Direitos reprodutivos

Restrições à esterilização voluntária devem ser revistas

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18 de fevereiro de 2014, 14h03

Os direitos sexuais e reprodutivos, temas intrínsecos ao planejamento reprodutivo, somente ganharam relevância após a década de 1960, propulsionados essencialmente pelo ativismo social de movimentos libertários e feministas, o qual deu azo a uma nova concepção sobre sexualidade.

O constituinte brasileiro, sensível a essa mudança, estabeleceu que o “planejamento familiar” — ou, mais adequadamente, planejamento reprodutivo[1] — é escolhido de forma desembaraçada do Estado, muito embora este tenha o dever de promover a orientação geral, franquear recursos — educacionais e de saúde —, bem como proporcionar proteção individual aos membros da família[2]. O legislador infraconstitucional, por sua vez, regulamentou tais diretrizes especialmente por duas leis: a Lei 9.263/96 de planejamento reprodutivo e a Lei 11.340/06 de proteção à mulher no ambiente doméstico e familiar.

Atualmente, não há como se falar em planejamento reprodutivo sem observar os diplomas internacionais, de sorte que, destacando-se os mais relevantes e com base na legislação mencionada, busca-se fazer uma análise sobre o planejamento reprodutivo hodierno, em especial o papel do Estado e o uso dos métodos contraceptivos irreversíveis.

O planejamento reprodutivo no âmbito Internacional
No plano internacional, diversos documentos foram editados, dos quais despontam os seguintes:

I – Convenção sobre Discriminação contra a Mulher (1979), a qual ordena aos Estados signatários a adoção de medidas apropriadas para assegurar a informação e o assessoramento sobre o planejamento da família (artigo 10, h) e, inclusive, o acesso a serviços médicos relativos ao planejamento familiar (artigo 12, 1);

II – Convenção sobre Direitos da Criança (1989) que versa sobre o direito à saúde, com vistas ao desenvolvimento da assistência médica preventiva e dos serviços de planejamento familiar (artigo 24, 2, f);

III – Conferência das Nações Unidas sobre população e desenvolvimento (Cairo, 1994) a qual prevê que os Estados devem tomar medidas apropriadas para assegurar o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, relativos à reprodução e à sexualidade — sem nenhum recurso à coerção — determinando-se o direito fundamental de decidir livre e responsavelmente acerca do numero de filhos e o espaço entre os nascimentos; assim como a livre disposição de informação, educação e meios para exercício dos referidos direitos (princípio 8).

IV – Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995), que buscou implementar o conceito de família democrática, ao promover a igualdade de direitos entre homens e mulheres no âmbito familiar, no que tange ao acesso aos recursos, às oportunidades, à partilha das responsabilidades familiares, cuja aplicação, em última análise, fortalece a democracia ( princípio 15). Ademais, esta conferência, em seu princípio 96, reforçou a ideia de que a mulher possui domínio sobre sua própria sexualidade e tem o dever de tomar suas decisões livremente.

A função do Estado no planejamento reprodutivo
Desde seu nascedouro, o conceito de planejamento reprodutivo recebeu ácidas críticas, pelas quais se compreendia como uma intromissão indevida no seio familiar, engendrada por uma política internacional em sede de controle de natalidade[3].

Sem dúvida, já esteve presente essa famigerada ideia. O controle demográfico[4] não era vedado nas constituições anteriores; mas, posteriormente, essa compreensão sobre planejamento reprodutivo mostrou-se bastante defasada e inadequada.

Como bem esmiuçado pelos juristas Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 858), há uma esfera positiva, de cunho prestacional, em que o Estado tem o dever de informar e dar acesso aos métodos, estruturas jurídicas e técnicas, assim como existe uma esfera negativa de atuação, na qual se garante a liberdade individual, salientando-se as capacidades cognitivas e de autodeterminação.

