Ideias do Milênio

"O mundo ruma para mais uma crise em 2016"

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21 de fevereiro de 2014, 9h11

Entrevista concedida pelo escritor norte-americano Thom Hartmann ao jornalista Luís Fernando Silva Pinto, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

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São cenas que fazem parte da memória dos EUA. Em 1929 a grande depressão deixou 13 milhões de americanos desempregados, reduziu a produção industrial do país quase pela metade, provocou a quebra de mais de 5 mil bancos e afetou o equilíbrio econômico mundial. Em 2008, a crise mais recente em Wall Street custou aos americanos cerca de 25% de todo o capital acumulado nas últimas décadas. Entre perdas no valor das casas próprias e perdas no sistema bancário, o prejuízo estimado da crise ultrapassou US$ 8,3 trilhões, cerca de 3 milhões de pessoas perderam o trabalho, levando o número de desempregados no país a mais de 12 milhões. Para o escritor Thom Hartmann, os EUA vivem entre crises cíclicas. A cada seis ou sete décadas o país esquece o último desastre e embarca sem freios em uma nova crise provocada por predadores que não hesitam em colocar a economia em risco para acumular capital e poder. E a crise para Hartmann não acabou. O que começou em 2008 resultará, para ele, em um novo “crash” dentro de dois anos.

Luís Fernando Silva Pinto — Quando falamos numa crise que está por vir, num crash, você lista várias coisas: algumas são fatores, outras poderiam ser chamadas de sinais cíclicos. Eu gostaria que o senhor explicasse algumas delas para chegarmos à noção do que poderia ser, na sua definição, o próximo crash. Uma delas é o acúmulo de dinheiro. Você fala de trilhões de dólares sendo acumulados em todo o mundo e também de um mercado de derivativos que é, na sua estimativa, ou melhor, você cita uma estimativa de US$ 1,2 quatrilhão, o que é mais de 20 vezes todo o PIB mundial. O que isso significa? Por que os bancos, os fundos de hedge e os governos estão acumulando dinheiro?
Thom Hartmann — Durante a última grande depressão, na década de 1930, algumas das maiores fortunas do mundo foram feitas. Isso porque o que mais se ouvia na época era “dinheiro vivo manda”. Quem tinha dinheiro comprava tudo baratíssimo, então eu acho que estamos no meio dessa crise neste momento. O Blackstone Group, a maior firma de fundos privados dos EUA, em um dia, comprou milhares de casas em Atlanta. Foram US$ 7,5 bilhões em imóveis. O que está acontecendo é que quem tem dinheiro vivo consegue comprar coisas por uma fração do que custavam, e em vez de fazer apostas sobre apostas — para chegarmos à sua pergunta sobre derivativos, que tinham as hipotecas como valor original do qual derivavam — o que não é mais legal desde a lei Dodd-Frank, agora eles próprios compram as casas e, em vez de monetizar e criar derivativos com o fluxo de caixa do pagamento das hipotecas, estão criando derivativos com o fluxo de caixa dos aluguéis.

Luís Fernando — Você lembra ao leitor que houve, principalmente nos EUA, alguns momentos muito marcantes. Por exemplo, a lei de recuperação econômica de 1981 e depois a desregulamentação de Wall Street. Esses fatores aconteceram há décadas. Eles ainda influenciam?
Thom Hartmann — Muitíssimo. Nem tanto a reforma da previdência social de Reagan em 1981, mas mais a decisão de 1982 de deixar de aplicar a lei antitruste. Isso fez com que as empresas americanas se tornassem muito monolíticas. Em sistemas biológicos, um sistema diversificado é muito resiliente. Uma selva ou uma floresta pode sobreviver a um ano de seca. Tem várias espécies diferentes, é muito resiliente. Se você tem um campo com apenas um tipo de trigo, com um único tipo de DNA, ele é uma monocultura, muito mais frágil, e se conversar com um americano de mais de 50 anos, ele lhe dirá que antes do governo Reagan todas as cidades dos EUA, todos os centros comerciais, estavam repletas de negócios pequenos locais. A Índia, por exemplo, até o ano passado ou retrasado, tinha uma lei segundo a qual nenhuma empresa ou família podia ter mais de duas lojas. Portanto havia milhares de pequenos negócios. É menos eficiente, mas muito resiliente. Hoje, nos EUA, praticamente toda indústria, seja de varejo, de mídia, de telecomunicações ou a que escolher, de telecomunicações ou a que escolher, de agricultura, todas são dominadas, mais de 70% ou 80%, por menos de cinco empresas, principalmente os bancos.

