Sigilo da fonte

Crítica feita a juiz por meio de ouvidoria não é injúria

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25 de fevereiro de 2014, 11h12

O sigilo da fonte, que parte do princípio da boa-fé, assume dimensão ainda maior na relação do cidadão com o ouvidor. Isso porque o desempenho da função de uma ouvidoria pressupõe relação de confiança e confidência. Com base nesse entendimento, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou sentença e absolveu, por unanimidade, uma jornalista que havia sido condenada criminalmente por criticar um juiz por meio da Ouvidoria-Geral do TJ-RJ. Por causa de duas mensagens eletrônicas enviadas ao ouvidor, a jornalista foi condenada por calúnia, injúria e difamação contra funcionário público. Da pena de cinco anos e meio, chegou a cumprir três meses no regime semiaberto.

Em 29 de abril de 2007, a jornalista Ana Elizabeth Perez Baptista Prata enviou à Ouvidoria do TJ-RJ um e-mail questionando a conduta do juiz João Carlos de Souza Correa, então titular da comarca de Armação de Búzios. Sua principal crítica dizia respeito ao fato de o magistrado estar há três anos para julgar uma ação ajuizada por ela contra um empresário que teria contra si “acusações de pedofilia e enriquecimento ilícito”. Ela qualifica ainda como “fato estarrecedor” o juiz ter concedido a medalha do Dia da Justiça ao homem, cujo restaurante foi fechado após ser apontado como local de prostituição infantil por uma CPI do Senado. “Fico pensando o quanto é injusto dependermos de pessoas com este caráter para julgar ações que podem, se eles quiserem, destruir nossas vidas”, diz um trecho da mensagem.

Na representação perante o Ministério Público, o juiz João Carlos de Souza Correa noticiou a prática de crimes contra a sua honra, tendo como base cópia da denúncia fornecida pela Ouvidoria do TJ-RJ. A ação foi julgada parcialmente procedente pelo juiz Rafael Rezende das Chagas, que condenou, em 2009, a jornalista nos artigos 138 e 139 (crimes de calúnia e difamação) e 140 (injúria) do Código Penal, além do pagamento das custas processuais. 

Animus narrandi
Em sua defesa, a jornalista requereu a absolvição alegando suspeição do juiz, cerceamento de defesa, falta de justa causa, incompetência do juízo, nulidade do feito e atipicidade de conduta. Afirmou ela que, ao enviar o e-mail para a Ouvidoria, visava exclusivamente a apuração, pelo órgão competente, das denúncias ali descritas, uma vez que, se a sua intenção fosse publicar tais notícias, poderia usar outros meios de divulgação como revista ou rádio.

As alegações que visavam a nulidade do processo foram rejeitadas pelo desembargador José Muiños Piñeiro Filho. Entretanto, o relator do acórdão deu provimento ao recurso, por entender que não houve intenção de injúria, difamação ou calúnia. Ao absolver a jornalista, reconheceu o animus narrandi, que é o exercício legítimo do direito de crítica.

Piñeiro Filho cita a definição do jurista Nelson Hungria, para quem o dolo específico do crime contra a honra pressupõe a vontade de injuriar ou difamar com intuito de ofender. “Ressalte-se que, na presente hipótese, o responsável pela publicidade do teor das mensagens eletrônicas encaminhadas pela recorrente à Ouvidoria Geral foi o então ouvidor, o eminente desembargador Manoel Carpena Amorim, que, com as devidas vênias, laborou em equívoco ao encaminhar as denúncias diretamente ao suposto ofendido, com a indevida identificação da signatária”, pontua.

Histórico
Em seu voto, o relator faz um resumo da origem e evolução das ouvidorias. Surgida na Suécia, em 1809, a figura do Justitiombudsman tinha como finalidade o controle da administração, especialmente em relação ao controle da legalidade, o que explica sua vinculação à proteção dos direitos individuais. Instituída ainda no Brasil colonial, a função de Ouvidor-Geral foi desempenhada pelo então corregedor-geral da Justiça, Pero Borges, que tinha a missão de reportar ao rei de Portugal tudo o que acontecia na Colônia.

De acordo com o desembargador, as ouvidorias ressurgem no país em 1988 com novo significado. Com a redemocratização, tanto a Constituição como o Código de Defesa do Consumidor absorvem a tendência global de preocupação com a eficiência dos serviços e a qualidade dos produtos. Nesse contexto, diz, “a Administração Pública passou a medir grau de satisfação dos seus administrados, otimizando seu desempenho e emprestando nova feição à figura do ouvidor, que hoje se caracteriza pela busca da excelência dos serviços administrativos, pela defesa dos direitos humanos e pelo empenho na viabilização do exercício da cidadania”.

Voltando ao caso concreto, Piñeiro Filho cita a “cartilha” da Ouvidoria Geral do Poder Judiciário fluminense, disponível para consulta no próprio site do TJ-RJ. O trecho pinçado pelo relator diz assim: “Há necessidade de identificação do usuário quando da manifestação? Sim, pois o anonimato é vedado pelo artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal”.

Segundo o desembargador, embora o teor das mensagens pudesse configurar, em tese, os delitos citados, as denúncias tinham como endereço “o órgão administrativo competente”, cuja função é “proporcionar condições para o recebimento e tratamento das manifestações da sociedade, colaborar na busca de soluções adequadas e respostas rápidas, fortalecer a imagem institucional por meio de interpretações sistêmicas e disseminação das informações obtidas e auferir oportunidades de melhoria no atendimento público”. Nesse sentido, afirma, a jornalista apenas exerceu regularmente seu direito constitucionalmente assegurado de comunicar à Ouvidoria do Tribunal de Justiça supostas irregularidades praticadas por um magistrado.

Clique aqui para ler o acórdão.

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