Teatro do absurdo

Fixar despesa cabe ao Legislativo, não a cada integrante

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14 de fevereiro de 2014, 8h37

Mesmo sem aprovação de Emenda Constitucional (casuísmo extremo já denunciado), introduziu-se na Lei Orçamentária de 2014 (art. 52) a determinação de ser “obrigatória a execução orçamentária e financeira, ‘de forma equitativa’, da programação incluída por emendas individuais em lei orçamentária”. Equitativa é “a execução das programações de caráter obrigatório que atenda de forma igualitária e impessoal as emendas apresentadas, independente da autoria” (§ 7º).

O país assiste atônito, e sem esboçar reação institucional, a um verdadeiro teatro do absurdo em matéria de Direito Financeiro.

Em primeiro lugar, a Constituição não se refere a emendas parlamentares individuais (nem caberia). O que a Carta Cidadã exige é que as emendas ao projeto de lei orçamentária indiquem os recursos necessários ao seu custeio e que sejam compatíveis com o plano plurianual e com a LDO, em respeito ao princípio do equilíbrio orçamentário, vertente normativa da responsabilidade fiscal (art. 166, § 3º).

Em segundo lugar, todo orçamento, por definição planejado, refletido e discutido com olhos postos no bem comum, atendendo aos princípios da seriedade, transparência e moralidade, seria naturalmente impositivo. Desvios de previsão na arrecadação dos tributos e na fixação da despesa pública, em função do desempenho da economia ou de intercorrências conjunturais se contornam através de alterações do orçamento, propostas justificadas e debatidas tempestivamente, dentro do devido processo legislativo.

Em terceiro lugar, projetos ou programas de trabalho, políticas públicas, devem ser pensados antes da aprovação do orçamento, objetiva e racionalmente, e propostos seja pelos Poderes, seja pelas instituições legitimadas constitucionalmente; mas ao longo do processo legislativo e antes da votação (art. 167, I, da Constituição).

É assim nas democracias, mas não no Brasil. Por que será?

A recente Portaria Interministerial 40, de 6/2/2014, admite no seu art. 4º que “os proponentes deverão enviar as propostas e os planos de trabalho por meio do Siconv, até 21 de março de 2014” (nº IV).

Da mesma forma como casuísticas PECs em tramitação, lei e portaria parecem inconstitucionais no ponto e ofensivas ao sistema democrático. Como se pode ter como válido um plano de gasto (a ser apresentado a posteriori) não aprovado pelo Legislativo? Fixar e especificar a despesa cabe ao Poder Legislativo, não a cada um dos seus integrantes; é o conteúdo dos princípios da legalidade e da especialização orçamentárias.

Equitativa seria “a execução das programações de caráter obrigatório que atenda de forma igualitária e impessoal as emendas apresentadas, independente da autoria” (§ 7º). Não se compreende bem o que se pretende com tal definição; ela rompe com a tradição jurídica de ser a equidade um critério hermenêutico que abranda o rigor ou o caráter draconiano da lei na sua aplicação a casos concretos. Ora, a execução orçamentária não há que ser mais que legal (vinculada à lei) e legítima (sem desvios de finalidade e moralidade). Além do mais, é comezinho que nada no Direito Público pode ferir os princípios da igualdade e da impessoalidade. Assim, a pretensa definição de equidade acima soa a inócua ou equivocada, abrindo dúvida, aí sim, à respectiva legitimidade.

Na verdade as emendas parlamentares individuais ao orçamento são novas caudas orçamentárias, hoje, quiçá, extraorçamentárias, ao arrepio do princípio da exclusividade (art. 165, § 8º, da Constituição), positivado desde o Ato Adicional de 1926.

Note-se que tão “deselegante” (Jèze) procedimento parlamentar, deixava o orçamento “rabilongo” (Ruy), incluindo nele uma série de providências de favor, que nada tinham a ver com a ação de governo, mas acrescia despesas ao Tesouro; ora, como dantes, as emendas parlamentares individuais de hoje contradizem a noção mesma de orçamento contemporâneo: conjunto de escolhas, de políticas públicas traduzidas em dotações que têm por traz de si um feixe de normas constitucionais e legais, onde pontifica a tutela dos direitos fundamentais, a vida, a saúde, a educação, etc. O Orçamento deve atender aos direitos humanos; não são os direitos humanos que devem ficar à mercê do orçamento.

As emendas individuais, máxime depois da indigitada portaria, explicitamente subjetivizam ou privatizam o orçamento, pois os respectivos gastos não são debatidos publicamente em plenário legislativo, mas são apresentados a posteriori nos gabinetes palacianos; compõem um quadro de barganha política sem base no Direito, primeiro para conquistar a emenda individual (uma reserva de mercado ou de recursos de mais de R$ 8,5 bilhões, como noticiado) e, depois, para obter a liberação do financeiro do orçamento!

Se não houver receita bastante, o Executivo fica autorizado a remanejar dotações por decreto (outra excrescência do sistema). E se não houver dinheiro bastante no PIB, o Executivo poderá aumentar o endividamento público para atender ao interesse individual subjacente à emenda, às vezes também contingenciando o gasto legítimo orçado para atender as necessidades básicas da população mais necessitada da ação planejada e permanente do Estado. Esse parece ser o caminho inverso ao que se deve trilhar para varrer da prática brasileira o orçamento ficção.

É tempo de pugnar por um sempre mais eficaz controle jurídico do orçamento e do gasto público, na esteira do que o STF preconiza (ADIs 2925 e 4048, ADPF 45, STA 145) e vem de reiterar no julgamento do RE 581352, pois tal é preciso fazer em nome da moralidade e para o bem das finanças nacionais, cuja gestão é recorrentemente apontada como entrave ao pleno desenvolvimento do país. Sem democracia financeira não há democracia política nem democracia econômica.

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