Luís Fernando — Bancos, companhias aéreas, aço…
Thom Hartmann — Qualquer uma. E isso produz uma economia muito frágil. Este é um dos maiores problemas que herdamos da era Reagan.

Luís Fernando — Mas você também cita no livro que Ronald Reagan, no final de seu governo… Aliás foi Bill Clinton que assinou a lei desregulamentando Wall Street.
Thom Hartmann — Sim, essa é a segunda questão.

Luís Fernando — Qual foi o efeito que isso teve? Vimos, em 2008, um dos efeitos. Você acha que ainda não passou?
Thom Hartmann — Como eu disse, acho que estamos no meio da crise e que ela vai piorar muito. E o mais incrível é a quantidade de países que estão imitando os erros que cometemos. Do governo de George Washington ao de Franklin Roosevelt, nos primeiros 150 anos da história americana, nunca ficamos mais de 15 anos sem uma grande crise bancária nacional. Em 1935, a lei Glass-Steagall entrou em vigor, os bancos foram fortemente regulamentados e, de Roosevelt até 2006, não houve outro colapso bancário. Até que Phil Gramm apareceu em 1999 e disse: “A lei funcionou tão bem que não precisamos mais dela.” Mas a desregulamentação do sistema bancário, na minha opinião, foi amplamente conduzida pelo desejo de Ken Lay e da Enron de entrar… Primeiro, ele tinha 800 empresas de fachada e os bancos o estavam investigando, por isso ele queria ter seu próprio banco. Além disso, ele queria poder negociar commodities energéticas e também queria entrar no mercado de derivativos com commodities energéticas. E tudo isso era ilegal nos anos 1990. Wendy Gramm [esposa de Phil Gramm] era diretora da agência federal que regulamentava os derivativos, então legalizou o que era preciso para que Ken Lay usasse a energia como uma commodity. Daí ela saiu e foi para o conselho da Enron. E o marido dela, anos depois, apresentou dois projetos de lei que desregulamentaram os bancos, como mencionou, e criaram uma oportunidade para que os bancos passassem de um mercado de derivativos muito pequeno para um mercado que, segundo o Banco de Compensações Internacionais, era, como disse…

Luís Fernando — De US$ 1,2 quatrilhão…
Thom Hartmann — No mundo inteiro. Nos EUA foram US$ 800 trilhões em 2008. Falaram em 500 trilhões depois do crash, mas agora já subiu para US$ 700 trilhões e o PIB mundial não passa de US$ 65 trilhões. Então isso é dinheiro de mentira. Esse pessoal está brincando com dinheiro de mentira e entrando em esquemas. Numa negociação de US$ 1 trilhão, você ganha uma comissão de US$ 1 bilhão. Então há caras se tornando bilionários, mas não é assim que uma economia deve funcionar.

Luís Fernando — Então chegamos ao título do seu livro: The Crash of 2016. Por favor, descreva qual seria o melhor cenário possível dessa crise e qual seria o pior cenário possível?
Thom Hartmann — Acho que o melhor cenário possível… Eu defendo no livro que a crise começou em 2006 e que ainda estamos no meio dela.

Luís Fernando — Acha que já estamos na crise de 2016.
Thom Hartmann — Com certeza. As regras não mudaram. Os bancos continuam sem regulamentação, ainda há um mercado cinzento multibilionário de derivativos que não é regulamentado. Setenta porcento das atividades bancárias dos EUA são feitas por computadores que negociam milhões de coisas por minuto. É insignificante, não é atividade econômica real. A produção industrial respondia por um terço de nossa economia, hoje está em torno de 10%. Não dá para tocar uma economia assim. Isso só nos EUA. Há casos semelhantes em outros países. O melhor cenário seria como em 1929. O que aconteceu em 2007 e 2008… Simplesmente voltaríamos àquelas regras e tudo se resolveria. A boa notícia é que de todas essas crises — ainda não aconteceu depois da crise de 2008, mas depois da crise de 1929, da de 1897, da de 1857, da de 1770… Depois de todas essas grandes crises econômicas, grandes reformas progressistas surgiram, nas quais apertamos os parafusos e dissemos: “Não vamos deixar os predadores fazerem isso novamente.” O pior cenário seria se os EUA ou outros países seguissem numa direção mais fascista, mais autoritária, que gerasse uma guerra mundial. Muitas vezes, crises são seguidas por guerras.

