Direito Comparado

Variante jurídica da ascensão e queda de Mahagonny

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

19 de fevereiro de 2014, 8h01

Spacca
Três juristas resolveram fundar uma cidade no meio do nada. A única vantagem da escolha é que o lugar era um ponto de passagem obrigatório para toda uma sorte de deserdados, desvalidos, aventureiros, homens e mulheres sem esperança ou com esperanças demais, que seguiam rumo um novo eldorado no norte do país. Pessoas de diferentes origens, raças, credos e ideologias (ao menos alguns sabiam que possuíam uma ideologia) acreditavam que poderiam transformar suas vidas após chegar a essas minas descobertas em 1988 e que pareciam não cessar de oferecer ouro e mais ouro a seus mineiros.

Os juristas não eram indivíduos com um passado muito inspirador. Mas, isso não importava. A cidade seria a redenção de seus criadores. O objetivo da cidade era oferecer prazeres ilimitados a todos os que a visitassem ou a escolhessem para morar. Uma questão a ser logo resolvida era o nome do novo lugarejo. De comum acordo, denominaram-no de Mahagonny, que soava bem, parecia estrangeiro e ainda por cima era bem charmoso. “Mahagonny”, esse nome atravessou o país em pouco tempo. Todos pareciam conhecer Mahagonny e os que nunca lá estiveram desejavam ardentemente nela ingressar.

Mahagonny, na concepção de seus fundadores, precisava de um lema, um slogan, para ser mais fiel ao caráter imagético que cercava o novo empreendimento. Um dos juristas, que em seus tempos de estudante aprendera um pouco de alemão, teve a brilhante ideia de sugerir du darfst!, traduzível como “você pode”, no sentido de ter se permissão ou de se estar autorizado algo. A inspiração para esse belíssimo motto veio de uma empresa alemã de alimentos industrializados e também, embora ele não tenha confessado isso para seus colegas, do “Yes, we can”, da famosa campanha presidencial norte-americana, posto que o “poder” da expressão inglesa não fosse tão assimilável ao “darfst”. A bandeira vermelha foi hasteada. Mahagonny foi incluída no rol das cidades daquela província do Império.

E assim Mahagonny tinha um nome, uma bandeira e um lema. Mas, o que tornou a cidade tão atrativa? A promessa de acesso irrestrito, absoluto, sem limites a tudo o que fosse desejável para as pessoas. Não havia preocupações ou regras ou limites morais. Na verdade, a nova moral e a nova regra eram resumíveis no artigo primeiro, parágrafo único, da Lei Orgânica da cidade perdida no meio do nada: “Mahagonny é a terra da felicidade, direito de todos e dever do Estado. Tudo é permitido, a não ser uma única coisa: não ter dinheiro”.

Aquela norma, tão simples e tão perfeita, era o Führerprinzip de Mahagonny, a base fundamental de toda a autoridade política e do ordenamento jurídico do município. É preciso lembrar que no Império (sim, Mahagonny ficava no centro do nada, em uma província periférica das fímbrias do Império) ainda se estudavam com enorme reverência os grandes juristas do nacional-socialismo, como Franz Wieacker, Karl Larenz e Josef Esser.[1] Toda a interpretação normativa em Mahagonny deveria se pautar pelo citado parágrafo único do artigo 1o, mesmo que contrariasse normas expressas, na medida em que a realização dos fins supostos e imaginados naquela regra é que deveriam prevalecer.

