Mundo da fantasia

Operação Banqueiro tenta ressuscitar operação satiagraha

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17 de fevereiro de 2014, 7h46

No dia 1º de setembro de 2004, o outrora famoso procurador da República Luiz Francisco de Souza ajuizou uma ação de improbidade devastadora contra ele próprio. O procurador tentou fritar o financista Daniel Dantas e o grupo Opportunity com uma petição escrita pelo empresário Luís Roberto Demarco, pessoa interessada na fritura. Demarco emprestou o texto, Luiz Francisco emprestou a assinatura.

O problema da autoria não foi o único — até porque, enquadrar alguém com a fama de Dantas parecia ser, à época, um dever cívico de todos os brasileiros. O grave é que a ação se baseava em fundamentos falsos, como uma reportagem atribuída à Folha de S.Paulo, mas que o jornal nunca publicou. O texto da vida real, diferentemente do usado na petição, falava de doleiros, não do Opportunity. Interpelado sobre a falsificação, Rubens Valente, um dos autores do texto da Folha deu uma resposta aparentemente enigmática. “Não saiu [o texto citado na ação], mas é aquilo lá mesmo”.

O pano de fundo do episódio era a disputa para ver quem ficaria com um poderoso naco do bilionário mercado da telefonia, o da Brasil Telecom. O ganhador somaria um faturamento de 30 bilhões de dólares anuais com a operadora anexada.

Nessa disputa, o talentoso Luís Roberto Demarco, roteirista de boa parte dessa batalha, dublou deputados, policiais federais, procuradores e procuradoras da República e muitos jornalistas. Há pelo menos mais um caso de texto de Demarco na Folha publicado com nome de outra pessoa.

Folha é um jornal rigoroso no controle de qualidade. Mas quase nenhum meio de comunicação ficou imune ao nível de articulação que envolveu essa guerra comercial.

O mal em nome do bem

As obras completas de Demarco foram condensadas em um livro lançado na primeira semana deste ano: Operação Banqueiro. O jornalista Rubens Valente — que aparece como autor da reportagem que não foi publicada, na ação que não foi escrita pelo procurador Luiz Francisco — assina a obra, que passa a integrar a coleção de livros sobre o fenômeno.

O livro foi oferecido antes à Editora Três Estrelas e à Publifolha, ambas da Folha de S.Paulo, mas foi rejeitado por defeitos incorrigíveis. A empreitada de bancar a ficção ficou a cargo da Geração Editorial, que pertence a Luís Fernando Emediato, ex-presidente do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador.

O enredo dessa “Operação” é um conto de fadas contemporâneo. Dois personagens heroicos, o juiz Fausto de Sanctis e o delegado Protógenes Queiroz decidem livrar o Brasil de um tubarão do mundo dos negócios: o nefasto Daniel Dantas. Mas mesmo munidos das mais evidentes provas, passam da condição de acusadores para a de acusados. Com poderes extraterrestres, Dantas compra o governo, a imprensa, os ministros do Supremo Tribunal Federal e escapa de todas as acusações. Os mocinhos caem em desgraça. O mal triunfa mais uma vez.

Para sustentar a fantasia, o livro omite, esconde ou minimiza as trapaças dos investigadores enquanto amplifica com malabarismos verbais as culpas de Dantas. Cria fatos também. Logo na contracapa, por exemplo, escreve-se que depois de condenar Dantas, o juiz Fausto de Sanctis “foi transferido para uma vara qualquer, sem brilho e poder”, o que nunca aconteceu. O juiz foi promovido a desembargador. Inventa também que Sanctis foi surpreendido no dia da posse, no final de janeiro de 2011, com a notícia inesperada de que iria cuidar de temas previdenciários no TRF3. A designação já era sabida mais de dois meses antes.