Luís Fernando — Como uma crise assim afeta um país como o Brasil?
Thom Hartmann — Em primeiro lugar, não sou especialista no Brasil, embora tenha alguma familiaridade com o país. O que eu diria é que a crise que os EUA estão enfrentando é consequência das melhores intenções de liberais e conservadores sendo usadas por predadores. Isso já vai fazer sentido, mas é uma explicação meio longa. Na década de 1950, conservadores nos EUA advertiram que, se a classe média crescesse demais, ia começar a exigir coisas, ia haver uma “comoção social”. Então houve todas as manifestações sociais nos EUA e os conservadores disseram: “Viram? Nós avisamos. A classe média cresceu muito, rápido demais e saiu de controle. Temos que corrigir isso.” E o esforço para corrigir isso aconteceu no governo Reagan com a Reaganomics: “Vamos tornar a classe média menos rica, menos poderosa.” E, quando fizemos isso, os banqueiros predadores assumiram esse espaço e disseram: “Sabemos como tirar a espuma do topo.” Estamos vendo as mesmas tensões acontecendo agora no Brasil.

Luís Fernando — Exatamente, porque a nossa classe média cresceu muito.
Thom Hartmann — Pois é, e a consequência é a comoção social, são demandas por mudanças sociais. Há uma variedade de movimentos Brasil afora — não só no Brasil, mas estamos falando do país — nos quais as pessoas perguntam: “E eu? E a nossa parte?” E eu pessoalmente acho isso uma coisa boa, mas diria que essas ações rápidas, de qualquer lado — sejam de retrocesso ou de avanço — sempre produzem reação.

Luís Fernando — O interessante é que você não parece ver problema. Você é progressista, é liberal.
Thom Hartmann — Sou, com orgulho.

Luís Fernando — Não parece ter problemas com os conservadores. Parece ver problema na lógica predatória.
Thom Hartmann — Exato. Acho que a visão de mundo conservadora é legítima. De Edmund Burke a Barry Goldwater, passando por George Will, a ideia de que a sociedade deve mudar, mas mudar devagar, gradualmente, testando as coisas antes de implementá-las, eu entendo e respeito. Não concordo, mas entendo, respeito e acho legítima. E acho que a visão de mundo liberal e progressista de que a sociedade pode dar guinadas, fazer grandes mudanças e às vezes cometer erros terríveis que teremos que desfazer e testar de outro jeito também é válida. E há muitos exemplos na história de nossos países em que as duas coisas aconteceram. O perigo é quando a tensão dinâmica entre essas duas perspectivas políticas legítimas e bem intencionadas provoca rachaduras e o sociopata aproveita, o predador aproveita a chance. E quando isso acontece, principalmente quando eles assumem o controle do sistema político, como a Suprema Corte permitiu ao dizer que o dinheiro é protegido pela Primeira Emenda, aí temos um problema sério.

