Condenações sem provas

STF deve reconhecer que não houve quadrilha na AP 470

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26 de fevereiro de 2014, 6h30

O Supremo terá de decidir nesta quarta-feira (26/2) se parte dos réus da Ação Penal 470, conhecido como processo do "mensalão", formava ou não uma quadrilha. A decisão vai muito além de uma esperada redução das penas e sinaliza que a tese da Procuradoria-Geral da República, que prevaleceu no julgamento de 2012, tem falhas estruturais, como bem destacaram os advogados de defesa na última semana.

Nas palavras do ex-procurador Roberto Gurgel, formou-se uma “sofisticada organização criminosa” destinada a comprar votos de parlamentares no Congresso. “Foi sem dúvida o mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de dinheiro público realizado no Brasil”, afirmou Gurgel no início do julgamento. Portanto, teria se formado, na avaliação do Ministério Público, uma quadrilha para desviar recursos e comprar votos a favor do governo na Câmara.

A nosso ver ocorreram condenações sem provas e a conclusão de que se formou a tal organização criminosa para “assaltar e dominar a República” não se sustenta diante das contraprovas que atestam que não houve desvio de dinheiro público nem compra de votos.

Infelizmente, no entanto, o julgamento dos infringentes não permite o reexame das provas dos crimes de peculato (desvio de dinheiro público) e corrupção ativa e passiva (compra de votos), correção que só mesmo uma revisão criminal poderá fazer.

A discussão sobre quadrilha dividiu os ministros em 2012 e, no ano passado, novas manifestações no Supremo sugerem que os réus deverão ser absolvidos. A razão da divergência é simples: a acusação não conseguiu provar que os réus se reuniram de forma permanente com o propósito de cometer crimes. Quatro ministros entendem que não houve formação de quadrilha e sim, como votou Rosa Weber, “situações em que os réus fazem apenas uma coparticipação para obter vantagens individuais”.

Mas diante das pressões por um julgamento exemplar, não seria possível concluir que “formação de quadrilha”, “sofisticada organização criminosa” ou simplesmente “associação criminosa” é tudo a mesma coisa?

Embora seis ministros tenham entendido, em 2012, que sim, a divergência aberta por Ricardo Lewandowski e acompanhada por outros três ministros nos leva a concluir que a resposta é não. De acordo com o Código Penal, o crime de formação de quadrilha ocorre quando três ou mais pessoas se associam, de maneira estável e permanente, com o propósito de cometer crimes e perturbar a paz social. O que, convenhamos, não ficou provado no julgamento.

Segundo o voto da ministra Cármen Lúcia, no caso da AP 470, tantos os réus ligados aos partidos políticos quanto os relacionados às agências de publicidade não se associaram com este fim específico. Para a ministra, eles já ocupavam tais cargos quando outros crimes foram cometidos.

A ministra Rosa Weber argumentou ainda que só atuam em quadrilha pessoas que sobrevivem dos produtos conquistados pelo crime. “O fato narrado na denúncia caracteriza coautoria e não quadrilha”, afirmou à época do julgamento.

É preciso lembrar que o delito de formação de quadrilha surge no Código Penal brasileiro na época do cangaço no sertão nordestino, quando a simples existência do grupo organizado por Lampião causava desassossego na sociedade. Ou, como diz o artigo 288 do código, era uma ameaça à paz social. O exemplo do cangaceiro, como referência a quadrilha, chegou a ser citado por Cármen Lúcia em plenário.

O debate tampouco é inédito no Supremo. Já em 2007, quando da aceitação da denúncia que deu origem à Ação Penal 470, já havia vozes na própria Corte que entendiam que a reunião de algumas pessoas para cometer delitos — sejam de ordem financeira ou eleitoral — dentro de uma agremiação política não caracterizava a formação de quadrilha. Mesmo assim, a denúncia foi aceita sob o argumento de que era preciso ir a fundo na investigação. Cinco anos depois, superada toda a instrução penal, a acusação do Ministério Público manteve-se igualmente inepta.

Em agosto do ano passado, um caso similar chamou a atenção e sua decisão caminhou na linha da divergência aberta por Lewandowski. O STF condenou o senador Ivo Cassol (PP-RO) e outros dois réus por fraude em licitações na cidade de Rolim de Moura, em Rondônia, entre 1998 e 2002, porém os absolveu do crime de quadrilha. No entendimento do ministro Dias Toffoli, revisor do caso, não ficou provada a associação permanente para cometer crimes, como acusou o Ministério Público, restando apenas a união dos envolvidos para delitos pontuais, no sistema de coautoria. Os ministros Luis Roberto Barroso e Teori Zavascki, que ainda não se pronunciaram sobre a AP 470, acompanharam o voto de Toffoli.

Há, portanto, uma clara contradição no Supremo que precisa ser resolvida. Que posição, afinal, deverá prevalecer no Supremo, criando jurisprudência para casos futuros em todas as instâncias do Judiciário? Resta saber se, na análise dos Embargos Infringentes, a condenação será revista ou se a Corte irá sucumbir à forte campanha da mídia e da oposição, especialmente em ano eleitoral, para inflar a opinião pública contra qualquer revisão.

Se prevalecer a sentença de que houve formação de quadrilha no caso do mensalão, os participantes de qualquer crime cometido dentro de uma empresa, seja de sonegação fiscal, evasão de divisas ou até mesmo espionagem industrial, também poderão ser acusados e condenados por quadrilha. Se o rigor na punição seduz sob a ótica do combate exemplar à corrupção ou qualquer forma de crime, não há dúvida que do ponto de vista jurídico é um atraso com efeito nocivo a toda a sociedade.

É chegada a hora de o Supremo reparar parte dos erros cometidos na AP 470. Se ainda não é possível rever o mérito sobre temas gritantes como a falácia do desvio de dinheiro público, deve-se pelo menos reconhecer que nunca houve qualquer quadrilha, sofisticada ou não, com propósito de agir criminosamente para comprar votos.

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