A nosso sentir, essa dicotomia na atuação estatal é expressão do princípio da intervenção mínima no âmbito do Direito de Família constitucionalizado, pelo qual se entende que a intervenção do Estado nas relações familiares deve ocorrer somente em situações extremas, vez que prevalece, como regra geral, a liberdade do indivíduo. Pelo seu reconhecimento, identifica-se atualmente um Direito de Família Mínimo, no qual prevalece o exercício da autonomia privada dos indivíduos, a fim de preservar a liberdade e garantir a realização dos demais direitos fundamentais.

Dessa forma, cabe ao Estado uma atuação positiva, no sentido de possibilitar a todos os cidadãos o amplo acesso às informações e aos métodos contraceptivos lícitos (e.g: preservativos, laqueadura, vasectomia, etc) e conceptivos (e.g: tratamento para fertilidade, acompanhamento médico prévio à concepção); ainda, deverá atuar de forma negativa, abstendo-se de qualquer interferência no processo decisório, pois a escolha dos indivíduos deve ser livre de qualquer forma de estimulo ou desestimulo estatal.

Breves comentários à Lei 9.263/96 de Planejamento Reprodutivo
Pela leitura do art.10 da referida lei, nota-se que o legislador entendeu a esterilização voluntária como medida excepcional, proibindo-a em determinadas situações (e.g: em caso de parto ou aborto) e, tentando evitar a todo custo o que chamou de “esterilização precoce”, arrolou um cabedal de exigências ao paciente: idade superior a 25 anos ou, no mínimo, existência de dois filhos vivos; observação pelo prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação de vontade e a cirurgia, período no qual será acompanhado por equipe multidisciplinar, visando desencorajá-lo.

Não bastasse, caso o paciente seja casado, haverá mais um entrave burocrático: a lei traz, no parágrafo 5º de seu artigo 10, a exigência de autorização expressa do cônjuge na vigência da sociedade conjugal — o que, per se, vai de encontro a vários princípios, como a liberdade, igualdade e a dignidade da pessoa humana.

Decerto, a violação do princípio constitucional da liberdade, cujo corolário é a autonomia corporal, é uma das mais flagrantes, à medida que condiciona uma decisão de pessoa maior e capaz ao alvedrio de terceiro. Neste passo, como conceber que uma decisão que versa sobre ponto tão íntimo e pessoal possa sofrer qualquer sufrágio — para não dizer embargo — de outrem?

Questão mais tênue, no entanto, é da ofensa ao princípio da igualdade, que não ocorre sob o aspecto formal, mas especialmente substantivo ou material. Evidente que a mulher, no plano fático, é quem mais sofre as consequências do advento de um filho. Não apenas pela responsabilidade e cuidados inerentes à maternidade, mas, sobretudo porque os efeitos da gestação se manifestam biologicamente em seu próprio corpo. O cônjuge ou companheiro, por maior que seja sua solidariedade e amor, não poderá ir além do apoio afetivo. Por conseguinte, sendo intransponíveis tais diferenças, não se afigura justo equipará-los no que tange à decisão sobre a gravidez.

Sem prejuízo à explanação, cumpre lembrar o advento da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) que, em seu art. 7º, III, dispõe ser violência sexual qualquer conduta que impeça a mulher de usar métodos contraceptivos e que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. Sabendo que esses atos são defesos, faz-se a seguinte indagação: a desautorização ou ausência de autorização expressa por parte do cônjuge não seria uma espécie de conduta que impede a mulher de se utilizar de procedimento contraceptivo? Tal conduta, em última análise, não mitiga igualmente o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos? Parece-nos que há verdadeira incompatibilidade, podendo-se até mesmo conjecturar uma revogação tácita do art. 5º, parágrafo 10, da Lei de Planejamento Reprodutivo, segundo a regra de hermenêutica clássica, pela qual se aplica a lei posterior (Lex posterior derrogat priori).

