Joio e trigo

É preciso separar terrorismo, vandalismo e manifestação

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19 de fevereiro de 2014, 8h11

A definição do que é terrorismo por si só é complexa, intricada e de difícil compreensão. Por mais que se tentem e muitos tentaram, não se consegue com precisão chegar a um consenso sobre o significado de terrorismo. Quando então se pretende tipificar a conduta aí a situação torna-se ainda mais intricada. Isto porque, como é sabido, em matéria penal vigora o princípio constitucional/penal da legalidade, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina e nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX da Constituição Federal e art. 1º do Código Penal).

Heleno Claudio Fragoso, pioneiro no Brasil ao tratar do tema em sua obra “Terrorismo e Criminalidade Política”, publicada pela editora Forense em 1981, quatro anos antes de sua morte prematura, logo no início da obra reconhece a complexidade e inquietude do fenômeno. Lembrando, ainda, que a expressão “terrorismo” apresenta uma conotação pejorativa, frequentemente empregada “pelos que estão no poder contra grupos dissidentes, para suscitar temor e hostilidade”. (Fragoso, ob. cit. p. 2). No que se refere a uma definição global do terrorismo, Fragoso traz à colação a obra do historiador, judeu polonês, Walter Laqueur. Laqueur afirmou que uma definição geral de terrorismo não existe e não será encontrada em um futuro próximo.

Segundo informa Juarez Tavares, “quando da edição do Estatuto de Roma, em 1998, que deu corpo jurídico ao Tribunal Penal Internacional, os signatários, orientados por assessores jurídicos de alta qualificação, rejeitaram a proposta de criminalizar o terrorismo por não encontrarem elementos seguros que pudessem ser usados na sua definição”. Alertando, ainda, com a cultura e o conhecimento que lhe são peculiares, que até “em países que sofreram atos verdadeiros de terrorismo, como a Alemanha, sua definição sempre foi contestada pela doutrina e, hoje, se resume, praticamente, a uma especialização do crime de quadrilha. E, mesmo assim, são avassaladoras as críticas que se lhe fazem” (in carta dirigida ao senador Roberto Requião).

No que pese todas as dificuldades de conceituar e definir terrorismo, algumas tentativas foram e são feitas buscando a criminalização dos chamados “atos de terrorismo”.

Para vários autores que se dedicam ao estudo do tema não existe uma figura específica de crime de “terrorismo”. O que há, segundo esses, são diversas espécies de crimes que se caracterizam, de acordo com Fragoso, a) por causar dano considerável a pessoas e coisas; b) pela criação real ou potencial de terror ou intimidação generalizada, e c) pela finalidade político-social. É importante salientar que o fim de agir é elementar para a caracterização do crime, ou seja, político-social. Como ressalta Fragoso, os agentes do crime em tela se “dirigem contra a vigente ordem política e social, para destruí-la, para mudá-la ou para mantê-la pela violência”, não havendo, portanto, “terrorismo comum”.

O terrorismo é previsto na Constituição Federal (CF) como uma prática inafiançável. “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (artigo 5º, XLIII da CF). Apesar disso, a CF não definiu o crime de “terrorismo”, deixando sua definição para lei ordinária.

Todavia, uma lei anterior à própria CF, a Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983 — que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social —, sancionada ainda na ditadura pelo general João Figueiredo, em seu artigo 20 prevê pena de reclusão de até 30 anos para caso de morte relacionada ao terrorismo. “Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar (sic), manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas”. A mesma lei prevê pena de reclusão de três a dez anos para atos de terrorismo. No caso de lesões corporais graves, a pena dobra. No caso de morte, triplica.

Atualmente, o Congresso discute o anteprojeto do novo Código Penal — Requerimento 756, de 2011, do senador Pedro Taques, aditado pelo Requerimento 1034, de 2011, do senador José Sarney e com aprovação dos senadores da República em 10 de agosto de 2011 — que no Título VIII trata dos crimes contra a paz pública e prevê no art. 239 o “terrorismo”.

Contudo, a morte do cinegrafista Santiago Andrade, da Rede Bandeirantes, atingido por um rojão durante manifestação no Rio de Janeiro, acirrou ainda mais os debates dentro e fora do Congresso sobre a lei “antiterrorismo”. O Projeto de Lei 499, de 2013, apresentado pelo senador Romero Jucá (PMDB/RR), que passou a ser tratado como prioridade depois da morte do cinegrafista Santiago Andrade, aponta como crime inafiançável “provocar ou infundir terror generalizado”, “terrorismo contra coisa”, e estabelece como grupo terrorista a reunião de três ou mais pessoas “com o fim de praticar o terrorismo”.

A lei “antiterrorismo” prevê penas de oito a 20 anos para quem promover o "terror" em estações de trem, instituições de ensino e prédios do Poder Executivo, além de outros serviços essenciais. Em caso de incitar o terrorismo, a pena é de três a oito anos e, para quem provocar ou difundir o terrorismo de alguma forma, a pena pode ser de 15 a 30 anos de reclusão. Em caso de morte, a pena vai de 24 a 30 anos.

A aprovação do referido projeto colocaria em sérios riscos movimentos sociais, manifestações reivindicatórias, protestos e, até mesmo, algumas greves, devido à amplitude do texto sem a precisa definição legal de “terrorismo”, em evidente violação ao princípio da taxatividade, corolário do princípio constitucional da legalidade. No ensinamento sempre preciso de Nilo Batista, “formular tipos penais ‘genéricos ou vazios’, valendo-se de ‘clausulas gerais’ ou ‘conceitos indeterminados’ ou ‘ambíguos’, equivale teoricamente a nada formular, mas é prática e politicamente muito mais nefasto e perigoso”. (Batista, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990).

A vingarem esses projetos, diz Juarez Tavares, na já citada carta, “seriam criminalizadas condutas comuns da vida, como o trote de calouros, os protestos contra os árbitros de futebol, as gritarias provindas de grupos boêmios e até os atos de comemoração mais acalorada. Afora, claro, condutas que nada têm a ver com finalidades políticas de destruição do Estado, como as brigas de torcidas organizadas. E serão criminalizadas, com esses projetos, as manifestações mais legítimas da população”.

Como se não bastasse e diante de tanta “desordem jurídica”, o secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, entregou anteprojeto que tipifica a violência dos protestos como “crime de desordem”, estabelecendo prisão de até seis anos e multa aos infratores.

É necessário separar o joio do trigo e não confundir alhos com bugalhos. É preciso atenção e prudência para não confundir “terrorismo” com “vandalismo” e ambos com protestos e manifestações, justificáveis ou não, mas legais dentro do Estado Democrático de Direito.

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