Embargos Culturais

A República Velha e o presidencialismo brasileiro

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

23 de fevereiro de 2014, 8h00

Spacca
O governo Floriano Peixoto foi marcado por muita oposição, especialmente no sul do país, a exemplo da Revolução Federalista, que se iniciou no Rio Grande do Sul. Foi o escritor Lima Barreto, que não tinha razões para apreciar Floriano, e que do marechal não gostava, quem nos fornece prosaico retrato, na memorável cena do Policarpo Quaresma, quando o anti-herói encontra-se com o presidente:

“Era vulgar e desoladora [a aparência do Presidente]. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande ‘mosca’; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, cheio de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos[1] ”.

Os civis retornaram com Prudente de Moraes, paulista e republicano histórico. Com Prudente, “a oligarquia consegue subir ao poder (…) o predomínio desta nos Estados e a absorção de novos grupos, por meio de alianças, levam-na a lutar pela legalidade[2]”, o que teria justificado, inclusive, a violenta repressão a Canudos, que se conhece em primeira mão pelos relatos de Euclides da Cunha.

A expansão da produção agrária brasileira, e sua inserção no comércio internacional, no início do século XX, tiveram também como resultado a concentração de poder nos Estados produtores dos gêneros de exportação; um paulista sucedeu a Prudente de Moraes. Começou a política do café com leite.

Campos Salles tomou posse em 1898. Em seu primeiro pronunciamento, explicou como entendia a relação entre os três poderes, e como inseria a função que exerceria nesse conjunto de instituições políticas:

“Defendendo intransigentemente e com o mais apurado zelo as prerrogativas conferidas ao poder que vou exercer em nome do sufrágio direto da Nação, afirmo aqui, desde já, o meu mais profundo respeito ante a conduta dos demais poderes, na órbita de sua soberania. Esta atitude, que será rigorosamente observada, dará forças ao depositário do Executivo para, de seu lado, opor obstinada resistência a todas as tentativas invasoras. O papel do Judiciário no jogo das funções constitucionais torna mais remotas as suas relações com os outros poderes. É um poder que não luta; não ataca; não se defende: julga. Sem a iniciativa que aos outros cabe, a sua ação não se manifesta senão quando provocada. Fora desta região de paz e pureza, a única em que reina a justiça, o seu prestígio moral desfaz-se ao sopro das paixões. São mais diretas e mais frequentes as relações entre o Executivo e o Legislativo. Estes são os poderes que colaboram com estreita aliança na dupla esfera do governo e da administração; a eles, pois, compete manter, no desdobramento de sua comum atividade, uma contínua e harmônica convergência de esforços para o bem da República. É indiscutível – pois que é da natureza do próprio regime – que ao Executivo cabe a iniciativa de medidas legislativas, de caráter administrativo. É claro, porém, que de nada serviria a ação conjunta dos demais poderes, se o Legislativo recusasse o seu acordo, tomando orientação diversa ou contrária[3] ”.

Campos Salles enfrentou a crise financeira, negociando com os banqueiros ingleses, o chamado Funding Loan, o que fizera, na visão de um estudioso desse período, com “prudência e extraordinário critério”. Outro paulista sucedeu a Campos Salles, o também bacharel Rodrigues Alves, lavrador de café, interessado na alta dos preços do produto, mas que contra esse lucro fácil teria se insurgido, traduzindo, em sua ação, uma virtuose política que parece marcar os presidentes do período.

Um representante das oligarquias de Minas Gerais sucedeu a Rodrigues Alves; trata-se de Afonso Pena que, logo após eleito, excursionou pelo país, em pequena comitiva, o que entusiasticamente divulgado pelos jornais do país. Na capital pontificava também o gaúcho Pinheiro Machado, cuja obsessão republicana e presidencialista vinha deste o manifesto de 1870, mas que muito fez pela instabilidade do regime, o que decorre de seus modos idiossincráticos de caudilho, e de sua política de propósitos pessoais.

Numa percepção negativa, o presidencialismo da República Velha se realizou no coronelismo, este centrado na figura do coronel, denominação “outorgada espontaneamente pela população àqueles que pareciam deter em suas mãos grandes parcelas do poder econômico e político[4]”. Mantinha-se a autoridade central na figura do presidente, que simboliza a escolha nacional, mediada por seu partido, como deixa claro Hermes da Fonseca (que era militar) em excerto de seu discurso de posse:

“O presidente no nosso regime, especialmente nas circunstâncias em que se encontra o país, não se deve arvorar em diretor da política nacional: é a nação e não ele quem faz política. Mas, como nenhum governo pode fugir à necessidade de apoiar-se em forças políticas organizadas, governarei com o partido que amparou a minha candidatura e que com as minhas idéias de administração se identificou; com ele desenvolverei as teses anunciadas no meu manifesto eleitoral e com ele procurarei corresponder à expectativa de quantos, não filiados ao partido, confiaram no meu patriotismo[5] ”.

Tinha-se um “(…) sistema baseado na dominação de uma minoria e na exclusão de uma maioria do processo de participação política (…) Coronelismo, oligarquia e política dos governadores fazem parte do vocabulário político republicano em análise[6]. O coronel comandava as bases locais, municipais, controlando sua gente, e representando na instância imediata o governador que, por sua vez, se aproximava do Executivo central, que apoiava, e de quem recebia favores.

Uma linhagem política informal — mas com estruturas gerais fixadas no sistema de direito público então vigente — ligava o coronel ao presidente. As bases últimas de nosso presidencialismo fincavam-se nos modelos de dominação local, que também se mantinham pelo voto de cabresto.

A década de 1920 conheceu intensa movimentação política marcada por um ideal de salvação nacional, mediado pelo tenentismo, movimento militar que protagonizou a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana e que redundou na Coluna Prestes. Um pensamento político autoritário que se desenvolveu na Primeira República, e que canalizou alguma convergência de interesse com os grupos dominados, na imagem do “Leviatã benevolente[7] ”, não resistiu à formação de novas alianças, que derrubaram Washington Luís em 1930, inaugurando-se uma nova fase de concepção e de ação de nosso presidencialismo.


[1] Lima Barreto, Afonso Henriques de, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, in Prosa Seleta, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 362.
[2] Carone, Edgard, A Primeira República- 1889-1930, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 30.
[3] Manuel Ferraz de Campos Salles, discurso de posse proferido em 15 de novembro de 1888, in Bonfim, João Bosco Bezerra, cit., pp. 69-70.
[4] Fausto, Boris (direção), História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, Volume 8, O Brasil Republicano- Estrutura de Poder e Economia (1889-1930), Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 173.
[5] Discurso de posse de Hermes da Fonseca, proferido em 15 de novembro de 1910, in Bonfim, João Bosco Bezerra, cit., p. 133.
[6] Resende, Maria Efigênia de, O Processo Político na Primeira República e o Liberalismo Oligárquico, in Ferreira, Jorge e Delgado, Lucilia de Almeida Neves, O Brasil Republicano I- Tempo de Liberalismo Excludente- da Proclamação da República à Revolução de 1930, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 91.
[7] Cf. Fausto, Boris, História Geral da Civilização Brasileira- Tomo III, Volume 9, O Brasil Republicano, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. A expressão Leviatã benevolente derivaria de uma imagem de Fernando Henrique Cardoso, relativa à aliança entre oligarquias e necessitados, num contexto de “necessidade de sobrevivência de todos”, como se lê em Boris Fausto, aqui citado.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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