Por último, sob o aspecto penal, o legislador demonstrou-se bastante empenhado no combate aos excessos cometidos em cirurgias de esterilização, de sorte que não apenas previu a tipificação de tais condutas, como estabeleceu penas mais severas aos infratores.

Vale ressaltar que o art. 15 reporta-se diretamente à “esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 dessa lei”. Por conseguinte, caso o paciente seja casado e não possua autorização do respectivo cônjuge, o procedimento resultará em crime. Crime este, repisa-se, apenado severamente — reclusão de dois a oito anos.

Em que pese não compreendermos incorreta a criminalização de condutas abusivas, em especial as de estimulo indevido à esterilização, acompanhamos a compreensão de Janaina Conceição Paschoal (2011, p.81), segundo a qual não cabe ao Estado impor a decisão de manter-se fértil ou não, estabelecendo proibições ou até mesmo crimes, como no presente caso — mesmo porque, como exposto, essa exigência já se deflagra em ato atentatório.

A realidade do planejamento reprodutivo e a experiência prática na Defensoria Pública
Sobre a esterilização, Drauzio Varella, em artigo intitulado A perpetuação da pobreza (2012), já indicou o quanto a população mais carente desconhece sobre as práticas contraceptivas, em especial sobre a esterilização. Em seu relato, o autor questiona uma mulher o porquê de tantos filhos, obtendo como resposta o disparate de que o marido “não gostava de camisinha”. Casos como esse evidenciam a falta de acesso ao planejamento reprodutivo que, segundo o próprio autor, é “a mais odiosa violência imposta às mulheres pobres”.

Além da questão da falta de conhecimento sobre planejamento reprodutivo pela população, é de se salientar a pouca abrangência dos programas de saúde e, porque não, da própria divulgação daqueles voltados à saúde sexual e reprodutiva. A nossa experiência na Defensoria Pública do Estado de São Paulo somente confirma esta perspectiva.

Em geral, as mulheres por nós atendidas, principalmente aquelas que possuem muitos filhos, quando informadas sobre seus direitos sexuais e reprodutivos — dos quais também se inclui a possibilidade de esterilização — , alegam, em suma, nunca terem ouvido falar sobre tais direitos e, não raro, demonstram genuíno interesse pelo procedimento de esterilização cirúrgica.

Embora o tema seja da intimidade e responsabilidade do indivíduo, não deixa de ser, sob o prisma jurídico, direito fundamental inerente à Saúde e à esfera social, de modo que compete inegavelmente à Defensoria Pública a promoção e a orientação da população sobre os seus respectivos direitos sexuais e reprodutivos, conforme preceitua a própria Constituição Federal em seu artigo 134.

Não somente a orientação genérica, mas a própria defesa e postulação em sede judicial ou extrajudicial. Nessa toada, vale lembrar, por exemplo, a possibilidade de ação de suprimento judicial de autorização, a ser ajuizada nos casos em que o cônjuge não aceita ou não autoriza expressamente a realização do procedimento de esterilização; assim como, extrajudicialmente, o encaminhamento de ofícios às Unidades Básicas de Saúde (UBS), para requisitar informações ou solicitar encaminhamentos dos indivíduos atendidos pela instituição, com fundamento nos arts. 128, X da Lei Complementar n.80/94 e 162, IV e V da Lei Complementar Estadual n. 988/06.

Considerações finais
Pelos diplomas internacionais, percebe-se uma preocupação que não se limita às tradicionais questões demográficas. O debate vai muito além: versa sobre paternidade responsável, direitos igualitários de gênero, direitos da mulher, direito à saúde sexual e ao planejamento reprodutivo e, principalmente, a garantia de informação e acesso aos métodos contraceptivos e conceptivos pelo Estado.

Os direitos sexuais e reprodutivos não podem ser encarados como instrumentos de controle pelo Estado ou por qualquer organismo político, pois são direitos fundamentais lídimos que visam a uma melhor qualidade de vida da pessoa. O exercício desses direitos nada mais é que uma das múltiplas formas do ser humano buscar sua própria felicidade, no que toca à sua saúde reprodutiva.

