Passado a Limpo

Regras para o fornecimento de arreios ao Exército — 1903

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

27 de fevereiro de 2014, 13h16

Spacca
Em 1903, durante o governo de Rodrigues Alves, o então ministro da Guerra encaminhou questionamento ao Consultor-Geral da República, a propósito da renovação de contrato de fornecimento de arreios para o Exército. Noticiou-se que o regulamento padronizava o arreio da firma interessada, de quem 2,5 mil unidades foram compradas. Justificou-se o privilégio então concedido por conta da qualidade, da durabilidade e do preço das mercadorias.

Um conjunto de justificativas compunha exposição de motivos que antecedia a concessão do privilégio. A empresa era estrangeira, pelo que se condicionava a continuidade do benefício à transposição da fábrica para o Brasil. Reconhecia-se que não se podia comprar do estrangeiro material de muita importância para o Exército. No entanto, ao que consta, vivíamos em momento que antecedeu ao modelo de substituição de importações que conhecemos a partir da 1ª Guerra Mundial, pelo que, como regra, produtos industrializados eram importados.

Duas questões centrais foram encaminhadas para o Consultor-Geral. Deveria se responder se o governo poderia renovar contrato anual ao longo da fluência de prazo de privilégio, bem como se questionava também se eventual renovação suscitaria, em favor do detentor do privilégio, possibilidade de requerer perdas e danos, na via judicial.

Registrou-se que havia vedação legal para que o governo assumisse obrigações que transcendessem ao período de um ano. Havia restrições orçamentárias relativas a obrigações que se desdobrassem em período superior a um exercício financeiro. E porque os interessados da situação soubessem, o parecerista invocou a cláusula do sibi imputet, isto é, a responsabilidade era única de quem já tinha conhecimento do vício.

O privilégio, naquele contexto, poderia ser objeto de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública, como dispunha o parágrafo 17 do art. 72 da Constituição Republicana de 1891.

Eventual disputa seria resolvida no Judiciário, alertava o parecerista. É que o contrato traduzia vício insanável, decorrente da vedação de outorga de privilégio que qualificava obrigação, que se desdobraria em período superior a um ano.

Restava esclarecer se a União poderia se exonerar de responsabilização civil por danos que eventualmente causara. O parecerista entendia que a interessada poderia demandar contra o governo, circunstância diferida a desacerto entre partes, o que levaria o problema ao Judiciário.

O problema revela recorrente faceta referente às relações comerciais entre a administração e o particular. Subjacente à discussão havia questões pertinentes a regras de adimplemento contratual, à intangibilidade da equação econômico-financeira, à aplicação de sanções administrativas, isto é, contextualizando-se o problema numa dimensão contemporânea.

Verifica-se alguma indefinição, na medida em que a norma que regia a operação suscitava dúvidas de aplicação, temendo-se possibilidade de judicialização. Nas entrelinhas do parecer a referência à possibilidade de desapropriação, isto é, de pura e simples revogação do privilégio, cuja tangibilidade se materializava na instalação da fábrica no Brasil.

E ainda que prosaica a questão — aquisição de arreios —, percebe-se atualidade no problema, especialmente porque parece óbvia a importância do governo, enquanto consumidor de bens e serviços. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor-Geral da República. – Rio de Janeiro, 3 de março de 1903.

O Ministério da Guerra consulta, em Aviso de 13 de fevereiro do corrente ano, sobre os seguintes pontos de direito:

Tendo o Governo, por Decreto n. 4.347, de 21 de fevereiro do ano passado, adotado, como regulamentar, o tipo de arreamento da invenção e privilegio da firma Brügman, Pereira & Comp., a 21 de junho do mesmo ano, lavrou-se na Intendência da Guerra, com aqueles negociantes, um contrato para fornecimento de 2.500 arreios. Da exposição de motivos que acompanha o decreto, vê-se que, na preferência dada ao novo tipo, atendeu-se não só à opinião dos competentes e ao resultado satisfatório dos estudos feitos sobre a durabilidade e aos preços respectivos, comas razões que transcrevo:

