Senso Incomum

E se fosse criado o Ministério dos Embargos Declaratórios?

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9 de janeiro de 2014, 7h00

Spacca
Esclarecimentos necessários
A ficção faz parte de nossas vidas. Compreendemos melhor a realidade por intermédio de sua ficcionalização ou de sua fabulação. A coluna de hoje está nesse contexto. Trata-se de um exercício absolutamente ficcional. A literatura sempre tratou a mundanidade do mundo a partir de artifícios. Esta coluna é uma homenagem a todos aqueles que labutam no Direito e se debruçam sobre as (im)possibilidades de alteração do atual estado d’arte das práticas jurídicas. Faço-o com todo respeito. Sem exceções. Do mais importante operador-Ministro ao mais humilde advogado de Agudo, minha terra. A coluna deve ser lida assim, com espírito aberto. Porque ela não tem intenção de criticar nenhuma pessoa em particular. Apenas fazer refletir. Nestes tempos de muita flexão e pouca reflexão. Saludos!

A (declaração da) “inconstitucionalidade” do presidencialismo de coalisão
O presidente da República enxugava o suor que lhe empapava o terno que usava por debaixo da toga. Um calor de lascar, como aqueles que se sente no Palácio Jaburu, cujo ar condicionado já não funciona de há muito. O novo Ministério do Mandado de Segurança não deferira liminar para cassar outra liminar para religar a luz do Palácio do Planalto que tinha sido cortada por decisão — liminar — de um juiz-prefeito da cidade da Xapuri (ou Agudo), cuja jurisdição era para todo o território do novo Justerraebrasilis, o novo nome do Brasil depois da queda do governo tradicional eleito a partir da ultrapassada divisão de poderes do serôdio Montesquieu, cujo livro O Espírito das Leis havia sido banido das bibliotecas por decisão de um juiz-governador do Maranhão, porque o seu conteúdo conspurcava o espírito dos jovens concurseiros. No caso da falta de energia elétrica, ocorreu que o Ministério dos Agravo de Instrumento não conseguira fazer com que o Ministério dos Embargos Declaratórios esclarecesse o conteúdo da liminar do juiz-prefeito de Xapuri. Na verdade, o Ministério do Agravo ingressara com novo pedido de esclarecimento junto ao Ministério dos Embargos e…fora multado. Bingo! E contra isso somente caberia um pedido de reconsideração junto ao Ministério dos Recursos Especiais.

Mas, o que aconteceu? Já conto. Embalada e empolgada com o resultado de uma certa ADI na qual se falava que o Judiciário (em especial, o Supremo Tribunal) deveria empurrar a história, além do fato de que nessa ADI prevaleceu a tese-da-relativização-da-exigência-de-parametricidades-constitucionais para declarar a inconstitucionalidade de leis e atos normativos, a OAB deu o passo decisivo e ousado: entrou com um conjunto de ADIs e ADPFs visando a declarar inconstitucionais o malsinado sistema de governo presidencialista-de-coalisão e uma conjunto de dispositivos que diziam respeito aos mandatos dos parlamentares, a estrutura administrativa do governo etc.

Enfim, as ações propunham que o STF, além das inúmeras inconstitucionalidades-sem-parametricidade, decretasse um novo modelo de governo. No caso específico, a OAB invocara uma nova ação, chamada Apelo-ao-Judiciário (ainda sem tradução). E, com isso, fosse determinado um modelo sem voto, sem presidencialismo, sem mandatos, com renomeação de ministérios, enfim, tudo baseado em uma nova concepção. E qual seria esse novo modelo? Com a devida modulação de efeitos, a nova concepção do país está baseada na concursocracia. E tudo sob a batuta do Judiciário. Afinal, com mais de 1200 faculdades, o que fazer com toda essa gente? Assumir o poder, em todos os seus termos, parecia ser o melhor caminho. E, com tantos cursinhos preparatórios para concursos, com tantos blogs, vídeos infestando o YouTube ensinando à malta como passar em concursos e na prova da OAB, nada melhor do que unir o útil ao agradável. “Todo poder aos juristas”: esse é o lema. As ruas amanheceram pichadas de cima a baixo. Fora com os políticos. Fora com a burocracia iletrada. Povo não sabe votar. bacharelocracia e concursocracia: eis a nova era.

