Retrospectiva 2013

Indústria de liminares ainda ameaça liberdade de imprensa

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

2 de janeiro de 2014, 11h34

Spacca
“Pensei que era liberdade,
Mas, na verdade, eram as grades da prisão.”
GESSINGER, Humberto[1]

Novamente honrado pelo convite feito pela equipe de redação da ConJur, imagino que a retrospectiva deste ano poderia abordar diversos assuntos da área de comunicação, mas precisamente da liberdade de expressão.

Assuntos dessa seara palpitaram aos montes durante o ano de 2013. Como disse no artigo publicado ano passado, foi pela voz do Supremo Tribunal Federal que, também neste ano, o exercício da atividade de imprensa no Brasil ganhou efetividade e materialidade. Após longo período de trabalho, de inúmeras reportagens e sofrendo toda sorte de ações, a imprensa brasileira assistiu a prisão dos chamados mensaleiros. O que, para muitos não aconteceria, o cumprimento da pena destinada a políticos de envergadura e seus apaniguados foi uma demonstração do resultado do exercício da democracia, constituindo a aplicação efetiva dos normativos constitucionais previstos nos artigos 5º (incisos IV, IX e XIV) e 220.

Também a expressão das palavras ganhou ares de materialidade nos movimentos de rua de 2013, sobretudo da segunda metade do ano. Afastado os excessos e os aproveitadores de plantão, os movimentos soaram como um grito da sociedade, suplicando por uma correção de rumo na ética da política brasileira.

Também há de se destacar a decisão do Tribunal Regional Federal (2ª Região) que, aplicando os princípios democráticos e o texto constitucional, decidiu que o BNDES deve obedecer a lei de transparência, exibindo suas razões e motivações que justificam os empréstimos e investimentos realizados por si[2].

Não pode passar ao largo dessa retrospectiva os debates havidos durante o ano sobre as biografias não autorizadas, que rendeu entre juristas e artistas inúmeros comentários. As opiniões se dividiram entre o exercício do direito de liberdade de expressão e o direito à privacidade, ambos de dignidade constitucional e democrática. Não sendo o presente artigo local para aprofundamento do tema, limito-me a colocar minha opinião no sentido de que havendo conflito de valores constitucionais dessa natureza há de se privilegiar sempre o do interesse público sobre o individual e, no caso, a liberdade de expressão por ser um valor coletivo se sobrepõe.

Não compactuo, em hipótese alguma, com a ideia, defendida por muitos, da possibilidade de censura prévia às questões de biografia, aplicando-se a literalidade do artigo 20 do Código Civil Brasileiro. A propósito, como já dizia Rui Barbosa, “o poder de fazer a lei não compreende o de reformar a Constituição. Toda lei, que cerceie instituições e direitos consagrados na Constituição, é inconstitucional”.[3]

Aliás, a censura e, por conseguinte, a judicialização da imprensa é assunto que ainda preocupa e aqui, nessa retrospectiva, ocupo-me mais sobre o tema. Há alguns anos, a revista eletrônica Consultor Jurídico veiculou matéria abordando a assustadora judicialização da imprensa. Segundo o levantamento realizado pela ConJur, em 2007 havia praticamente uma ação para cada jornalista de um grande grupo de comunicação (3.133 processos para um universo de 3.237 profissionais que exerciam jornalismo nas principais empresas de comunicação).

Ainda que não tenhamos dados mais atuais, em recente visita ao Newseum, o Museu da Notícia em Washington, pude reparar que a classificação do Brasil pelo nível de liberdade de imprensa ainda permanece na cor amarela, o que representa uma liberdade de imprensa parcial. Evidentemente que não se pode reconhecer como verdade absoluta toda e qualquer informação do museu americano, mas levando-se em conta a apuração realizada em 2007 pela ConJur e o que temos assistido nesses últimos tempos, temos que a liberdade de expressão no Brasil ainda encontra-se longe de sua plenitude.

Lembremos que a liberdade de expressão, contida no normativo constitucional (artigo 5º, inciso IV) que reconhece a liberdade de pensamento como direito fundamental, assegura a plena liberdade de imprensa como categoria jurídica imanente de todo Estado cujo regime político é o democrático. Em nossa Constituição, o capítulo da Comunicação Social representa um prolongamento desse direito fundamental e reforça a tutela jurídica que o Estado confere à liberdade de imprensa.

A situação é bastante preocupante, pois a cada escândalo que recebe cobertura da imprensa há o ajuizamento de inúmeras ações contra jornalistas e seus veículos sob o argumento de que tudo ainda está em apuração pelas autoridades públicas, o que, segundo essa corrente, impediria a publicação da notícia ou, na hipótese de publicação, a sua retirada imediata e a condenação da reportagem por crime e danos morais.

O que se assiste, na verdade, como muito bem revelado pela ConJur quando publicou a quantidade de ações que jornalistas e veículos respondem, corroborado pela classificação do Museu da Notícia nos EUA, é que o volume de ações ajuizadas contra os profissionais da imprensa tem como objetivo uma tentativa de intimidação. Se olharmos para os grandes centros e capitais, talvez essa tentativa seja frustrante para os seus idealizadores, mas quando voltamos os olhos para o interior dos Estados o objetivo torna-se mais eficaz.

