Velhos dilemas

EUA voltam a examinar extensão de direitos civis a empresas

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7 de janeiro de 2014, 12h03

A Suprema Corte dos EUA terá, mais uma vez, de decidir se uma empresa tem direito a uma determinada garantia constitucional, específica, teoricamente reservada à pessoa humana. Desta vez, a corte vai examinar se uma companhia tem direito à liberdade de religião. No caso, o direito de empresas de sobrepor suas crenças religiosas à lei. Isso porque a nova lei de seguro-saúde do governo (Obamacare) obriga as companhias a cobrir, dentro de seu plano de saúde, medicamentos de controle de natalidade, o que contraria preceitos religiosos.

Em 2010, a Suprema Corte dos EUA decidiu que empresas têm direito constitucional à liberdade de expressão, que se pensava ser exclusivo do cidadão. O mesmo raciocínio valeu para associações e sindicatos. Para chegar a essa conclusão, a corte estabeleceu que uma companhia tem “personhood” — isto é, condição de pessoa — aos olhos da lei.

Com base nesse entendimento, a corte chegou ao cerne da questão em exame: o governo não pode restringir financiamentos de certas atividades de campanhas eleitorais pelas empresas. Afinal, como qualquer cidadão, as companhias têm o direito de expressar suas preferências por quaisquer candidatos. A discussão sobre financiamento de campanhas por empresas está no Supremo Tribunal Federal brasileiro, mas ainda não há decisão. O decano da corte, Celso de Mello, explica que quando a Constituição refere-se genericamente a “pessoas”, o sentido compreende tanto o de pessoa física como o de pessoa jurídica.

A Suprema Corte dos EUA não chegou ao ponto de determinar que as empresas têm direito ao voto, segundo os críticos da decisão. Mas, mesmo assim, frustrou boa parte da comunidade jurídica do país, porque, com essa decisão, derrubou uma lei que se destinava a coibir a corrupção política ou a influência das corporações sobre os eleitos.

A decisão foi tomada por cinco votos da ala conservadora da corte, contra os quatro da ala liberal. O professor de Direito Peter d’Errico disse que esse é lado “Dr. Frankenstein” da Suprema Corte: “toda vez que tenta criar um novo ser humano, acaba criando um monstro”.

Ser metafísico
A história de extensão de direitos dos cidadãos às empresas, mas sem se referir especificamente ao termo “personhood”, é atinga. Em 1819, a corte decidiu que as companhias têm os mesmos direitos das pessoas naturais para contratar e executar contratos.

Em 1886, porém, a Suprema Corte fez a primeira associação entre corporações e pessoas. A corte decidiu que a ferrovia “Southern Pacific Railroad” podia reivindicar a “proteção da igualdade perante a lei”, para processar o Condado de Santa Clara, na Califórnia. Nessa decisão, a corte descreveu uma corporação como um “ser metafísico”, igual a “um homem, uma mulher ou uma criança”, que deve ser protegida “por nosso governo abençoado”.

O argumento básico das pessoas jurídicas americanas, quando querem reivindicar direitos assegurados às pessoas físicas, é o de que as corporações são organizações de pessoas, que não podem ser privadas de seus direitos constitucionais quando agem coletivamente.

De uma maneira geral, o tratamento de empresas como pessoas é visto como uma “ficção jurídica conveniente”, que permite a elas processar e ser processadas, utilizar uma entidade única para regulamentação e tributação, simplificar transações complexas e proteger os direitos individuais dos acionistas, quando é o caso.

O único direito do cidadão negado às empresas americanas, até agora, é o de não se incriminar. A Suprema Corte decidiu que esse direito só pode ser aplicado em uma base individual. Mas as corporações o reivindicam. Argumentam que a palavra “contribuinte”, atribuída às empresas, as coloca na mesma posição dos cidadãos.

Contraceptivos obrigatórios
A questão do direito à liberdade de religião chegou à Suprema Corte por ação de duas organizações que não querem cumprir um dispositivo da nova lei de seguro-saúde do governo, chamada de Obamacare. A lei obriga as companhias de seguro-saúde e as ou organizações que oferecem o seguro a seus funcionários a fornecer, gratuitamente, medicamentos para controle da natalidade.

Uma delas é uma organização sem fins lucrativos, a Little Sisters of the Poor, que cuida de idosos. Na véspera do Ano Novo, a juíza Sonia Soutomayor concedeu uma suspensão temporária da aplicação do dispositivo e deu prazo até sexta-feira (4/1) para o Departamento de Justiça (DOJ) defender sua causa. Na sexta, o DOJ argumentou que não precisa se defender, porque a provedora de seguro-saúde ligada à organização religiosa é uma igreja e, como tal, é automaticamente isenta da obrigação contrária à fé que professa.

Quanto à outra organização, o caso é mais complicado: é uma empresa, com fins lucrativos. A Hobby Lobby Stores, cujo único contato com a religião e com princípios religiosos vem da fé de seus proprietários, também se recusa a fornecer contraceptivos e requer isenção religiosa.

Um tribunal federal de recursos já decidiu que a empresa tem direito à isenção religiosa, com base na Lei de Restauração da Liberdade Religiosa (RFRA — Religious Freedom Restoration Act), apesar de ser uma corporação e não uma pessoa real. 

Essa lei foi aprovada pelo Congresso em 1993, em resposta a uma decisão da Suprema Corte dos EUA de 1990, que negou benefícios do desemprego a membros da Igreja Nativa-Americana, que usavam mescal (uma droga estimulante), como parte das cerimônias religiosas. A lei foi criada para proteger os índios americanos, principalmente.

A Hobby Lobby reivindica a posição de que a RFRA dá às corporações os mesmo direitos à liberdade religiosa que atribui a indivíduos. O tribunal de recursos concordou com a empresa e reverteu decisão contrária de um tribunal de primeiro grau.

Em primeiro grau, o juiz determinou que corporações são entidades separadas de seus proprietários. Os homens criam corporações exatamente por causa desse princípio. Como são entidades separadas, seus donos escapam de responsabilidades financeiras, como tributos e dívidas não pagos.

Além disso, “as corporações não rezam, não adoram a Deus e a santos, não observam os sacramentos ou os dez mandamentos e sequer vão à missa”. Para o juiz, os donos da empresa podem ser fiéis praticantes de sua religião, mas não se pode dizer o mesmo da corporação.

Para o professor D’Errico, basta aplicar ao caso a decisão de 1886: “A corporação é um ser metafísico e, portanto, não tem sentimento. Como pode uma entidade metafísica, mesmo sendo imortal, ter religião, se não tem sentimentos”. Segundo o professor, seria mais fácil converter o monstro de Frankenstein, porque ele tinha sentimentos e lamentou sua criação.

No tribunal de recursos, dois ministros escreveram, em voto dissidente, que a maioria não justificou devidamente a isenção religiosa à empresa — e nem poderia. Afinal, nenhuma corte do país usou, até hoje, a frase “empresa baseada na fé” ou reconheceu que uma corporação com fins lucrativos tenha uma missão religiosa.

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