A “concreção” do princípio dos princípios de Mahagonny (“Tudo é permitido, a não ser uma única coisa: não ter dinheiro”) estava no poder realizar objetivamente o comando da Lei Orgânica. Em pouco tempo, a cidade fora tomada e ocupada por pessoas em busca de tudo o quanto Mahagonny tinha a oferecer. Sexo, comida, jogo, carne de cavalo, fumo, drogas eram apenas parte do imenso cardápio de possibilidades. Havia pessoas que comiam incontrolavelmente. Outros tantos eram vistos nas sarjetas, após rodadas sem fim de álcool. Nada era proibido, tudo era permitido, desde que se tivesse dinheiro para pagar. Não interessa aqui fazer um inventário de tantos vícios que proliferavam em Mahagonny, afinal, até o conceito de vício era passível de transformação. Virtude ou vício, pouco importava, o essencial era poder fazer tudo o que se desejasse. Desse modo, mesmo algumas virtudes — como doar dinheiro aos pobres ou ajudar os doentes nas camas dos hospitais — poder-se-ia converter em um excesso e, com isso, ser realizado em Mahagonny sem culpa. Desde que se pagasse por isso, bem entendido.

É bom informar os leitores que os três juristas estavam ricos à altura. Sim, o empreendimento havia sido um sucesso. Mahagonny foi definida, nas reuniões dos três fundadores, como uma “cidade-arapuca”, em cujas teias se enredavam todos os que, em busca do Santo Graal, que era o du darfst!, ali chegavam com suas pequenas ou grandes fortunas. A renda dos juristas de Mahagonny era alimentada pela dissipação de todos esses infelizes, que para ali foram atraídos pela perspectiva de viver em um mundo que não lhes era permitido em suas cidades, em suas famílias, em seus casamentos monótonos e com suas obrigações aborrecidas. Em todos os continentes, a notícia de haver uma cidade como Mahagonny era disseminada como um rastilho de pólvora.

A parte oculta dessa história de prazeres sem freios estava na aplicação da parte final do Führerprinzip de Mahagonny: “desde que se tivesse dinheiro para pagar”. Quando o dinheiro acabava, meus amigos leitores, só havia choro e ranger de dentes. Não ter dinheiro era um crime punido com pena capital. O espetáculo deveria continuar. E ele era alimentado pelo vil metal. Os infelizes que não compreendiam isso eram depauperados até o último vintém. Quando as patacas (a moeda oficial do Império onde se situava Mahagonny) acabavam…

Mas, um espetáculo à parte em Mahagonny é a Justiça. Diversos crimes são cometidos, o que é vulgar e previsível. Só que o Código Penal de Mahagonny é uma ficção. Os crimes ali existem para enquadrar as pessoas e submetê-las a um julgamento cuja única finalidade é saber se elas têm dinheiro para pagar as extorsivas custas. Justiça ou injustiça, isso pouco importa. Se o culpado tem meios, ele não será condenado.

Um desses milhares de mineiros, que largaram família e seu passado para viver os prazeres de Mahagonny, resolveu que era hora de sair da cidade. Mas, antes reuniu os amigos em um bar e disse que lhes pagaria uma rodada de whisky. Após todos beberem suas doses daquela bebida (falsificada, como quase todas em Mahagonny), o garimpeiro viu que não tinha como pagar pelo whisky. Ele foi preso e, dias depois, levado a julgamento.

Ao seu lado, estavam homicidas, maníacos sexuais e estelionatários. Ele foi o único a ser sentenciado com a pena máxima: morte na cadeira elétrica. A razão? Muito singela: ele violou o parágrafo único do artigp 1o da Lei Orgânica de Mahagonny. Ele havia deixado de ser feliz? Não. A felicidade era algo relativo, como aliás quase todos os conceitos jurídicos indeterminados em Mahagonny. O que realmente era inviolável era a parte final do parágrafo único. E nosso garimpeiro, conforme estava provado nos autos, não mais possuía uma pataca ou um vintém em seu bolso. Sobre ele se poderia dizer o que Shylock afirmou sobre Antônio, o mercador de Veneza: “Eis aí mais um mau companheiro de negócios, um falido, um sujeito pálido, esbanjador, que mal ousa mostrar a cabeça no Rialto; um mendigo que diariamente vinha todo casquilho para o mercado. Ele que tome cuidado com aquela letra!”

As execuções em Mahagonny precisam ser exemplares, como eram nos tempos do Antigo Regime, tão bem descritas por Michel Foucault. O Direito violado erguia-se contra o infrator, como se aquela ofensa houvesse sido um golpe físico no soberano, que também retribui com muito mais força e violência no corpo do criminoso aquele agravo sofrido.

