Ideias do Milênio

"Esperança do Oriente Médio está nas mulheres jovens"

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17 de janeiro de 2014, 7h28

Entrevista concedida pela ativista e escritora iraquiana Zainab Salbi ao jornalista Lucas Mendes, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

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Os números sobre estupros são imprecisos. Apesar da dúvida matemática, uma tendência permanece: as campanhas de proteção às mulheres e as leis mais rigorosas não reduziram os estupros ao redor do mundo. A organização Women For Women foi criada em 1993 para proteger e ajudar mulheres violentadas na Bósnia e Croácia. Tinha um punhado de dólares e deu assistência a 31 mulheres no primeiro ano. O programa expandiu para outras zonas de conflitos. A organização já distribuiu US$ 102 milhões e ajudou 370 mil mulheres. Zainab Salbi fundou a Women For Women quando tinha 20 e poucos anos e nenhum dinheiro no banco. Nascida e criada em Bagdá, Salbi era filha do piloto particular de Saddam Hussein, que acabou ficando próximo da família, tão próximo que a mãe dela decidiu tirá-la da cidade antes que fosse vítima de Saddam ou dos filhos, e arranjou um casamento em Chicago com um marido de boa família. Ele estuprou Zainab. A história dela autobiográfica está no livro “Entre dois mundos” e já foi traduzida para várias línguas. Nossa entrevista foi no escritório de Zainab em Nova York.

Lucas Mendes — Conte-nos a história por trás do seu nome.
Zainab Salbi —Há duas histórias por trás do meu nome, Zainab. “Zainab” significa literalmente “rosa do deserto” em árabe, que é esta pedra. É uma pedra que parece uma rosa e ela existe no deserto, mas meu nome também é uma homenagem à neta do profeta Maomé, que foi a única sobrevivente de um grande massacre no qual morreram 72 parentes dela, inclusive seus irmãos e sobrinhos. E ela foi feita prisioneira de guerra depois do massacre pelo califa que ordenou a matança. Quando ela entrou no palácio e vi que o califa que tinha sido vitorioso na matança dos netos do profeta convocara todos os líderes tribais para testemunhar sua vitória, ela falou a verdade ao poder. Descreveu o massacre e sua injustiça. Disse que o exército cercara 72 civis, entre os quais havia mulheres e crianças, e matara todo mundo. E ela é conhecida por sua coragem de narrar a história para os poderosos, mesmo acorrentada. E o califa ficou tão constrangido, porque os líderes tribais começaram a chorar com a narrativa dela, que ficou com vergonha de matá-la e a exilou. Ela passou o resto da vida indo de vilarejo em vilarejo contando a injustiça que tinha acontecido. Os muçulmanos conhecem essa parte da história graças a Zainab, e ganhei esse nome por causa dela.

Lucas Mendes — Você passou vários anos viajando pelo mundo, ajudando e escrevendo sobre mulheres vítimas de guerras e abusos. Infelizmente não teremos tempo para mencionar todos os países, mas vamos começar pelo Oriente Médio: em quais países as mulheres têm as melhores condições e em quais elas sofrem mais abusos?
Zainab Salbi — Hoje, no Oriente Médio, principalmente no mundo árabe, 60% da população tem menos de 30 anos, e as mulheres têm um papel de destaque na sociedade civil porque elas querem sua liberdade individual, porque foram tão marginalizadas e excluídas em nome de Deus que estão tentando reconciliar — e acham que isso é possível — seu amor a Deus com sua identidade muçulmana, e com o fato de quererem ser mulheres livres para exercitar sua liberdade. Então a diversidade vai de países como a Tunísia, onde as mulheres têm mais liberdades civis, a países como o Egito, onde elas estão muito mais preocupadas com seus direitos políticos e estão sendo sexualmente atacadas por causa de sua participação política. Então elas fazem manifestações, por exemplo, contra os militares, e a polícia as ataca sexualmente, apesar de elas estarem se manifestando contra os militares. Na Arábia Saudita, as mulheres têm liberdade econômica e também podem estudar, mas não podem trabalhar, não podem dirigir, não têm liberdade de movimento, então não há um país que seja “o” país do Oriente Médio, mas há diversidade. No Irã, as mulheres estão interpretando a religião de um ponto de vista islâmico. O Oriente Médio está vivendo um momento de transição. Essa é a minha resposta. E as mulheres têm um papel importantíssimo nessa transição.