Depois do julgamento, no qual inclusive foi declarado nulo o mandato da presidenta por inconstitucionalidade do presidencialismo de coalisão, foi eleito o novo mandatário, chamado de juiz-presidente de Justerraebrasilis. O STF elegeu-o à unanimidade. De imediato, o Parlamento foi extinto, porque, por evidência, também inconstitucional. Como não servia para nada — por exemplo, não conseguiu durante anos resolver o problema da doação de campanhas eleitorais, sem a demarcação de terras indígenas, as uniões homoafetivas etc, etc e etc — sua instituição tornou-se despicienda. Por exemplo, de que adiantou o Parlamento aprovar a alteração no CPP na parte do artigo 212, se ninguém obedeceu, tendo o próprio STF sufragado tal posição? Hein? A revista Veja fazia essa pergunta na capa. Realmente, o Parlamento tornara-se dispensável, segundo alegação na ADI-ADPF (e na AAJ — nova Ação Apelo ao Judiciário). Em seu lugar, assumiu provisoriamente o CNJ, agora com o quádruplo de componentes (claro, sem os representantes do Parlamento, que já não existe). Como o CNJ já legislava (de há muito), ficou mais barato e mais rápido. E poupava trabalho ao próprio Supremo Tribunal, porque, agora, o juiz-presidente da República vetava ou não a matéria. O povo na rua comemorava a economia de milhões de reais (também segundo a capa da Veja).

Os prefeitos serão substituídos por pessoas concursadas. Uma SVP — Súmula Vinculante Provisória (sim, o instituto da medida provisória fora substituído, através de uma interpretação conforme — verfassungskonforme Auslegung, pelo novo instituto: a SVP) baixada pelo presidente da República regulamentou a assunção aos cargos. Cada Estado também passará a ser governado por um concursado (por enquanto, assume um juiz ou desembargador ou, em alguns Estados, o Procurador-Geral de Justiça).

Os parlamentos municipais, estaduais e federal passarão também a ser ocupados por concurso público. Afinal, como o Brasil é o país dos concursos, logo foi criado o Ministério dos Concursos Públicos, com a consequente abertura de 5.332 vagas para vereadores e mais 750 deputados. Senador? Não. O Senado foi extinto, em face do perigo da alopeciocracia,[1] representado pelo número considerável de calvos ou semi-calvos de senadores que poderiam representar um problema se todos fossem requisitar aeronaves da FAJ (Força Aérea de Justerraebrasilis). Neste caso, o Senado foi considerado inconstitucional com base no princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, além do novo princípio: o neoparametricidade, pelo qual o STF mesmo tem o poder de dizer qual é o não-parâmetro violado. Meio complexo, mas é isso mesmo. Na verdade, foi feita uma ponderação. Vários livros que tratam da “ponderação de valores e interesses” foram citados. Só se fala em ponderação na Nova República. Já tem gente querendo trocar o nome da capital para Abwägung (fica chique e é em alemão o nome de “ponderação”). Esse neoprincípio (o da neoparametricidade, que significa “não é necessária a parametricidade) ganhou logo destaque nos cursinhos de preparação para concursos. Autores destacados de livros de Direito Constitucional facilitados, simplificados, plastificados etc, já abriram um capítulo para tratar dessa conquista da neo-hermenêutica constitucional. A bolsa de valores abriu um pregão só para a compra e venda de livros para concursos. As ações do Direito facilitado-simplificado-resumido tiveram alta de 315% só na primeira hora.

Foram criados novos ministérios (por lei emitida pela CNJ, enquanto os concursos para deputados não são concluídos), além daqueles criados por SVP (como os Ministérios do Agravo e dos Embargos). Para cuidar das finanças, o Ministério do Direito Fiscal. Para a segurança pública, o Ministério do Direito Penal, comandado pelo Procurador-Geral da República. As questões ligadas ao Direito Civil foram deixados a cargo do Ministério da Afetividade, comandados pelos adeptos das cláusulas gerais e pamprincipiologistas..

Foi criada também uma Secretaria Especial para Elaboração de Novos Princípios (Sesprin), com status de ministério. O encarregado também poderia usar aviões da FAJ (essa é a importância da equiparação de secretaria com o Ministério). O CNJ estabeleceu metas para criação de princípios: no mínimo 50 novos princípios ao mês. Menos, nem falar.

Os novos deputados, a serem escolhidos por concurso público com perguntas difíceis como “se um gêmeo xifópago ferir o outro, qual será o crime” e “se Paula foi mesmo morta por veneno se, afinal, levou 16 facadas”, não farão leis como era no ancién regime. Leis não serviam para nada mesmo. Agora, os novos deputados farão apenas ementas e enunciados (protossúmulas), além de discutirem, nas várias comissões, os novos princípios que a tal secretaria (Sesprin) enviará a cada mês. E haverá audiências públicas, em que cada participante terá longos três minutos para expor a sua tese.