Ao tentar descrever uma enrolada história de suborno dos delegados envolvidos nas investigações, com base em uma gravação ininteligível, o livro atribui frases ao preposto de Dantas em um momento no qual ele ainda nem havia chegado ao local do encontro. Sempre acolchoado por truques de linguagem, o livro não informa o leitor, por exemplo, que Hugo Chicaroni (segundo a satiagraha, o indivíduo que fez a ponte entre Dantas e os investigadores) foi um ator introduzido na cena pelo delegado e não por Dantas. Quem escreveu a história esqueceu de revelar que Protógenes e Chicaroni vinham trocando telefonemas seis meses antes do que o livro indica.

Em nome do bem, sempre, o livro omite fatos. Esconde que Protógenes enriqueceu enquanto conduzia a operação satiagraha, fabricou provas inexistentes e agiu fora da esfera do serviço público. Omite as fraudes e falsidades policiais espantosamente acolhidas pelo procurador Rodrigo de Grandis e pelo juiz Fausto de Sanctis. Os rombos na descrição do falso suborno dos policiais são ignorados.

Rubens Valente terá a chance de explicar na noite desta segunda-feira (17/2), quando for entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, porque enganou os leitores do seu livro em dois momentos fundamentais. No primeiro, esconde do leitor por que o alegado arauto da corrupção supostamente enviado por Dantas, Hugo Chicaroni, não foi grampeado, indiciado nem preso. O segundo é mais grave.

Faltou dizer que Protógenes desobedeceu a ordem para fotografar as cédulas do suposto suborno. A rigor, nem precisaria de ordem. Esse é um procedimento básico na polícia. Contudo, o Ministério Público pediu a providência, Sanctis deferiu, mas o delegado respondeu candidamente que o dinheiro já fora depositado em banco, o que tornou impossível o seu rastreamento.

Sobre as mentiras ditas a respeito deste site, de que este espaço foi oferecido ao Opportuniy para publicar “matérias de interesse do setor telefônico”, Rubens Valente, certamente, terá ocasião adequada para explicá-las.

Lanterna ao contrário
Já os extraordinários e-mails apreendidos com o consultor Roberto Amaral, que mostram Daniel Dantas, José Serra e Fernando Henrique Cardoso de corpo inteiro são escondidos nas últimas páginas do livro. É a melhor parte e a única novidade que o livro traz, muito embora a revista Época já tivesse publicado boa parte deles em 2011. A falha monstruosa, de minimizar essa passagem, do ponto de vista jornalístico, leva a uma só conclusão. O libelo não foi escrito para provar as culpas de Dantas e mostrar como tudo se deu, mas para tentar atenuar as penas de Luís Roberto Demarco, Protógenes Queiroz e demais parceiros que hoje respondem pelas porcarias que aprontaram. Eles estão sendo julgados por isso.

O Opportunity e Dantas afirmam que os e-mails são falsos. Difícil acreditar. A correspondência não revela crimes nem ilegalidades.

Se a lanterna de Operação Banqueiro jogasse luz, em vez de fachos de sombras, seus autores teriam dado mais espaço a duas investigações feitas pela própria PF sobre as falcatruas de Protógenes. A que foi conduzida pelo delegado Amaro Ferreira, em que o delegado expulso da PF foi indiciado por crimes de violação da lei de interceptação e quebra de sigilo funcional; e a que investigou a interceptação telefônica no STF.

Pelo primeiro inquérito, Protógenes responde junto com outro ex-delegado, Paulo Lacerda, mais os empresários Demarco e Paulo Henrique Amorim por corrupção, violação telefônica e prevaricação. O que se descobriu é que esse grupo forjou uma operação privada e fora das regras legais. Esse é o caso que mais preocupa a turminha — e que deu à luz os dois livros lançados recentemente. A decisão está nas mãos dos ministros do STF.

O segundo caso foi uma pantomima de investigação em que se tentou apagar os rastros das interceptações ilegais empreendidas pela turma de Protógenes. A leitura do inquérito, que concluiu que nada se poderia concluir, mostra o esforço dos encarregados em não chegar a lugar algum.