Lucas Mendes — Você menciona alguns movimentos femininos. Quais deles são mais relevantes e por que são mais eficientes que os outros? O que as mulheres devem fazer?
Zainab Salbi — Na minha opinião, a esperança que temos no Oriente Médio e no mundo muçulmano como um todo, eu aposto 1.000% do meu otimismo nas mulheres, principalmente nas mulheres jovens, não necessariamente em qualquer mulher. De Malala Yousafzai, do Paquistão, a muitas outras blogueiras e ativistas dos direitos humanos. São Jovens no Egito, na Tunísia, na Arábia Saudita, várias. E acredito nelas porque elas não são contra ou anti, elas não são contra o Islã ou fundamentalistas, mas estão dizendo: “Sou muçulmana, amo Deus, eu rezo, jejuo, respeito os preceitos básicos do Islã e acredito que o Islã me dá o direito de ser igual aos homens, de fazer minhas escolhas, de trabalhar, de estudar, e esses fundamentalistas que estão corrompendo a religião com valores estranhos a nós não são os melhores porta-vozes da religião.” São elas que estão navegando num espaço intermediário. As secularistas dizem: “Não quero saber de religião. Não quero rezar, não quero beber, não quero jejuar.” Também são extremistas, mas as jovens estão dizendo: “Há um espaço. Posso usar lenço na cabeça e sair com os meus amigos que bebem cerveja, e também posso usar minissaia e rezar cinco vezes por dia.” Isso porque elas não encaram a questão como bandeira política, mas como liberdade individual. Não sei aonde isso vai nos levar, mas é um momento histórico, doloroso e importante no Oriente Médio. Para mim, a única forma de lidar com isso é criando espaço para os jovens, para que sua voz seja ouvida e entendida, porque eles estão nos levando ao verdadeiro fundamento do Islã, que é baseado na liberdade individual. Diante de Deus, no Islã, mulheres e homens são exatamente iguais.

Lucas Mendes — Você mencionou Malala, e o Paquistão é um país complicado que está enfrentando dificuldades. Algumas pessoas acham até que não aconteceu nada com ela, que foi uma farsa. Como você vê Malala? Porque o Ocidente cogitou dar a ela o Prêmio Nobel. Todos estavam e ainda estão apaixonados por ela.
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ainab Salbi — Acho que Malala é uma menina abençoada. Eu a coloco no mesmo nível de Martin Luther King ou Gandhi no seu discurso, na sua personalidade, na sua força e na sua coragem. E ela ainda é muito nova, então ainda bem que não ganhou o Nobel da Paz. Eu a admiro e a respeito profundamente, e acho que foi bom ela não ganhar o Nobel. Isso é saudável para ela, que é uma criança. É uma menina de apenas 16 anos que é muito corajosa, muito inteligente e tem muita personalidade, então todos nós, na minha opinião, temos que respeitar o que Malala conseguiu: uma única jovem mobilizou mais paquistaneses contra o Talibã do que todo o governo paquistanês conseguiu. As pessoas são céticas em relação a seus governos porque eles se envolvem em corrupção e coisas assim, e só essa menina, que é autêntica e sincera — ela só quer frequentar a escola — levou um tiro por dizer isso. As pessoas acreditam nela porque é uma história real. Sozinha, ela conseguiu mobilizar mais solidariedade à causa dela e contra o Talibã do que todo o governo do Paquistão, mas o que nós precisamos entender, principalmente fora daquela parte do mundo, é que militares e fundamentalistas são coisas diferentes, eles defendem coisas diferentes, mas ambos são extremistas. E o extremismo não funciona.

Lucas Mendes — No Egito é assim?
Zainab Salbi — É a mesma coisa. Quer escolher qual? Não quero nenhum dos dois. Não quero os militares nem Mursi. Então em vez de sempre usar a dinâmica de “ou isto ou aquilo”… Como sou iraquiana e conheci Saddam Hussein, vivem me perguntando: “O que é melhor, a vida no governo Saddam Hussein ou a vida agora?” E acho essa pergunta muito injusta! A vida com Saddam Hussein era um inferno e a vida agora é um inferno. E dar às pessoas a opção de escolher um de dois infernos é muito injusto.