Mesmo nos grandes centros urbanos, quando divulgadas notícias envolvendo partidos e políticos, a quantidade de ações ajuizadas contra a imprensa é assustadora. Quando do escândalo do mensalão, praticamente todos os grandes caciques do PT demandaram contra a imprensa. Além disso, partidos políticos também são autores de ações sempre que notícias a seu respeito, revelando alguma ilegalidade, é publicada[4].

Do volume de ações que jornalistas e seus veículos de imprensa respondem podemos afirmar, sem temor algum, que 60% a 70% dessas demandas possuem no polo ativo políticos, partidos ou quem com eles possuem alguma ligação.

É o que podemos chamar de judicialização política, cujo propósito é, primeiro, como dito, a intimidação da imprensa e seus jornalistas e, com uma segunda intenção, permitir uma justificativa aos eleitores de que tudo se trata de uma conspiração da imprensa — golpista — e que, inclusive, está processando a todos pela aberração cometida. Busca o político e o partido, com uma mesma ação, intimidar o veículo e seu jornalista e obter argumentos para justificar ao seu eleitorado que as irregularidades noticiadas são produto de uma farsa.

Outro dado bastante preocupante que 2013 ainda mostrou é a quantidade de liminares sendo deferidas a fim de impedir a veiculação de material jornalístico, bem como, com o advento da internet e da gradual mudança da imprensa para essa plataforma digital, a determinação de remoção do conteúdo dos sites de notícia, o que constitui, ambas as situações, uma incontestável censura. Na grande maioria das vezes, os Tribunais de Justiça têm corrigido essa violação constitucional, mas o aparente descompasso dos juízes singulares com os princípios democráticos e o próprio texto constitucional nos causa estranheza.

A indústria de liminares em desfavor da imprensa desrespeita também o entendimento consagrado no voto do ministro Carlos Ayres Britto, quando do julgamento da ADPF 130, que decidiu pela invalidação da Lei de Imprensa em razão de ela conflitar exatamente com os valores democráticos brasileiros.

No acórdão paradigmático, em que o STF deu rendimento hermenêutico ao valor da liberdade de expressão e da atividade jornalística, cuja eficácia processual tem força vinculante, o ministro relator disse em bom tom que “não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço constitucional da prestidigitação jurídica”.

No entanto assistimos ainda inúmeros deferimentos de liminares impedindo a publicação de material jornalístico, tanto no campo das notícias sobre políticos e política, como também nos assuntos relacionados ao entretenimento, estes tendo seus autores processuais os atores e atrizes.

Os Tribunais de Justiça têm, como dito, corrigido a grande maioria das ilegalidades cometidas em primeira instância, mas as decisões proferidas já causam os estragos à livre circulação da notícia e da informação. Exemplo disso foi, já há algum tempo, a ação que a atriz Juliana Paes moveu contra o jornalista José Simão. Somente após o término da novela em que a citada atriz atuava com destaque e que era o móvel de interesse das chistes de José Simão, é que a liminar que proibia o jornalista de escrever sobre a atriz foi, digamos, reformada.

Também recentemente, o ator global Pedro Cardoso promoveu ação contra a editora Abril com a intenção de proibir qualquer uma de suas publicações veicular notícia a seu respeito, limitando-se apenas a cobertura jornalística de sua arte — desde que não fosse para criticá-lo. A liminar deferida em primeira instância foi reformada no Tribunal de Justiça.

O interesse público da notícia, invariavelmente, não pode esperar, de modo que qualquer decisão que imponha censura à imprensa, além de constituir uma evidente ilegalidade, causa enormes prejuízos à democracia, pois priva a sociedade de receber informações de seu interesse.

O dado que impressiona é que essa indústria de liminares tende em 2014 aumentar em razão das eleições. Isso porque tem sido bastante comum políticos e partidos ajuizarem ações contra a imprensa para remoção de conteúdo na internet e proibição de publicação de notícias, sob o argumento de se trata de propaganda eleitoral em desfavor ou em favor de alguém. Os atores políticos, em hipótese alguma, procuram contrapor as informações publicadas ou a publicar, demonstrando estarem elas equivocadas. O argumento é sempre pela propaganda eleitoral indevida, pelo desequilíbrio de espaço eleitoral, fazendo vistas grossas ao jornalismo e ao conteúdo publicado, exatamente no momento em que mais a imprensa mostra-se necessária.

O problema é que boa parte do judiciário regional atende pedidos dessa natureza, determinando a retirada de conteúdo, além de determinar a proibição de publicações que envolvam políticos e seus partidos, como se viu aos montes no ano de 2012. É verdade que boa parte dessas liminares tem sido reformadas pelos Tribunais Superiores e em quase a sua totalidade pelo STF, mas o longo período processual para se socorrer a esses tribunais tem sido bastante prejudicial à sociedade, que fica impedida de ter acesso a informações desse jaez, necessárias para a bem compreensão do jogo político e escolha de seus representantes.

