para composição da pauta fiscal, com escancarada intenção de dar guarida às absurdas condutas e abusos praticados anteriormente, como se tal fosse possível. Nesta abominável norma, excluem-se, do que se consideram serviços que compõem uma obra, itens como topografia, terraplenagem, fiscalização da obra, administração da obra, mão de obra temporária, projetos, instalações e, o gran finale, serviços de engenharia. Ora, até a mais limitada partícula do mundo mineral sabe perfeitamente que é impossível realizar uma obra de construção civil sem tais indissociáveis itens, ficando evidenciado, a mais não poder, o intuito subterrâneo e sórdido de tais exclusões.

De duas, uma, ou se pretende ampliar artificialmente o campo de tributação do ISS, o que é ilegal, ou a intenção é realmente dar mecanismos potentes para continuidade e justificação dos achaques até aqui perpetrados.

Em resumo, tivemos por alguns anos, particularmente a partir de 2008, um quadro onde (i) a empresa se submetia a uma cobrança adicional totalmente desprovida de base legal, quando eventualmente a totalidade de seus recolhimentos era inferior à pauta fiscal, (ii) mesmo com recolhimentos suficientes, eram apresentados valores supostamente devidos, seja para fins de um igualmente abusivo recolhimento, seja para justificar o oferecimento de “facilidades”, (iii) de um modo ou de outro, a não aceitação da ajuda implicava em atrasos relevantes na emissão dos certificados, em especial para aquelas obras de maior expressão.

Evidentemente que não cabe, de forma alguma, computar a totalidade da responsabilidade aos bandidos travestidos de servidores municipais, muito pelo contrário. É óbvio e certo que muitos empresários aproveitaram-se deste esquema sórdido, para sonegar e obter uma gama de outras vantagens, tendo conduta até mais reprovável que os próprios fiscais, assim como diversas empresas acabaram fazendo vistas grossas a uma situação nitidamente distorcida, onde eram obrigadas a fazer uso de despachantes a custos vultosos para obtenção das quitações e certificados, colaborando mesmo que inconscientemente para o descalabro em que culminou a situação.

Feitas essas considerações, de diversas naturezas, na tentativa de ampliar um pouco mais o espectro da análise da questão, temos as seguintes conclusões e sugestões:

— a cobrança adicional de ISS, por ocasião da emissão do “certificado de quitação do ISS-Obra”, é uma invenção sem base legal, totalmente inconstitucional, sendo devido o tributo apenas sobre o quanto houver de serviços efetivamente prestados e pelos respectivos prestadores de serviços;

— se a municipalidade tem dificuldade em fiscalizar o setor de construção, que crie mecanismos corretos e legalmente aceitáveis para tal fim, não servindo de justificativa para a manutenção da pauta fiscal e tampouco do atrelamento da emissão do habite-se a uma inusitada quitação de ISS-Obra, especialmente diante da altíssima capacidade tecnológica disponível para a fiscalização atualmente, com ampla diversidade de dados para serem cruzados com eficácia (naturalmente deve haver vontade política para tanto …);

— o simples fato de ter sido trazido à tona tal assunto certamente implicará em novos padrões de conduta, para ambos os lados, sendo altamente necessário e recomendável que as autoridades fazendárias e as entidades relevantes do setor atuem conjuntamente para o desenho de um novo modelo de fiscalização, que permita à municipalidade arrecadar o quanto lhe é devido, de modo justo e legalmente sustentável, mas que não crie sujeições indevidas ou mecanismos que induzam e facilitem o achaque;

— os procedimentos de fiscalização das obras concluídas nos últimos cinco anos, atualmente em curso por um grupo especialmente destinado pela Secretaria de Finanças, para revisão dos certificados de quitação emitidos neste ínterim, e que poderão ter sido irregularmente facilitados pelos malfeitores, deverão partir de critérios técnicos claros e objetivos, respeitando os limites legais aplicados, para que não se repita, sob outro tom, o mesmo quadro de ilegalidades anteriormente vistas;

— é fundamental separar claramente as diversas situações em que as empresas e obras se encontram, pois há desde aquelas que absolutamente nada devem aos cofres públicos, tendo cometido irregularidades de outras naturezas, mas não tributárias, até outras que efetivamente corromperam e sonegaram, para que cada uma tenha o devido tratamento justo e arque com as consequências integralmente, porém dentro dos limites de um Estado de direito;

— a efetividade da Controladoria Municipal será a grande chave para rapidamente identificar, neutralizar e punir novos focos de malfeitos, sendo um grande alento versus a situação anterior onde tanto as instâncias superiores na estrutura administrativa municipal, como a antiga ouvidoria faziam ouvidos moucos para o assunto, mesmo depois de alertadas por alguns empresários e, especialmente, por inúmeras manifestações por parte das entidades mais relevantes do setor imobiliário.

De nada adiantará o espírito justiceiro neste momento de apuração dos malfeitos passados se não houver um avanço institucional na matéria.

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