E assim por diante. A imaginação dos leitores preencherá os demais mi(ni)stérios do nouveau regime. Um problema, voltando ao início: o novo governo tem enormes dificuldades em lidar com as decisões fragmentadas emanadas pelos quatro cantos do país. Como tudo se judiciarizou (ou judicializou), cada juiz-prefeito-administrador, pela falta de uma teoria da decisão e com base no livre convencimento, emite ordens como quer (ou de acordo com a consciência de cada um). E cada ministério também faz o que bem entende, com base na livre apreciação (da prova). Na medida em que não há mais inconstitucionalidades (porque tudo estará concentrado em um só poder), o sistema está a exigir a criação de súmulas vinculantes que tratem de toda a administração. Consequentemente, deverá ser criado o Ministério da Súmula Vinculante, além do Ministério da Repercussão Geral e o Ministério da Reclamação, que agirá contra a desobediência das súmulas vinculantes e/ou das SVP. E já tem gente pensando em criar a Super Súmula Vinculante (SSV), que terá a pretensão de abarcar todas as hipóteses de aplicação (para isso, os estudos estão sendo elaborados por um grupo de positivistas adeptos da velha Begriffjurisprudenz). Ainda: em caso de dúvida sobre a aplicação da SSV, é só ligar para um 0800. Disque Justerraebrasilis. Disque 1, se você é estagiário; 2 concursado; 3 se for concursando do nouveau regime; 4, se quer saber o sentido da SSV; 5, se for caso de embargos; 6, se não era caso de embargos, você acabou de ser multado; 7, se for caso de agravo; 8, de quiser fazer uma ponderação e 9, para falar com um autor de livro resumido, ao vivo… Antes de desligar, atribua uma nota ao nosso atendimento.

O problema, mientras tanto, é a autonomia dos Ministério dos Embargos Declaratórios e do Ministério do Agravo (e do Agravinho). Eles são uma espécie de Banco Central dos Sentidos. Controlam a interpretação. Por exemplo, quem pagará as multas aplicadas em todas as hipóteses em que o Ministério dos Embargos Declaratórios disser que ele não tem nada a esclarecer e que ele não está obrigado a esclarecer nada para além dos fundamentos de sua própria decisão e for feito um novo pedido de embargos (os embargos dos embargos)?

Pois — e volto ao problema do calor e da falta de energia elétrica no Palácio — foi no meio dessa confusão que o juiz-prefeito (ou prefeito-juiz) de Xapuri (ou teria sido de Agudo?) acabou por trancar o ar condicionado do Palácio do Planalto. E parece que vai demorar até que a energia seja religada. O recurso deverá, primeiro, ter juízo de admissibilidade. Mas ainda falta consultar o Ministério dos Embargos Declaratórios, por causa do pré-questionamento… E há que se tomar cuidado com a multa…

Enquanto isso…
…lá no Brasil profundo, parece que há um pequeno movimento que deseja a volta do Parlamento (claro que sem o problema da alopeciocracia e as constantes viagens com os aviões da antiga FAB e com algumas melhorias, porque o réu tem de se ajudar, pois não?). Sabem como é: como em Totem e Tabu (Freud), mata-se o pai, mas depois vem a culpa…Todos prometem que, na próxima eleição (se for restaurado o sistema de partidos), todos votarão melhor. Assim esperamos. Aleluia.

Ao lado desse movimento, detecta-se também um punhado de pessoas que deseja a volta do tempo em que professor de Direito ensinava e aluno aprendia. Incrível, não? E que os alunos liam livros e não apostilas. Sim, os alunos não eram reféns do Dr. Google. E liam os clássicos e não os plastificados. Ainda estão pouco organizados. Não chegam a formar um movimento stricto sensu. Seu nome, se vingar, será MEP — Movimento Ensina Professor.

E há outro grupo (DVD ou DODO – Doutrina-Doutrina), ainda que bem pequeno, querendo que a Doutrina-Volte-a-Doutrinar (por isso, DVD). São corajosos. Mas, enfim… E há até mesmo um punhado de pessoas que deseja estudar Direito Constitucional, mas que não seja por resumos e resumos de resumos (esse grupo se autodenomina Frelipocref — Frente de Libertação Popular Contra Resumos e Afins). Querem mesmo estudar Konrad Hesse, Canotilho, Hirsch, Tribe e tantos outros (não vamos falar em autores daqui a serem estudados, e há muitos, para não semear sizâneas nas hostes aliadas; poderia esquecer alguns). Pedi inscrição nesses dois grupos.