É de se lembrar, como já o fez o ministro Carlos Ayres Brito, que no período eleitoral não nos encontramos num estado de sítio, em que direitos e garantias ficam suspensos pela excepcionalidade do momento. Ao contrário, é exatamente neste período que os valores democráticos soam com maior pujança e, portanto, a crítica jornalística deve, acima de tudo, ser garantida.

Não é por outra razão que a Corte Suprema declarou que “o exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender crítica a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado”.

Evidentemente que não se está a absolver a imprensa pelos erros e equívocos. O jornalista Marcio Chaer, em uma de nossas conversas a respeito do tema, exemplifica com lucidez a questão, citando o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Oliver Wendell Holmes, que disse: “nem a mais rigorosa proteção à liberdade de expressão daria abrigo a um homem que falsamente gritasse fogo em um teatro lotado e causasse pânico”. Ou seja, sempre que houver o abuso a lei deve estar presente para punir, o que não significa venha a punição sob a forma de censura, posto que ilegal na própria essência democrática.

É também preocupante o debate em torno da liberdade de informação comercial. Na esteira do politicamente correto, assistimos em 2013 novos movimentos que verdadeiramente estão a tolher a democracia, sob o pretexto de defesa de minorias e grupos de consumidores considerados incapazes de escolherem os seus próprios gostos e destinos.

Situações como estas invalida o regime democrático, pautado que está, em sua essência, pela liberdade de expressão e acesso irrestrito à informação, direitos fundamentais positivados na Constituição Federal brasileira.

Uma sociedade informada e um país livre dessas amarras produzem cidadãos que não se deixam subjugar, e ao final de tudo conseguem, com um juízo crítico, escolherem propagandas, programas, e os produtos que optam por consumirem, elegendo, inclusive, representantes políticos de forma mais responsável.

A formação da opinião pública[5] não será verificada com a sinceridade e legitimidade necessárias à representação democrática[6] sem que a realidade específica permita a livre expressão do pensamento, o acesso a fontes alternativas de informação e a livre associação[7], na medida em que esses são elementos que proporcionam o debate de ideias acerca do governo e dos rumos que a sociedade pretende dar a sua própria organização.

Com a permissão do exercício do direito de liberdade de expressão, exatamente nos termos que propôs a Constituição brasileira, há de se construir uma sociedade mais consciente de seus direitos e deveres.

Como ensina o professor José Afonso da Silva, “quanto mais o processo de democratização avança, mais o homem se vai libertando dos obstáculos que o constrangem, mais liberdade conquista”.[8]

No Museu da Notícia de Washington há um retrato histórico de séculos das notícias no mundo, mas destaca-se, gravada no mármore da fachada do edifício, a Primeira Emenda da Constituição americana, que garante a liberdade de expressão, de imprensa, de manifestação, de religião e de se reunir em torno de uma causa. Trata-se de um pressuposto de que para qualquer sociedade efetivamente democrática a liberdade de expressão, em todos os sentidos, deve ser plena, sendo impossível conviver com peias, amarras ou limites, tal como também prevê o nosso texto constitucional.

Como dizia o grande Rui Barbosa, citado também na Retrospectiva de 2012: “Deixai a imprensa com as suas virtudes e os seus vícios. Os seus vícios encontrarão corretivos nas suas virtudes.”


[1] O preço in Humberto Gessinger Trio. São Paulo: BMG, 1996
[2] O acórdão foi proferido no recurso de apelação interposto contra sentença tirada no Mandado de Segurança impetrado pela Folha de S. Paulo e Ricardo de Oliveira Balthazar em face do BNDES (processo nº 2011.51.01.020225-7, TRF da 2ª Região)
[3] Rui Barbosa, Obras Seletas, XI – Trabalhos Juridicos, Casa de Rui Barbosa, 1962, p. 46
[4]Nos dias de hoje, é preciso distinguir: os regimes democráticos permitem a expressão do pensamento, quer pela escrita, quer por meio de palavras ou dos gestos, quer através de quaisquer sinais exteriores idealizados pela imaginação humana, ao passo que os regimes totalitários, em qualquer das modalidadesem que se apresentem, intervêm em todas as formas de manifestações do pensamento consideradas prejudiciais ao regime”. CRETELLA JÚNIOR, J. Comentários à Constituição 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 212.
[5] SARTORI, Giovanni, “Quéesla democracia?”, trad. Alejandro Pradera, Santiliana: Madrid, 2007, p.73.
[6] BOBBIO ( Il futuro dellademocrazia, trad. port. de Marco Aurélio Nogueira, O futuro da democracia, 10ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 32) assim sintetiza: “É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condições de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc – os direitos à base dos quais nasceu o Estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte, isto é, do Estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos ‘invioláveis’ do indivíduo.”
[7] DAHL, Robert A., Poliarquia: participação política e oposição, São Paulo, Edusp, 2005, p. 52.
[8] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Ed. Malheiros, p. 233

Autores

  • é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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