Juiz acusador

Brasil precisa abandonar sistema processual penal inquisitivo

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13 de janeiro de 2014, 12h02

Observando o julgamento do Mensalão, a Ação Penal 470, pode-se verificar um dos grandes problemas no sistema processual penal brasileiro, que é pouco discutido. Independente do mérito e do resultado no caso citado, este poderia ser uma oportunidade para se refletir sobre a figura do “juiz acusador”. Esta situação decorre da cultura judicial brasileira de que, na prática, o sistema processual penal é inquisitivo (isto é, com base nos critérios ainda oriundos da Inquisição), mesmo que a Constituição Federal estabeleça que o sistema deve ser acusatório, baseado no contraditório.

Quem assiste ao julgamento pela TV verifica que há um juiz tentando provar o fato — juiz acusador — e outro juiz — defensor — tentando “desprovar”o fato, e ambos tentando convencer os demais colegas. As partes ficaram em segundo plano. Isto acontece rotineiramente nos processos penais pelo Brasil afora. A rigor, na AP 470 a acusação que deveria ser feita pelo Ministério Público foi feita de maneira formal, com a devida sustentação oral, mas sem debates. Em tese, seria como se o promotor no júri lesse o libelo — quando existia este ato — e o juiz fosse para o debate com a defesa.

Na maior parte do julgamento da AP 470, observa-se o juiz tentando sustentar as provas para condenar, como se fosse a acusação. Ora, isto é o sistema inquisitivo, e não o acusatório. A maioria dos países já abandonou o sistema inquisitivo, o que provocou uma diminuição no número de presos e de processos penais. Mas, no Brasil, mais presos e processos penais representam benefício até mesmo para a própria defesa, que tem mais argumentos para exigir verba pública.

De fato, no sistema acusatório é diminuída a atuação do juiz, pois este passa a gerenciar o jogo do processo, enquanto o Ministério Público passa a ter o dever de provar efetivamente o que alega, sem o auxílio judicial. Além disso, o sistema acusatório implica na flexibilização da obrigatoriedade da Ação Penal, pois isto permite focar nas provas para delitos mais graves, sendo que atualmente ocorre o contrário, com o sistema policial para manter estatísticas tendendo a focar nos delitos menos graves.

Mas José Frederico Marques, nos idos de 1940, logo após o advento do atual Código de Processo Penal, destacava a dificuldade da cultura jurídica brasileira em cumprir o sistema acusatório, conforme consta de sua obra Elementos de Direito Processual Penal.

Alguns tentam sustentar que o sistema processual penal no Brasil é misto, portanto uma mistura de acusatório com inquisitivo. Ora, isto é pura retórica. Seria como a moça dizer para o pai que está “meio grávida”, porém, não se tem como estar meio grávida. Ou se está grávida, ou não se está grávida. Da mesma forma o sistema processual penal é inquisito ou é acusatório. No Brasil, o sistema processual é inquisitivo, logo notoriamente inconstitucional.

Do ponto de vista do sistema acusatório e constitucional, no julgamento da AP 470 deveria o relator analisar as provas trazidas pelo Ministério Público e decidir se são suficientes para a condenação, e o juiz revisor analisaria as mesmas provas para confirmar — e não apenas para desdizer o que o relator afirma). Em seguida, os demais juízes votariam. Mas, pelo principio da imparcialidade judicial não estariam relator e nem revisor preocupados em “convencer” os demais Juízes, pois isto é tarefa do Ministério Público e da defesa. Na prática, observa-se que há uma tendência ao juiz querer ser jogador (parte) e não apenas juiz.

Nos Estados Unidos, os casos judiciais são conhecidos pela citação das partes, mas no Brasil os casos são conhecidos pela citação do nome do juiz relator. Ou seja, nos Estados Unidos citam o caso Marbury x Madison, responsável pela “criação” do controle difuso de constitucionalidade. Se fosse no Brasil, nem se saberia o nome das partes, mas o caso seria citado pelo nome do relator. Importante relembrar que raramente o Judiciário cria teses, mas acolhe as teses das partes. Porém, esta colocação das partes em segundo plano no processo brasileiro ainda é a regra.

