Exagero inexplicável

Criar lei antiterror para inibir manifestações é um erro

Autor

  • João Paulo Orsini Martinelli

    é advogado criminalista professor do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP/SP) doutor em Direito Penal pela USP e pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal).

26 de fevereiro de 2014, 11h35

Em tempos de manifestos populares, o Congresso, com o pretexto de conter a onda de violência, quer colocar em votação o PLS 499/2013, que define os crimes de terrorismo. Não se pode negar que há comportamento violento de alguns manifestantes e a reação do Estado, por meio da Polícia Militar, também não é nada pacífica. No entanto, comparar as manifestações — e os atos de violência nelas envolvidos — com aquilo que se convencionou denominar “terrorismo” mundo afora é um exagero inexplicável.

Na justificação do Projeto, o legislador diz que “o terrorismo é um fenômeno que há muito tempo preocupa o cenário internacional e as ordens internas, embora tenha sido concebido de modo distinto no tempo e no espaço”. Mais adiante, continua: “De qualquer maneira, urge o estabelecimento de contornos jurídicos concretos e razoáveis para a repressão penal dos atos terroristas, já que, de um lado, eles são expurgados pela Constituição Federal de 1988 e por muitos tratados ratificados pelo Brasil, gerando a obrigação jurídica de fazê-lo. De outro lado, em razão de não haver entre nós tipificação desse crime, torna-se confusa a aplicação pelos órgãos internos desse instrumental normativo, que acabam por criar sua própria doutrina de modo autônomo e contraditório”.

O terrorismo não é tema novo no direito brasileiro. A Lei de Segurança Nacional já faz menção a “atos de terrorismo” desde 1983, assim como a Constituição Federal, de 1988, e a Lei dos Crimes Hediondos, de 1990. Apesar dos citados dispositivos, nunca houve grande preocupação em tipificar o terrorismo, pois não é um problema recorrente no Brasil. No cenário internacional, os ataques de 11 de Setembro nos EUA — e posteriormente os atentados na Espanha e na Inglaterra — suscitaram a necessidade de declarar “guerra” aos terroristas, o que possibilitou a edição, entre outros, do Patriot Act, um conjunto de restrições de direitos dos declarados “inimigos” da nação norte-americana.

No âmbito doutrinário, ganhou força a doutrina do Direito Penal do Inimigo, proposta pelo professor alemão Günther Jakobs. Para o autor, os indivíduos devem ser divididos em dois grupos: cidadãos e inimigos. Para aqueles, que reconhecem a soberania estatal, valem os princípios fundamentais do Direito Penal e do devido processo legal, uma vez que são parte do contrato social. Para os inimigos — no caso, os terroristas — os princípios e garantias tornam-se ineficazes, pois estes não reconhecem o Estado e a vigência das normas. Portanto, para o inimigo utiliza-se a legislação de “guerra”, o que autoriza o julgamento sumaríssimo, a aplicação de penas desproporcionais e a antecipação da punição antes mesmo da prática do suposto ato terrorista. Em resumo, o Direito Penal do Inimigo retira a condição de cidadão de quem é suspeito de ser um terrorista.

O conceito de terrorismo é bastante problemático. Tanto que são muitos os documentos que buscam uma definição suficiente, dentre os quais destacam-se a Convenção para a Supressão do Financiamento ao Terrorismo, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e a Convenção Interamericana sobre o Terrorismo. Nessas convenções, surgem divergências e lacunas, como, por exemplo, a necessidade de existirem alvos civis, o elemento transnacional, o sentimento generalizado de pânico, o objetivo político etc. Recentemente, o Tribunal Especial para o Líbano definiu terrorismo com três elementos: a prática ou a tentativa de um ato criminoso; a intenção de espalhar medo entre a população ou, direta ou indiretamente, coagir um autoridade nacional ou internacional a fazer ou deixar de fazer algo; o ato criminoso envolve um elemento transnacional. Enfim, as diversas tentativas internacionais de definir o terrorismo demonstram a complexidade do fenômeno.

No Brasil, tudo tende a ser resolvido pela “simplicidade”. Primeiramente, o artigo 2º do projeto de lei diz que terrorismo é “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”. Soma-se essa redação à do artigo 4º: “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial” — terrorismo contra a coisa. Além das definições, o projeto também tipifica o financiamento, a incitação e o favorecimento pessoal ao terrorismo. Por fim, temos o crime denominado “grupo terrorista”, definido como a associação de três ou mais pessoas com o fim de praticar terrorismo.

Assim, é possível apontar dois grandes problemas do projeto. O primeiro é considerar o Brasil um país com tendência ao terrorismo, assim como compreendido no âmbito internacional. Os problemas de violência no país são outros e possuem raízes distintas. Há, sim, graves problemas sociais e uma corrupção endêmica que, somados, resultam em índices alarmantes de criminalidade. As soluções, portanto, são diferentes do que se pretende no combate ao terrorismo no exterior. Quanto mais leis penais são criadas, fica provado que a criminalidade não se contém e que o Direito Penal, isoladamente, não apresenta respostas eficientes.

A segunda questão é a falta de técnica legislativa do projeto. Algumas expressões são tão difíceis de definir quanto eliminar um grupo terrorista radical. O que vem a ser “terror ou pânico generalizado”? A questão é de fundamental importância, pois, caso o projeto seja aprovado, como provar o dolo de difundir o terror ou pânico generalizado? Como fundamentar uma sentença condenatória, satisfatoriamente, pelo crime de terrorismo? O que diferencia uma morte provocada por ato terrorista do homicídio? Quais as diferenças entre um grupo de extermínio e um grupo terrorista? As perguntas são tantas e as respostas são precárias, o que torna o Projeto inviável para aprovação, isso se prevalecer o bom senso.

Se a intenção do Estado, com a aprovação do projeto, é conter a onda de protestos que podem ocorrer durante a Copa do Mundo, o país retrocederá muito caso o objetivo seja concretizado. Já não bastam os tipos penais temporários da Lei Geral da Copa, cujo objetivo é proteger o patrimônio da FIFA, quer-se calar aqueles que desejam manifestar sua insatisfação com o evento. Se houver algum ato de violência durante os protestos, já existem leis penais suficientes para processar e julgar os acusados, bem como para aplicar a respectiva pena em caso de condenação.

Na atual conjuntura, em que as Cortes Européia e Americana de Direitos Humanos declararam que o crime de desacato — ainda persistente no Brasil — é incompatível com o direito fundamental à liberdade de expressão, não seria legítima a aprovação da lei “anti-terror” como tentativa de inibir manifestações. Já temos leis penais arbitrárias em excesso e todas já provaram que a inflação legislativa é uma forma ilegítima de limitação das liberdades. Caso o projeto seja aprovado, faltará pouco para o Estado distinguir os brasileiros entre “cidadãos” e “inimigos”.

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