Lucas Mendes — Por que é um inferno hoje?
Zainab Salbi — Porque, com Saddam, a violência e a opressão eram cometidas de forma vertical. O governo as impunha sobre o povo. Tínhamos medo de Saddam, dos irmãos dele e do serviço secreto. Essas eram as instituições que todos temiam, certo? Em vez de acabar com essa violência, tudo que aconteceu desde a invasão do Iraque em 2003 foi que a violência deixou de ser vertical e passou a ser horizontal. Deixou de ser controlada pelo governo e hoje é controlada por qualquer um: as milícias, os partidos, todo mundo. Quer que eu escolha uma das duas? Não quero nenhuma delas! Quero uma terceira opção que proteja minha liberdade individual, meus direitos de cidadã, minha segurança. Essa é a pergunta que deve ser feita aos iraquianos e aos árabes.

Lucas Mendes — Este é um livro muito forte e fascinante sobre a sua vida, a sua infância em Bagdá. Inclusive há uma foto sua aqui ao lado de Saddam Hussein, mas você só pronunciou o nome dele depois de adulta. Dê-nos uma ideia de como era a vida no círculo íntimo dele, quando você até frequentava o palácio dele e ele, a sua casa. Ele quis que você fosse nadar com ele, na piscina, vestindo as roupas dele. Então havia um certo grau de intimidade e, mesmo assim, você sempre se sentiu ameaçada.
Zainab Salbi — Saddam era como um gás venenoso vazando dentro de casa. Nós o respirávamos lentamente, resistíamos a ele lentamente e acho que todos os meus parentes morreram lentamente. Mas é um gás venenoso. É… O Diabo é um anjo caído, ou seja, não era um relacionamento constantemente opressor. A relação era essa, uma mistura de… Ele ria, nós comíamos, dançávamos… Nós o víamos dançando, ouvindo música, indo caçar, dirigindo carros esportivos, rindo, levemente embriagado e, de repente, uma mudança, e ele começava a contar como tinha matado seus melhores amigos na noite anterior, ou como matara sua amante ou seu cunhado. Enxergamos as pessoas como preto e branco. Eu enxergava as pessoas assim. Saddam: mau. Todo o resto: bom. A verdade…

Lucas Mendes — Não é preta e branca.
Zainab Salbi — Tem nuances, é sofisticada. Era a morte lenta da alma… Eu estaria mentindo se dissesse… Eu cresci em meio ao privilégio, cresci com Mercedes, com helicópteros, aviões particulares, caviar, charutos e todas essas coisas, e com medo. O medo fazia parte disso. Como provar…? Meu maior desafio ao escrever minhas memórias foi como fazer com que as pessoas sentissem aquele medo que estava em mim, que fazia parte do meu sangue. Lembro-me da minha mãe chorando histericamente e dizendo: “Eu vejo as grades da prisão. Elas são douradas. Não posso provar que existem, mas eu as vejo.” Então o medo estava dentro de nós, mas nossa aparência não demonstrava isso. E também aprendi que a coragem não se revela em grandes atos. Nos filmes, vemos um personagem exclusivamente mau, e o mocinho é exclusivamente bom. E o herói protagoniza atos grandiosos, e viver tão perto do Diabo… Eu penso em Saddam como o Diabo, mas também como alguém que eu chamava de tio, e seria mentira dizer que não chorei quando vi sua execução.