Há trovões, chuva intensa e aqueles sinais clássicos da presença do sobrenatural entre os homens, ao menos se não mentiram nossos antepassados que primeiro escreveram sobre a ação divina na Terra. Mas, Deus não aparece para salvar o garimpeiro e muito menos para condenar aos fogos do inferno aquela cidade maldita. Isso não era preciso: Mahagonny já era um inferno.

O garimpeiro é morto. Nessas horas, ressurgia sempre o velho axioma dura lex sed lex, embora sempre fosse desafiado todos os dias nos tribunais e nas escolas de Direito de Mahagonny. Em pouco tempo, as facções em Mahagonny começam a lutar entre si, com extrema violência. A cidade transforma-se em um monturo. Suas ruínas estão fumegantes. Há milhares de mortos. Os sobreviventes, tendo as prostitutas, os bêbados e os loucos à frente, saem em procissão e resgatam as relíquias do garimpeiro morto, que é levado pelo que restou de Mahagonny como um santo redentor.

Nada disso importa. Alguém, no meio da multidão, grita que nada do que se faça ajudará a um homem morto. E outro completa dizendo que se nada vai ajudar o garimpeiro, muito menos salvará os habitantes de Mahagonny. O caos instalava-se e a imagem daquela cidade, outrora tão opulenta, se desfaz como um quadro envolto em chamas.

***

O dia amanheceu. Na tela do computador, está um arquivo aberto no editor de textos. Após sua leitura, percebe-se que é uma livre adaptação de uma ópera (ou peça épica) de Bertolt Brecht, composta por Kurt Weill, intitulada Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny (Ascensão e queda da cidade de Mahagonny), do ano de 1930. Escrita em plena República de Weimar, a peça destinava-se a criticar a perda de valores causada pela busca alucinada pelo dinheiro no capitalismo norte-americano, o que se tornava ainda mais nítido no contexto histórico pós-1929 e após o crack da Bolsa de Nova York.

A adaptação, cuja autoria o colunista desconhece, mas que assume como sua, até que o verdadeiro autor a reclame (não haverá resistência quanto a essa pretensão!), servirá como sucedâneo da coluna de hoje. Por que razão? O colunista supõe que é bom relembrar essa importante peça brechtiana, um marco na história do teatro. Ou talvez seja porque é interessante associar Direito e Ópera, como já fazem alguns escritores contemporâneos.[2] O colunista só pede insistentemente que não interpretem este texto como uma reprodução de certos chavões sobre a deformação de valores morais causadas pelo dinheiro (para isso, recomenda-se o filme O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese) ou de que só se ganha ações na Justiça se alguém é rico. Há algo além desses lugares-comuns nesta adaptação de Ascensão e queda da cidade de Mahagonny para juristas, cuja autoria real até agora intriga o colunista. Afinal, em termos de interpretação, nós juristas contemporâneos somos efetivamente marcados pelo império do du darfst. Talvez seja hora de chamar de volta o Duque de Viena e abreviar a regência do bem-intencionado Ângelo. Rectius, bem-intencionado até que chegue a ele uma bela noviça…[3] Mas isso é outra história.


[1] A quem se interessar sobre a ação dos juristas no nazismo, está disponível um texto de Charles M. LaFollette, de 6-3-1948, em inglês, com o título The case against nazi jurists (Georgia Law. Trial 3 – Judges Case.Paper 3. http://digitalcommons.law.uga.edu/nmt3/3 ). Acesso em 15/2/2014.
[2] A esse propósito, recomenda-se vivamente o livro: TOUZEIL-DIVINA, Mathieu; KOUBI, Geneviève. Droit et opéra: Actes des colloques des 14 décembre 2007 (Paris) et 14 mars 2008 (Poitiers). Paris: LGDJ, 2008.
[3] Lenio Luiz Streck explorou bem a metáfora de Ângelo e da noviça nesta coluna. Acesso em 18/2/2014.

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    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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