Luís Fernando — Quem são os predadores? No seu livro você menciona os “monarquistas econômicos”. Quem são os predadores, não só nos EUA? Qual é a definição de sociopata, de predador social para você?
Thom Hartmann — Há um programa de TV nos EUA chamado “Acumuladores”, que eu ainda não vi. São pessoas que guardam tantos jornais em casa que não conseguem andar pela sala, ou a senhora que tem 90 gatos. Quanto é o suficiente? Acho que… Isso é uma doença mental. É uma forma de transtorno obsessivo-compulsivo. E eu acredito que algumas pessoas, em vez de acumular gatos ou jornais, acumulam dinheiro. E elas são igualmente doentes. E também há, entre nós, sociopatas, pessoas que não enxergam as outras como seres humanos, mas como objetos, e se julgam a única pessoa do mundo. Elas estão entre 2% e 4% da população. Como a “Business Week” e a “Forbes” apontaram em 2013, os sociopatas estão fortemente representados em certas profissões, principalmente nos bancos e entre os diretores-executivos. Que tipo de pessoa dorme bem à noite sabendo que destruiu a vida de dez mil famílias? Um sociopata faz isso facilmente. Então precisamos criar proteções para a sociedade contra os sociopatas. Detemos assassinos, ladrões, pessoas que agridem outras, todos esses tipos de criminosos, mas, se alguém que expulsa 100 mil pessoas de suas casas por fraude, esse crime não é equivalente a agredir alguém na rua? Por que essa pessoa que tem US$ 1 bilhão e um jato folheado a ouro é tratada assim pelo Congresso enquanto o homem que roubou a carteira de alguém está preso? Várias vezes em nossa história, e na história de qualquer nação, identificamos os pequenos predadores e sociopatas, os criminosos comuns. Ocasionalmente identificamos os grandes sociopatas, os grandes criminosos. Às vezes eles estavam em famílias reais. A Revolução Francesa é um ótimo exemplo: o povo se revoltou e derrubou um sociopata. E coisas como a lei antitruste nos EUA — os bancos são muito mais regulamentados no Brasil do que nos EUA — são uma forma de tentar controlar essas pessoas. Precisamos ter consciência disso, e o meu livro é uma forma de advertência em relação a essas pessoas.

Luís Fernando — Está na natureza humana a cada 80 ou 90 anos passarmos por esse absurdo bulímico de quase destruir nosso bem-estar e começar de novo?
Thom Hartmann — Bem, há alguns. Eu cito os livros de Strauss e Howe, The Fourth Turning e Generations, e eles não são os únicos que observam isso. Parece que é assim mesmo. Isso depois da palavra escrita. Entre os povos sem escrita, as histórias eram passadas de geração para geração, e as pessoas geralmente não esqueciam. Se você ler Man’s Rise to Civilization, de Peter Farb, um livro escrito nos anos 1960 sobre o primeiro contato com 34 tribos indígenas no século XVI, o que ele descobriu foi que aquelas sociedades sabiam lições milenares, porque as passavam adiante.

Luís Fernando — E agora que temos a escrita, esquecemos.
Thom Hartmann — O que é assunto para outra conversa, mas é fascinante.

Luís Fernando — Se vamos aprender alguma coisa com a crise em que estamos, o que será? Que soluções vamos encontrar?
Thom Hartmann — Eu espero que a maior lição dessa crise seja o aprendizado de que a desigualdade é o maior mal. Eu mencionei a repetição de erros. Em 1920, quando Harren Harding concorreu à presidência, ele tinha duas plataformas: reduzir o imposto máximo de 91% para milionários e bilionários para 25% e privatizar cargos governamentais e desregulamentar. O slogan dele era “menos governo nas empresas, mais empresas no governo”. Ele fez as duas coisas em 1921, quando assumiu, e isso levou ao crash de 1929. Vimos nos últimos 30 anos essencialmente a mesma coisa, não feita de forma tão agressiva, mas essencialmente a mesma coisa, e estamos vivenciando as mesmas consequências. O grande estabilizador contra essas enormes disparidades de riqueza, essa desigualdade de renda, historicamente são os impostos, impostos progressivos, às vezes até impostos sobre patrimônio. E estou muito esperançoso que isso aconteça. Quando a maior taxação está acima de 50%, geralmente os diretores-executivos ganham 30 vezes mais que os funcionários, e a economia fica estável. Quando a taxa está abaixo de 50%, os muito ricos têm muito hot money. Não foi difícil de conseguir, é dinheiro fácil, então eles apostam: “Vamos investir em derivativos, em hipotecas, nisso, naquilo!” E isso leva a bolhas e a quebras. Então eu acho que esse grande efeito estabilizador, combinado com o entendimento de que a desigualdade destrói a confiança social… Se a desigualdade aumenta, o crime aumenta, a gravidez na adolescência aumenta, a taxa de DST aumenta, a confiança social diminui, o discurso político se torna áspero, cresce a probabilidade de surgirem movimentos políticos radicais, cresce a probabilidade de instabilidade econômica. Tudo isso é consequência da desigualdade, e não estou defendendo um mundo marxista nem de longe, mas acho que, se reduzirmos a desigualdade que há no mundo, podemos produzir um mundo muito melhor.

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