Lucas Mendes — Você não queria escrever um livro sobre si mesma. Você resistiu. Por fim acabou escrevendo-o e também incluiu histórias muito íntimas. Por que mudou de ideia?
Zainab Salbi — Foram dois motivos. O mais importante, o ponto de virada, foi que, enquanto eu tentava escrever um livro sobre outras mulheres iraquianas porque eu julgava não ter uma história… “Que história eu tenho? Cresci num ambiente privilegiado. Foram as outras que foram torturadas, presas, estupradas e tudo isso”. Nessa época, eu estava entrevistando uma mulher congolesa. Olhei para ela e perguntei: “Quer que eu mantenha segredo ou devo contar sua história ao resto do mundo? Porque eu sou uma contadora de histórias.” E ela respondeu: “Se eu pudesse contar a minha história ao resto do mundo, eu contaria, para que outras mulheres não tivessem que enfrentar o que eu enfrentei, mas não posso. Você pode, então conte ao mundo. Só não conte aos vizinhos.” E aquela foi uma das maiores lições de humildade da minha vida, quando percebi que aquela mulher congolesa analfabeta tinha mais consciência sobre as conexões entre a história dela e as histórias de outras mulheres do que eu, a mulher culta e privilegiada, que encarava aquilo como as histórias delas, mas que não se identificava. E eu tinha duas opções: ou eu continuava com o meu medo de Saddam e da história da família… É preciso entender que eu desrespeitei os segredos da família. Eu desrespeitei o código familiar que dizia que jamais poderíamos contar a ninguém o que acontecia. Então escrevi o livro com medo. Chorei escrevendo o livro, chorei falando sobre o livro, até que percebi… Quando o livro foi lançado, outros iraquianos começaram a ligar para meu pai, dizendo: “Que bom que ela contou!” E outras iraquianas me paravam na rua em Londres, Bagdá ou em qualquer outro lugar, como a Jordânia, e diziam: “Obrigada por ter falado, porque não está contando apenas a sua história, mas as nossas também.” Principalmente a parte sobre o medo. E de repente eu percebi: “Meu Deus!” Eu tinha dominado meu medo e me tornado mestre do meu medo. Antes eu o alimentava, achando que estava fora de mim. E não era Saddam que tinha de acabar com ele, era eu que tinha de superá-lo. E eu tive sorte, porque sobrevivi. Mas percebi que não podia dizer para outras mulheres quebrarem o silêncio e falarem se eu não estivesse disposta a percorrer a minha própria jornada. E, para mim, os direitos das mulheres evoluíram: deixaram de ser uma história sobre outras mulheres e passaram a ser uma história sobre a história delas, a minha história e as nossas histórias coletivas.

Lucas Mendes — Você criou uma organização, a Women for Women International, que está indo muito bem, mas você a deixou há dois anos e agora está escrevendo e dando palestras? O que tem feito?
Zainab Salbi — Bem, eufundei a Women for Women International aos 23 anos, contra todas as probabilidades, com meu segundo marido e contra todas as probabilidades. Eu não tinha experiência, nem dinheiro, nem conhecimento sobre os países onde eu trabalhava e nem tinha terminado meus estudos ainda. Todos riram de mim. “O que está tentando fazer? Quer ser a Madre Teresa? Vá arrumar um emprego, compre uma casa, um carro…” Mas eu estava apaixonada pela causa e decidi fazê-lo. Assumi muitos riscos e passei necessidade durante três anos, isso porque estava arrecadando dinheiro para as mulheres que estávamos ajudando, e a organização, que começou ajudando 30 mulheres em setembro de 1993, hoje, em 2013, ajuda mais de 370 mil mulheres. Passou de zero para mais de US$ 100 milhões distribuídos a essas mulheres.

Lucas Mendes — E ganhou reconhecimento da Casa Branca.
Zainab Salbi — Da Casa Branca, fomos 10 vezes ao “Oprah Winfrey Show” e tudo isso. Mas, quando eu tinha 23 anos, também prometi a mim mesma que deixaria a organização quando ela completasse 20 anos. Eu não queria ser uma dessas pessoas que se agarram à sua criação, mesmo depois de deixar de ser relevante. Então, no aniversário de 18 anos da Women for Women, resolvi me demitir do cargo de diretora-executiva e este ano, quando a Women for Women completa 20 anos, estou deixando totalmente a organização. E não é um processo fácil. Ela é literalmente o meu bebê. Eu não tenho filhos e dediquei meu coração, a minha alma e dei tudo de mim por ela. Mas também acho que é a coisa certa a ser feita: deixá-la para uma nova geração de líderes, deixá-la para as jovens, deixá-la de todo. Você fez algo, se realizou… Se eu morresse hoje, morreria satisfeita. Mas a minha nova jornada se concentra mais nas mulheres árabes e muçulmanas.

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