Curioso que várias entidades questionem o poder de investigação do Ministério Público, inclusive a Ordem dos Advogados do Brasil, mas nada falam sobre a investigação pelo próprio Judiciário. Ou acerca da situação de o juiz decretar prisão preventiva de ofício, sem pedido das partes e até sem processo como no caso dos flagrantes. Ou condenar, quando o Ministério Público pede absolvição por falta de provas, ou ainda, constar na sentença agravantes e causas de aumento de pena não constantes das alegações finais.

Toda esta situação de “Inquisição” no Processo Penal gera o excesso de presos na execução penal, mas o problema não está na execução penal, em si, e sim no sistema de inquisição no processo penal.

Por outro lado é fato que a mesma visão de “Inquisição” ocorre na execução penal, e às vezes temos uma concentração de poderes, pois a lei permite que o juiz aplique sanções ao preso, mesmo sem pedido do Ministério Público, o que é inconstitucional. Ou seja, o juiz que já foi investigador, foi acusador, agora vira algoz executor.

Importante ressaltar que este texto não tem o objetivo de dizer se há provas, ou não, na AP 470. Mas, chamar para um tema pouco discutido que é o sistema acusatório no processo penal, o qual é previsto na Constituição Federal, mas pouco aplicado na prática. Nem pretende-se aderir ao garantismo míope que sustenta ser o criminoso vítima da sociedade e a culpa pelo crime é da vítima. Apenas busca-se assegurar neste texto um debate sobre a constitucionalidade processual.

Na França há um ditado popular no sentido de que quando o juiz é o acusador, apenas Deus como defensor tem alguma chance. Logo, não adianta o Brasil gastar apenas com defesa, sem discutir a efetiva aplicação do sistema acusatório.

Vejamos que no Brasil, de forma curiosa, o delegado de polícia pode colocar em liberdade o preso, mas o Ministério Público não pode, mesmo que como titular da Ação Penal veja que o caso está prescrito, que cabe pena alternativa ou suspensão do processo. Mesmo nestes casos o réu deve ficar preso até que o juiz decida colocar em liberdade ou até que seja prolatada uma sentença, exceto se o delegado colocar em liberdade. Ora, se a acusação já verificou a desnecessidade do processo e o cabimento de pena alternativa, no mínimo o réu deveria ser colocado em liberdade, mas isto não acontece na maioria das vezes.

Em geral, esta visão de vingança social é bem aceita pela sociedade, pois acostumada a esta figura de juiz Hércules — que tudo pode e tudo faz. Recentemente, vi um livro de Processo Penal Constitucional classificado na livraria como “filosofia”. Ou seja, apenas manuais que copiam o texto do CPP são livros de processo penal.

Então reforça-se que no sistema acusatório, o juiz relator leria o seu voto e faria uma análise das provas e dos argumentos da acusação — e não assumiria o papel de escolher as provas no inquérito, pois teria que se reportar à denúncia e não ao inquérito policial apenas. O juiz revisor leria o seu voto e os demais juízes votariam, ou até mesmo leriam seus votos. Poderiam até discutir alguns detalhes. Mas, não haveria uma participação mais ativa. Seria como em um jogo, em que os árbitros não jogam, ainda que dêem a nota, mas esta é para os jogadores e não para os juízes.

Por fim, se queremos evoluir na questão prisional e penal, precisamos adotar um modelo acusatório de processo penal e considerando inconstitucional qualquer dispositivo legal que seja inquisitivo, mas a tendência judicial é o contrário. No sistema acusatório toda a carga probatória, inclusive argumentação para agravantes e causas de aumento da pena é ônus da acusação, a qual atua também pode indicar as atenuantes, pois atua como fiscal e na defesa da ordem jurídica justa, e as liberdades também podem ser concedidas pelo titular da ação penal, pois agiliza este direito, cuja atribuição não é privativa do Judiciário e devemos aproveitar a AP 470 para discutirmos a adoção do processo penal constitucional com sistema acusatório.

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