Nos depoimentos de 37 pessoas, espremidos em seis páginas incompletas, não se percebe, pelas respostas, uma única pergunta relacionada às maletas de grampo clandestino. O delegado Edson de Oliveira, em seu depoimento, afirmou que o então presidente do Sindicato dos Policiais Federais do RJ, Telmo Correa, lhe disse ter sido procurado pelo agente Rodrigo Távora Pescadinha Schnarndorf para se aconselhar.

Na ocasião, a hecatombe provocada pela notícia de que o STF fora grampeado sacudiu o país. Assustado com a gritaria, por ter sido ele o encarregado do grampo no STF, o agente teria procurado o líder sindical, temia ser sacrificado como único responsável pelo crime. Mas como Schnarndorf e Telmo negaram a versão, não se considerou necessário ir adiante.

Hall da desonra
Não se pode negar que o livro tem o mérito de trazer de volta uma discussão importante. A farsa montada com a operação testou todas as instituições. Mostrou as vulnerabilidades, as fraquezas e como se pode manobrar os fatos em nome de falso moralismo, idealismo de araque e boas intenções de mentirinha.

O livro tem traços de bipolaridade. Rubens Valente é um jornalista culto e cobre o mundo das leis há décadas. Difícil aceitar que ele tenha se enganado ao referir-se a Curso de Advocacia, em vez de Direito. Ou dizer que o presidente da República baixou um decreto que alterou a lei (página 252) ou as repetidas vezes em que o falso suborno ora é de 1 milhão de reais, ora de dólares (páginas 279/280). Muito menos que alguém pediu “vistas do processo” ou, pior ainda: “vistas aos autos”. O normal em Rubens — e nisso o livro é pródigo — é dizer coisas como “o STF contrariou o parecer do Ministério Público” ou que o Supremo contrariou uma decisão qualquer da primeira instância, inferindo uma inexistente inversão hierárquica.

Ao menos em um trecho, o livro chega perto de referendar um ponto de vista do ministro Gilmar Mendes. Desde a primeira menção à suposta tentativa de Dantas de pagar a um delegado para ser excluído do inquérito, o ministro sempre repetiu que isso não existe em contexto sob controle do Ministério Público e do Judiciário. Na página 388, o livro atesta: “O delegado nunca está sozinho no inquérito e suas conclusões são verificadas pelo MP e pelo Judiciário. Delegados não julgam nem denunciam, apenas apuram e informam”. A menos, é claro, que Dantas e seu exército de advogados não soubessem desse detalhe.

Não se pode negar que Rubens Valente faz jus ao nome e que é dono de uma coragem inexpugnável. A naturalidade com que ele tenta explicar a iniciativa de Fausto de Sanctis de quebrar o sigilo telefônico de todos os brasileiros é insuperável, assim como o fato de a operação satiagraha ter sido urdida em hotéis e escritórios privados — muito longe da PF. Boa a tentativa de apagar os rastros de Luís Roberto Demarco. Pena, para a tese, que as centenas de telefonemas trocados entre ele, Paulo Henrique Amorim, o delegado, deste com Chicaroni e outros paisanos do grupo, estejam nos autos dos processos.

Resta ao autor o orgulho de, com a obra, ter sido alçado ao seleto grupo do qual fazem parte Marco Aurélio Carone, Nilton Monteiro, Leandro Fortes, Ucho Haddad e Paulo Henrique Amorim. A comovente tentativa de reanimar o cadáver da satiagraha com essa respiração boca a boca marca, de forma infeliz, o jornalismo e a literatura do país.

[texto alterado às 22h33 de 18/2 para corrigir o ano (2004) em que o procurador Luiz Francisco apresentou, como sua, ação produzida por Demarco com falsa reportagem atribuída a Rubens Valente]

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