Com o condão de garanti-los, necessário primeiro reconhecer o cidadão como destinatário e, posteriormente, entender que ao Estado compete a informação, de forma isenta e clara, e o fornecimento de meios para viabilizar as escolhas individuais. Insta esclarecer, neste ponto, que informar é mera disponibilização de dados sobre as possibilidades existentes acerca do tema. O uso dos métodos conceptivos ou contraceptivos nunca poderá ser encorajado (ou determinado), tampouco poderá ser desencorajado por alvitre do Estado, sob pena de, tanto em um caso como em outro, deflagrar-se intromissão indevida na esfera individual.

Desta forma, para além da inconstitucionalidade específica do art. 10, parágrafo 5º, da lei de planejamento reprodutivo, há uma necessidade premente de modificação da lei como um todo, visto que o legislador expressamente desencoraja a esterilização voluntária.

Ademais, em que pese os avanços, essencial a capacitação e sensibilização dos profissionais. Necessária a conscientização de que o Poder Público atua como um todo: parcerias entre as instituições devem ser estimuladas, sendo na troca de informações ou no desenvolvimento de ações públicas em conjunto, pois o artificial argumento de “especialidade” ou “incompetência funcional” é o que mais desorienta e prejudica o cidadão.

Por derradeiro, impende notar que a atuação da Defensoria Pública nesta seara não se restringe ao mero patrocínio de causa. Há uma função pedagógica na prestação deste serviço — uma verdadeira educação em direitos — no sentido de informar a população e auxiliá-la, judicial e extrajudicialmente, na respectiva concretização desses direitos. Parece-nos nítido, portanto, que não se deve quedar inerte em face dos óbices, em especial os de natureza administrativa, que impedem o amplo acesso aos métodos conceptivos e contraceptivos, inclusive os irreversíveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA Vital. Constituição da Republica Portuguesa anotada, vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra, 2007, p.858).

PASCHOAL, Janaina Conceição. _____________ in Direito penal: jurisprudência em debate, crimes contra a pessoa, vol. 1. REALE JÚNIOR, Miguel (coord). Rio de Janeiro: GZ, 2011, p. 81.

VARELLA, Dráuzio. A perpetuação da pobreza. Carta Capital. Abril/2012. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/saude/a-perpetuacao-da-pobreza/>. Acesso em 18 Nov. 2013.


[1] A despeito da adoção do termo “planejamento familiar” pelo constituinte, mais atualizado é “planejamento reprodutivo”, vez que pode ser exercido fora do contexto familiar, ou seja, a decisão poderá ser tomada pelo indivíduo no sentido de não ter filhos e de não constituir uma família. Ademais, o termo é mais amplo e abrange agrupamentos humanos que não necessariamente sejam definidos juridicamente como família.
[2] Ver. Art. 226, parágrafo 7º e 8º , CF/1988
[3] Cf.: Helio Bicudo. Direitos humanos e a sua proteção.São Paulo: FTD, 1997.
[4] Vale pontuar a diferença semântica entre controle demográfico (ou de natalidade) e planejamento reprodutivo. A nosso sentir, o primeiro é política governamental em que se obriga ou condiciona o indivíduo a determinadas práticas reprodutivas e sexuais adotadas no planejamento político de cada gestão; o segundo, por sua vez, é direito fundamental tardio inerente ao complexo de direitos sociais e da saúde, a ser exercido de forma livre e consciente pelo individuo. Aliás, os termos não guardam qualquer relação, visto que o primeiro versa sobre o controle total do Estado sobre o indivíduo e o segundo, de forma diametralmente oposta, implica em uma liberdade individual a ser exercida em face do Estado. Embora o resultado de um planejamento reprodutivo eficiente possa ser a redução da natalidade, este não pode ser confundido com a política governamental em sede de controle de natalidade.

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