Na mesma linha, existem professores que querem introduzir a cadeira de Teoria do Direito nas faculdades (de verdade). E ali prometem discutir a fundo coisas como positivismo, Estado, política, filosofia no Direito (e não “do” Direito). E o aluno que tentar levar um resumo plastificado será expulso da sala. Esse grupo quer denunciar aquilo que Umberto Galimberti chama de “comunicação tautológica”, em que o ouvinte-leitor lê (ou ouve) as- mesmas-coisas-que-ele-próprio-poderia-dizer e quem fala diz as-mesmas-coisas-que-podemos-ouvir-de-qualquer-um. Nesse monólogo coletivo, nessa comunicação tautológica em que se transformou o ensino jurídico e uma certa (pseudo) doutrina, a experiência da comunicação rui(u), porque é abolida a diferença especifica entre as experiências pessoais do mundo que estão na base de qualquer experiência comunicativa. Esse grupo, Moccota (Movimento Contra Comunicação Tautológica), promete jogar duro nessa área (embora o grupo caiba em uma Kombi).

Alguns professores estão prometendo que não mais orientarão dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre agravo de instrumento, cheque, princípio da afetividade etc ( trata-se da Acrec — Ação Contra Recorta e Cola em aliança com Motete — Movimento Tese tem que ter Tese). Se for com bolsa da Viúva, então, nem falar… Bingo!

E há professores que defendem a tese de que os alunos na sala de aula não usem o celular e o lepitop enquanto o professor está explicando a matéria (MQUBFOEO — Movimento Quando um Burro Fala o Outro Encurta as Orelhas ou, simplesmente MRM — Movimento Respeito ao Mestre).

E nesse Brasil profundo, tem gente querendo que os professores ministrem aula sem a bengala do pauerpoint. Muita gente também defendendo a tese de que novamente sejam discutidas causas nos Tribunais e não somente teses abstratas (é a gente do Frelicacon — Frente de Libertação do Caso Concreto). Os mais ousados, consideram que os Embargos de Declaração são inconstitucionais, porque violam o dever de fundamentação. Para esses corajosos incautos, uma decisão que é omissa, contraditória ou obscura é…simplesmente nula. Estou frequentando as reuniões desse grupo (MSPeA — Movimento Sem Pauerpoint e Afins), que se reúne clandestinamente as quartas-feiras, em local que não posso divulgar, é claro.

Dizem que há uma pequena facção chamada VAR-Copon (Vanguarda Reflexiva Contra a Ponderação). E o Micopid (Milícia Contra a Piriguetização do Direito).

Há outro grupo — veja como já há divisões e subdivisões na resistência — que começou um movimento para que o ex-juiz Rocha Matos tivesse seu recurso julgado (Monaprom — Movimento-Não-à-Prescrição-da-Ação-Penal-do-Rocha-Matos).

Forma-se também um pequeno movimento (Moinfema – Movimento pela Intervenção Federal no Maranhão), em face da barbárie do Presídio de Pedrinhas. Sem chance, pelo visto. Afinal, quem se importa com os presos? E vejam só: eis um bom caso para judicilializar, pois não?

Outra facção da resistência quer recuperar — imaginem os leitores — a autonomia do Direito. Eles sustentam que, nesta quadra da história, o Direito assume um grau de autonomia e, por isso, não pode ser corrigido por argumentos metajurídicos, por argumentos morais ou por argumentos teleológicos (políticos etc). Enfim… Também frequento esse movimento chamado MAD (Movimento pela Autonomia do Direito). Há também um pequeno grupo chamado MLDS (Movimento Levemos o Direito a Sério) Será que tem futuro o MAD e o MLDS?

Claro: todos esses grupos estão na clandestinidade.

Mas, enfim, esses movimentos são todos utópicos. E como diz o poeta: A utopia está lá longe, no horizonte. Achego-me um passo e ela se afasta um passo. Ando mais alguns passos e o horizonte some um tanto de passos à frente. Então, para que serve esse U-topos, esse não-lugar? Simples: para que continuemos a caminhar. Porque, como dizia Antonio Machado, caminante, no hay caminho… el caminho se hace al andar”…

Ou, com Mário Quintana:
"Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
a presença distante das estrelas!"

Ou, ainda, com o autor de Os Miseráveis: “Não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã.”

Pronto. Eis, pois, a minha crônica de ficção! Os que quiserem se filiar aos diversos movimentos, grupos e frentes, façam contato no Facebook.


[1] Poder da careca ou poder dos calvos.

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