“Não sendo conveniente que o exército brasileiro tenha a fábrica dos seus arreios no estrangeiro, exigi, diz o Ministro que referendou aquele ato, o que aceito pelos proponentes, que fosse ela trasladada para o nosso território. Estando esse invento acobertado por um privilegio, não se pode apelar para a concorrência pública, mas para evitar que os proponentes, senhores do fornecimento, abusem, elevando o preço, ainda lhes impus um preço fixo para o tempo da duração do privilegio e em libras esterlinas, que, calculado pelo cambio do dia, o reduzirá de muito com a subida do cambio. Ainda atendi ao caso que os proponentes não possam, por qualquer motivo, continuar a fornecer ao Exército, estatuindo que, nesse caso, eles abram mão do respectivo privilegio em favor do Governo, que poderá nos seus arsenais e em estabelecimentos particulares mandar confeccionar arreios do tipo de sua invenção.”

 

Pergunta-se:

 

1º Das razões acima transcritas; da segunda parte da cláusula 5ª do contrato; e da imposição, já satisfeita pelos fornecedores, consignada na clausula 7ª, resulta a obrigação do Governo de renovar anualmente o contrato, durante o prazo do privilegio daqueles negociantes?

– As cláusulas aludidas são estas:

“5ª O contrato durará até 31 de dezembro de 1902, devendo renovar-se anualmente durante o prazo que faltar para a terminação dos privilégios, findo o qual o Governo terá direito ao uso das patentes de invenção, no Brasil, exclusivamente, para o fabrico de arreamento necessitado pelo Exercito da União;

7ª Os proponentes ficam obrigados a trasladar a fábrica para o Brasil e competem-se a empregar o material dos curtumes do país”.

 

2º No caso afirmativo, essa obrigação, caso se renove o contrato, pode ser incluída como cláusula em um contrato que só pode vigorar até 31 de dezembro, termo do exercício financeiro, ou deve ser consignada em um termo à parte?

 

3º O caso do Governo limitar-se a renovar simplesmente o contrato para este ano, sem cogitar de estabelecer a obrigação de renovação durante todo o tempo do privilegio, não poderá dar lugar a uma ação por parte dos fornecedores por perdas que lhes possa acarretar a imposição da clausula 7ª já satisfeita, na suposição da renovação daquelas condições?

 

4º No caso de dever ser a obrigação da renovação feita em termo especial, não pode neste ser consignada a cláusula de nulidade dessa obrigação, em virtude de reincidências em falta por parte dos fornecedores?

 

Respondo em globo, porque a matéria dos quesitos não permite separação. A questão é regida pela lei n. 3.018, de 5 de novembro de 1880, art. 19, que proíbe ao Governo, salvo concessão especial do Poder Legislativo, fazer contratos por tempo excedente do ano financeiro corrente, embora se trate de serviços que devam naturalmente ser contemplados na lei do orçamento.

A razão dessa proibição é obvia. Se esta disposição é rigorosa ou não, no que respeita ao lapso de tempo, não me cabe aqui discuti-la. Esse período, poderia ser mais extenso, como se observa, por exemplo, na legislação italiana, onde os contratos, embora não devam ser estipulados com ônus continuativos para o Estado, senão por motivos de absoluta conveniência ou necessidade reconhecida pelo Poder Legislativo, são todavia, para despesas ordinárias, permitidos até nove anos.

A nossa lei, porém, limitou essa faculdade administrativa a um ano; o que importa dizer que, segundo o sistema aqui adotado, a administração não pode vincular os futuros orçamentos por via contratual com ônus que não tenham sido previamente autorizados pelo poder competente, ou estejam nas condições previstas no regulamento anexo ao decreto n. 2.409, de 23 de dezembro de 1896, art. 7º, § 3º.

Se o fizer, arrisca-se a não encontrar dotação suficiente para satisfazer os compromissos que por esse meio tenha assumido; e as cláusulas em que tenha sido desrespeitado aquele preceito legal devem considerar-se como não existentes.

Assim, pois, sou forçado a reputar insubsistente a clausula 5ª do contrato que me foi presente; e na mesma censura o novo contrato, se a incluir.

O termo, consignando essa obrigação, lavrado e assinado aparte, seria apenas uma mudança de forma; em nada alteraria a substância do compromisso; e vincularia do mesmo modo o futuro orçamento, que foi o que o legislador procurou evitar. Os indivíduos que contrataram com a administração tinham o dever de verificar o defeito de poderes da outra parte contratante. E, tendo-o feito o interessado a despeito disto, acarreta as consequências do vício do contrato. Sibi imputet. Todavia, a questão não pode ser solvida pelo dispositivo da lei n. 3.018.

