Presença das câmeras

Transmissão de julgamentos gera controvérsia nos EUA

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5 de janeiro de 2014, 10h05

Enquanto há quase uma unanimidade nacional, nos EUA, sobre as vantagens de a Suprema Corte admitir as câmeras em suas audiências, a transmissão de julgamentos criminais, favoritas do público, ainda é uma questão polêmica. A controvérsia já dura mais de 70 anos e as opiniões dos tribunais mudam de tempos em tempos.

Aparentemente, a principal questão a se examinar, antes de equipar o tribunal do júri com uma ou mais câmeras, é se a transmissão pode violar o direito ao devido processo de uma das partes — notadamente, o do réu. Essa é a questão que está no cerne da controvérsia.

Em 1981, a Suprema Corte dos EUA decidiu, no caso Chandler versus Florida, que o televisionamento de julgamentos criminais, por si só, não viola o devido processo. Mas essa decisão ainda é questionada até hoje pelos opositores da transmissão.

Os julgamentos devem ser públicos, segundo uma cláusula da Constituição dos EUA. Mas os opositores argumentam que essa cláusula foi introduzida na Constituição, sem maiores considerações, em uma época em que não havia televisão, internet e apenas alguns jornais.

Há vários argumentos contra a presença das câmaras no tribunal do júri: 1) pode distorcer o processo de busca da verdade; 2) a testemunha pode se recusar a cooperar; 3) a testemunha pode evitar a verdade por medo; 4) a testemunha pode depor de uma maneira que agrade a família, os amigos, os colegas de trabalho ou os vizinhos; 4) a testemunha pode ficar nervosa; 5) viola a privacidade das vítimas, dos réus e das testemunhas; e 6) a transmissão para TV transforma o julgamento em entretenimento e, com isso, mina a dignidade e o respeito pelas instituições judiciais.

Os juízes contrários à presença das câmeras também expressam preocupações, como com o maior emprego dos recursos financeiros do tribunal e do tempo dos juízes, da administração e da supervisão da transmissão; a necessidade de isolar os jurados para não verem os comentários sobre o julgamento; a dificuldade para escolher um novo júri imparcial, caso o julgamento seja anulado (porque o sistema não aceita jurados que ficaram conhecendo o caso de antemão pela imprensa e já sofreram influências externas ao tribunal); os efeitos psicológicos sobre os jurados, testemunhas, advogados, promotores e juízes; e as mudanças de comportamento para adequá-lo à presença das câmeras.

Também é citado o receio de que advogados e promotores prefiram “jogar para a torcida” — isto é, tentar agradar pessoas que não fazem parte do julgamento — a se concentrar em seu trabalho, como ele deve ser feito.

Esse argumento é rebatido pelos defensores das câmeras no tribunal do júri com a afirmação de que todos os advogados, promotores ou procuradores sabem que sua audiência é formada unicamente pelo corpo de jurados, no tribunal do júri, ou uma bancada de juízes, nos tribunais superiores. Se ele perder a causa por exibicionismo, não vai ficar bem com qualquer audiência externa.

Também não há evidências de que as câmeras minem a busca da verdade, nem de que a presença de câmeras nos tribunais possa exercer um efeito psicológico maior sobre testemunhas do que uma sala de julgamento lotada de estranhos. E nunca haverá evidências disso, porque as condições do julgamento não podem ser reproduzidas em laboratório, de forma que experimentos científicos são impossíveis, eles dizem.

Sobre o argumento de que as câmeras tornam as testemunhas nervosas, o especialista Louis Gohmert comenta: “Eu acho que o nervosismo é uma coisa boa em uma testemunha. Ele faz com que possíveis imperfeições no testemunho se revelem e se tornem mais fáceis de observar”.

A ideia de que as transmissões podem transformar os procedimentos judiciais em entretenimento e reduzir a dignidade ou o respeito pelas instituições judiciais também é falha, argumentam os defensores das câmeras, porque, se isso fosse verdade, teria acontecido a mesma coisa com as programações religiosas na TV. “Em lugar algum as câmeras tiram a dignidade do púlpito”, disse o ex-ministro da Suprema Corte Otto Moore, sempre citado.

