Transmissão de julgamentos

Mensalão é exemplo do mau trato à liberdade de imprensa

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14 de fevereiro de 2014, 18h20

[Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta sexta-feira (14/2)]

As prisões da ação penal 470, o dito mensalão, deixam mais algumas lições para a Justiça brasileira.

Desde que os Josés se apresentaram, em data escolhida a dedo pelo sedizente imparcial Joaquim, recomeçou a cobertura intensiva dos meios de comunicação do caso, afetando os rumos da ação.

O Brasil é o único país no mundo a transmitir na íntegra e ao vivo os julgamentos de sua suprema corte, e isso tem sérias consequências.

A presunção de inocência dá lugar às pressões de pseudoespecialistas que comentam ao vivo os julgamentos nos canais de notícias. Comentam e torcem. E a AP 470, filme b, novela ou futebol, conforme o gosto de quem está no sofá comendo pipoca, foi o maior exemplo do mau trato que se deu à fundamental e salutar liberdade de imprensa.

O direito à intimidade tem envergadura constitucional tanto quanto o princípio da publicidade e não pode ser subvertido. Muitos países tornam pública apenas a decisão dos juízes de última instância, como a Alemanha e os Estados Unidos. Estes entendem, desde a década de 1960, que a divulgação ostensiva de um caso afeta o processo.

Em 1991, quando William Kennedy, sobrinho do ex-presidente, foi acusado de estupro, a pressão midiática pela condenação era tamanha que o Judiciário suspendeu o julgamento até que o devido processo legal estivesse garantido. Quando foi retomado, o réu foi absolvido.

A Europa mantém leis que regulam a exposição de casos criminais visando à proteção da autoridade e imparcialidade da Justiça, evitando travestir os atores da cena judiciária em galãs, mocinhos e bandidos.

A Corte Europeia de Justiça ponderou que mesmo pessoas públicas têm direito à privacidade de seus julgamentos para que estes sejam justos. No caso Worm versus Áustria, a corte considerou inclusive que não há cerceamento da liberdade de expressão quando a mídia é impedida de exercer pressão.

Só há democracia de fato quando a imprensa é livre, mas a exposição de julgamentos e consequente escrutínio da intimidade dos réus não faz parte dessa liberdade: é uma pena acessória e descabida que atenta contra os direitos de personalidade, gerando uma sanção muito além daquela temporalmente estabelecida pelo tribunal.

A justiça não está na humilhação. Nem pode ser usada como instrumento político para criar guardiões da verdade ou inimigos públicos. Não há espaço para vingança.

Por luta dos que se levantaram pela redemocratização, temos bons juízes e imprensa livre, mas é preciso repensar o modelo: a liberdade de informar e formar a opinião do espectador afeta tanto as decisões dos juízes quanto a vida de quem está no banco dos réus.

Sobejam no Supremo Tribunal Federal graves e importantíssimas ações pendentes, e o julgamento da ação penal 470 está longe de ser o maior do século que mal começa, como sustentam algumas das revistas de fofoca semanais que fazem a crônica da trama e do drama judiciário.

Já é hora de o país aprender a tratar melhor a privacidade e a intimidade dos acusados, estabelecendo limites claros para a atuação da mídia e garantindo um julgamento justo para Joaquim ou para José.

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