O Governo, expedindo o decreto n. 4.347, de 21 de fevereiro de 1902, que adotou o novo plano de arreamento para a montada dos oficiais e praças do Exército, criou uma situação anormal, tanto para si como para os fornecedores, situação que aliás podia ter sido evitada pela desapropriação, nos termos dos arts. 72, § 17, da Constituição, e 50 da lei n. 221, de 1894. Esse decreto entra em conflito com a lei, porquanto torna impossível qualquer outro contrato, pelo menos enquanto não for revogado o mesmo decreto, desde que se trata da adoção de arreios de invenção privilegiada. O Governo, por este ato de jurisdição espontânea, inibiu-se de realizar fornecimentos em outra fábrica que não seja a dos donos do privilegio. Por essa parte, portanto, não necessitariam os fornecedores de outra garantia, enquanto o decreto vigorasse. A renovação dar-se-ia fatalmente, independente de qualquer clausula infringente do preceito acima indicado.

Surge, entretanto, uma dificuldade resultante do caráter aleatório a que ficarão expostos os termos dos futuros contratos relativamente ao número, preços e a qualidade do material. Já se vê que, na renovação deles, poderão aparecer obstáculos opostos, quer de um lado, quer de outro. Como solver as dúvidas ocorrentes? E se o Governo convier em revogar o decreto n. 4.347?

Dados estes conflitos, será inevitável a intervenção do Poder Judiciário.

Convém, contudo, saber até onde chega o direito dos fornecedores.

É verdade que, em virtude da clausula 7ª do contrato realizado a 21 de junho do ano passado e conforme fora anteriormente ajustado com o Governo, segundo consta da exposição de motivos acima transcrita, eles trasladaram a fábrica que tinham no Rio Grande do Sul para esta Capital; e naturalmente desse ato lhes advieram despesas que só pela continuidade dos fornecimentos serão em tempo ressarcidas.

Resta, porém, verificar, em face dos princípios correntes de direito, se, tendo os ditos fornecedores baseado o seu ajuste na infração de um preceito de lei, podem alegar, para pedir indenização por prejuízos, no caso de recusa de inserção da cláusula de renovação obrigatória do contrato, a ignorância do aludido preceito.

Quanto a manutenção das cláusulas continuativas do contrato, já ficou evidenciado que nenhum direito lhes assiste á reclamação, nulo o mesmo contrato por vício insanável, a cujas alternativas e riscos não se podem furtar os contratantes que as aceitaram. Mas, apesar disto, oferece-se a questão por uma outra face.

Tratando-se de prejuízos decorrentes de ato fundado em um decreto de natureza administrativa, como é o expedido sob n. 4.347, isto é, tendo de atender-se a reclamação que, porventura, venha a originar-se da insubsistência desse ato de gestão, pode a União exonerar-se da responsabilidade civil pelos danos que causa?

Entendo que não pode. O decreto n. 4.347 é de natureza regulamentar; expedido pelo chefe do Poder Executivo, estabelece relações de ordem geral, produzindo efeitos, enquanto não revogado. E se terceiro, na fé da sua validade, foi induzido em erro e, baseado nele, praticou atos de que lhe sobrevenham prejuízos, é inquestionável o seu direito a ação contra o Estado. Pela lesão, oriunda de culpa do agente, que o representa, não simplesmente in vigilando, mas como órgão direto, para esse efeito com ele identificado, pouco importando que as funções sejam politicas ou jurídico-privadas, fica a União sujeita á jurisdição dos tribunais civis e às cominações do direito privado.

Esta doutrina, professada pela generalidade dos mestres de direito, está consagrada na nossa legislação. (…) Esse direito, porém, não existente ainda para os fornecedores, nascerá, todavia, do conflito que venha a aparecer por desacordo de vontades na especificação das clausulas nos contratos que hajam de ser propostos, na defesa do privilegio, e pela revogação do mesmo decreto n. 4.347, como ato consequente e liberatório.

Só nesse momento, verificada a lesão, poderão os interessados agir por via judiciária. T. A. Araripe Junior.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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