Outro argumento frequente a favor das câmeras nos tribunais é o do senador Charles Schumer: “Os tribunais representam uma parte importante de nosso governo e quanto mais nossas instituições governamentais forem expostas ao público, mais dignificadas se tornarão e mais o público as entenderá. As transmissões podem ajudar a desmistificar os tribunais e permitir ao público avaliar como o sistema funciona”.

Para os defensores das câmeras, esse é um argumento valioso, porque a maioria dos americanos não sabe como o sistema judicial funciona. E a maioria dos americanos só obtém informações de qualquer espécie pela televisão. Por isso, a transmissão de procedimentos judiciais é extremamente importante para a viabilização do sistema jurídico e para que a população o entenda.

Vai e vem das câmeras
Hoje em dia, para quem quer saber se os tribunais americanos transmitem seus julgamentos criminais, a resposta é: isso depende. Depende do tribunal e depende do juiz que preside cada julgamento. Alguns tribunais proíbem a transmissão, outros autorizam. Há casos de transmissões mais ousadas, como as de deliberações do júri.

A primeira vez que as câmeras de fotografia e filmagem foram barradas nos tribunais foi em meados da década de 1930, nos EUA. A cobertura sensacional de um caso famoso levou a American Bar Association (ABA) — a Ordem dos Advogados americana — a recomendar, em 1937, o banimento das câmeras nos tribunais.

Na sequência, o Congresso americano aprovou as Regras Federais de Procedimentos Criminais, cuja Regra 53 proibiu fotografia e transmissão televisiva do tribunal do júri. Por isso, em 1962, Todos os estados americanos, com exceção de Texas e Colorado, proibiram as câmeras nos tribunais do júri.

Em 1965, a Suprema Corte anulou a condenação de Billy Sol Estes, sob a alegação de que a cobertura do julgamento violou os direitos de devido processo do réu. Os ministros concluíram que a transmissão era inconstitucional.

“A indústria televisiva, como outras instituições, tem a sua área própria de atividades e de limitações, além das quais não pode ir com suas câmeras. Essa área não se estende para as salas dos tribunais. Ao entrar nesses santuário santificado, onde as vidas, as liberdades e as propriedades das pessoas estão ameaçadas, os representantes da televisão têm apenas os mesmos direitos do público em geral, isto é, observar os procedimentos e, posteriormente, se quiserem, transformá-los em notícia”.

Mas foi uma decisão que não pegou. Alguns estados continuaram experimentando o uso de câmeras. E em 1981, a própria Suprema Corte deu um novo rumo às coisas, ao decidir o caso Chandler versus Florida. Em sua decisão, a corte manteve a condenação do réu, em instância inferior, apesar de parte do julgamento ter sido televisionado, mesmo sob protesto da defesa. Nessa decisão, o então ministro Warren Burger escreveu que a transmissão não violava os direitos ao devido processo do réu.

As câmeras voltaram a ser populares nos tribunais até 1995, quando ocorreu o julgamento de O. J. Simpson, o ator de cinema e astro do futebol americano. Foi o julgamento mais popular do país, com índices de audiência que bateram recordes. Porém, muitos juízes identificaram a influência “perniciosa” das câmeras no julgamento e as baniram de seus tribunais.

Até o então governador da Califórnia Pete Wilson formalizou um pedido ao Conselho Judicial para restituir o banimento da cobertura televisiva e fotográfica dos julgamentos criminais.

Porém, em 1996, a Conferência Judicial dos EUA anunciou que cada tribunal de recurso poderia decidir, por si, se permitia ou não câmeras em seus julgamentos. Muitos estados leram essa medida como um convite a liberar as câmeras.

Em 2003, a “Court TV”, que havia sido criada em 1991, anunciou que atingiu 70 milhões de assinantes. Tão rapidamente quanto possível, todos os 50 estados dos EUA mudaram suas regras e voltaram a permitir a transmissão dos procedimentos judiciais, em caráter experimental ou permanente. Há anos corre no Congresso americano um projeto de lei com o nome pomposo de “Sunshine in the Courtroom Act” (Lei Luz Solar nos Tribunais) — corre, mas nunca chega ao Plenário para votação. Por isso, hoje em dia, o que governa o uso de câmeras nos tribunais americanos não é uma lei, mas um ditado: “Cada cabeça, uma sentença”.

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