Resolução do TSE

Restrição à atuação do MP será sentida pelos eleitores

Autor

  • André de Carvalho Ramos

    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (largo São Francisco) professor titular e coordenador de mestrado em Direito stricto sensu da Escola Alfa Educação e procurador regional da República.

15 de janeiro de 2014, 10h49

As mobilizações populares de junho de 2013 foram multifacetadas, mas era possível identificar, no mosaico de reivindicações, alguns temas muito claros. Um deles era a rejeição da Proposta de Emenda à Constituição 37, que pretendia retroceder anos de institucionalização no combate à criminalidade e especialmente à corrupção, ao propor a retirada dos poderes investigatórios do Ministério Público.

Sob a forte pressão popular, a PEC acabou, de fato, rejeitada. Agora, passados alguns meses e arrefecidos os ânimos de boa parte da população que estava nas ruas, o Tribunal Superior Eleitoral, por meio de uma resolução que visa regular as eleições deste ano, revive parcialmente o tema. A Resolução TSE 23.396/2013 retira do Ministério Público a possibilidade de requerer a instauração de inquérito policial para apuração de crimes eleitorais, ao determinar que os inquéritos serão instaurados apenas por requisição da Justiça. Trata-se de entendimento inesperado, uma vez que nas resoluções anteriores do TSE não havia tal restrição. Nenhuma lei eleitoral sobre essa matéria foi criada, de maneira a justificar essa mudança abrupta (e totalmente inédita em todo nosso ordenamento processual penal) na regulamentação do TSE.

Cria-se uma etapa adicional — a necessidade de autorização judicial — para apuração de crimes que, mesmo sem esse obstáculo, já eram de difícil solução: a falta de estruturação das polícias faz com que, no mais das vezes, a apuração de ilícitos eleitorais não seja uma prioridade, além disso, a colheita de provas de crimes praticados de forma especialmente camuflada, como o caixa 2 e a corrupção eleitoral — “compra de votos” — é extremamente complexa — com falta de outras provas que não seja a quase sempre desacreditada prova testemunhal — e fica mais difícil quanto mais distante do período eleitoral se dá o início da apuração.

O intuito de submeter a instauração do inquérito à necessidade de autorização judicial seria o de conferir mais transparência à apuração dos crimes, evitando apurações “secretas”. Para que tal justificativa fosse razoavelmente plausível, no entanto, deveria se apontar ao menos indícios da existência de tais investigações “secretas”. Todavia, todos os inquéritos policiais eleitorais requisitados pelo Ministério Público são devidamente registrados no poder Judiciário, e, como qualquer outro inquérito, cadastrados no setor policial competente. Ademais, se algum agente de má-fé desejasse realizar uma investigação pouco transparente, não seria por meio da requisição de um inquérito policial que o faria.

Outra argumentação a favor da redação atual da resolução seria referente ao chamado “poder de polícia” conferido aos juízes eleitorais. Obviamente, trata-se do poder administrativo de zelar pela correta condução das campanhas eleitorais. Não se trata, claro, de poder de investigação policial conferido aos juízes na seara eleitoral.

De início, chama a atenção que se trata de entendimento especial para a seara criminal eleitoral, que, dessa forma, passa a ter procedimento diverso do adotado para apuração de todos os outros crimes, seja do Código Penal, seja da legislação penal especial. Há, assim, flagrante desrespeito à isonomia, ao se criar — por meio de resolução! — procedimento especial não previsto em qualquer parte do sistema jurídico.

Além de ferir a isonomia, o novo entendimento também apresenta uma ameaça para o adequado desenvolvimento do processo penal, inclusive para os direitos do investigado. Como se sabe, uma importante função do Judiciário é garantir as liberdades individuais nos procedimentos de investigação e acusação, e tal função fica irremediavelmente prejudicada se ao juiz se requer autorização para o início das investigações. Um juiz que autoriza a instauração do inquérito certamente não poderá julgar um Habeas Corpus que visa terminar o procedimento investigatório por entender haver atipicidade da conduta, por exemplo. Assim, não cabe ao juiz avaliar se há elementos suficientes para que o MP proponha desde já a Ação Penal (sendo desnecessário o inquérito) ou ainda se o fato merece investigação mais aprofundada para subsidiar uma ação penal vitoriosa. Esse papel é da acusação, que é a destinatária do inquérito policial. Como lembra o sempre garantista ministro Celso de Mello, "o inquérito policial, que constitui instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado a subsidiar a atuação persecutória do Ministério Público, que é — enquanto dominus litis — o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária" (STF, HC 73.271/SP, relator Celso de Mello). Juiz não é parte, não podendo, então, ordenar a instauração de inquérito policial justamente para subsidiar o convencimento do MP.

Por fim, impossível não invocar a Constituição Federal, cuja redação é absolutamente clara ao estabelecer como “função institucional” do Ministério Público a requisição “de diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial” (artigo 129, inciso VIII). Além da clara inconstitucionalidade, a resolução vai em sentido contrário ao de diplomas legislativos como o Código de Processo Penal e o Código Eleitoral. O primeiro afirma ser atribuição do Ministério Público a requisição de instauração de inquérito policial para apuração de crimes de ação penal pública (artigo 5º, inciso II). O segundo dispõe que, recebida notícia de crime eleitoral, caso o Ministério Público julgue necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou outros elementos de convicção, pode requisitá-los diretamente de quaisquer autoridades ou funcionários que possam fornecê-los (artigo 356, § 2º).

A Resolução TSE 23.896/2013, caso mantida na sua atual redação, representa, portanto, uma versão aproximada do que seria a PEC 37 para o Ministério Público Eleitoral, pois, ao retirar a prerrogativa de requisição direta de instauração de inquérito, submete a convicção ministerial de existência de indícios de irregularidades e de necessidade de investigação à aprovação da Justiça.

Trata-se de restrição que será sentida por todo o eleitorado. Se hoje a investigação dos crimes eleitorais já sofre com a ausência estrutura e de mecanismos investigatórios que consigam contornar a pesada camuflagem que recai sobre os ilícitos praticados durante as eleições, a imposição de uma restrição ao início da apuração criminal só fará piorar o quadro, agravando a noção de que os agentes políticos podem violar livremente a lei sem qualquer tipo de punição.

Assim, é de interesse de todos (inclusive dos próprios políticos, que podem ser prejudicados pela conduta ilícita dos adversários), e não só do Ministério Público, o pleito pela alteração da Resolução TSE 23.896/2013.

Autores

  • Brave

    é procurador regional eleitoral do estado de São Paulo, professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP, doutor e livre-docente em Direito Internacional.

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