Papel múltiplo

Atuação de advogado na área de compliance impõe desafios

Autor

  • Ricardo Breier

    é presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia do Conselho Federal da OAB e ex-presidente da OAB do Rio Grande do Sul (2016-2021)

7 de fevereiro de 2014, 9h34

Em vários países, entre eles o Brasil, legislações vêm cada vez mais consolidando responsabilidades no âmbito civil, administrativo e criminal de empresas assentadas no descumprimento de normativas que previnem riscos relacionados a sua atividade[1]. Os programas de compliance[2] incorporaram-se no cenário doutrinal não apenas como uma importante ferramenta de organização para as empresas obterem êxito em sua estrutura administrativa (prevenção de fraudes, corrupção pública/privada, gestão de custos operacionais, implementação de códigos de conduta e de ética, gestão de riscos, etc.), mas também para delimitar a responsabilidadejurídica dos administradores, gerentes, executivos e demais funcionários.

Atualmente, só irão sobreviver no cenário competitivo mundial as empresas que possuírem uma estrutura administrativa capaz de transmitir confiança tanto no setor público como no privado; a sua reputação, imagem e confiabilidade estão intimamente firmadas através de êxitos no controle interno, de uma profícua gestão de riscos e de um programa contínuo na área de políticas sociais (meio ambiente, consumidores, segurança do trabalho, saúde, etc.).

Os programas de compliance materializam um atuar que pode ser definido pela prática da “boa governança corporativa”[3], um caráter constitucional necessário na incansável luta contra o abuso de poder dentro das corporações. Em nosso cenário nacional, essa realidade projeta uma necessidade de maior qualificação dos advogados que atuam ou pretendem atuar nessa área, pois tudo está a indicar que cada vez mais serão fundamentais tanto para a elaboração como para a revisão dos programas de compliance. Sem dúvida, para mim, essa é uma prerrogativa profissional que credita, valida e, principalmente, eleva a eficácia dos programas para as empresas.

A grande pergunta que fica no ar é: quais são os desafios que o advogado terá que vencer para ser um profissional habilitado na função de orientador dos programas de compliance?

A experiência tem nos ensinado que todo advogado inicialmente deve ampliar seus conhecimentos em temas extrajurídicos (administrativo, financeiro, contábil, sistemas de auditorias e due diligence, etc.), sendo este um requisito importante para uma efetiva orientação, elaboração e identificação do melhor programa de compliance a ser adaptado e operacionalizado no universo específico de cada empresa.

Os programas de compliance, por sua natureza e expressiva peculiaridade, são dotados de alta complexidade, obrigando o advogado especializar-se não somente nas normativas nacionais (por exemplo: os regramentos do Conselho Monetário Nacional, Comissão de Valores Mobiliários e Conselho de Controle de Atividades Financeiras), como também, e na mesma proporção, dedicar-se ao estudo aprofundado de normativas legais internacionais em compliance[4]. Essa perspectiva amplia em muito a sua capacidade de avaliação para a organização de protocolos conectados com políticas de prevenção, compromissos dos órgãos diretivos, regras na formação de profissionais e implantação de sistemas disciplinares.

Tema igualmente importante vem a ser a adaptação de normas internacionais de compliance nas filiais de empresas situadas no Brasil, um fenômeno jurídico que a doutrina define como normas de cumprimento não harmonizadas[5]. Essas, necessariamente, deverão ser adaptadas à realidade nacional, impondo ao advogado que domine, além das normas de direito, as normas de cultura organizacional da empresa, para que assim seja propiciado mecanismos de flexibilização dentro deste contexto de culturas variadas.

Outro desafio para o advogado vem a ser a análise e a gestão de riscos nas atividades empresariais. O risco se confunde com incerteza, de modo que as atividades que apresentam riscos estão referendadas por princípios de segurança e por inúmeros regulamentos técnicos. Gestão de riscos reforça a avaliação de decisões a serem tomadas pelas empresas em suas atividades e as consequências possíveis e aceitáveis destas, seja na área jurídica ou social, uma fonte importantíssima para a definição dos programas de compliance. Podemos citar como exemplo a área bancária, que cada vez mais vem sendo fortalecida pelo constante estímulo à criação de programas de controle interno como forma de conter riscos relacionados a fraudes (casos de corrupção e operações cambias duvidosas). Uma gestão deficiente poderá colocar em risco a imagem e gerar enormes prejuízos econômicos para empresa, além de acarretar sanções administrativas e criminais. Cabe ao advogado avaliar e interagir com os diversos segmentos empresariais para um diagnóstico sobre os riscos envolvidos em cada operação e inserir nos programas de compliance medidas aptas a identificar e minimizar os riscos dos negócios da empresa.

Não menos importante é o tema da correlação da relevância jurídico-penal do compliance, pois com o aumento significativo das investigações na estrutura organizacional das empresas, estas servem de fonte para identificar e definir a responsabilidade individual de seus gestores quando da prática de atos ilícitos (financeiros, corrupção, farmacológicos, fraudes e etc.). No Brasil, estamos timidamente iniciando o debate no tema da responsabilidade criminal pelo não cumprimento de normas de prevenção. Temosa Lei 12.846/13, denominada Lei Anticorrupção, que poderá servir de parâmetro para uma responsabilização criminal individual[6]. O ponto inovador da lei, para o Brasil, já que em muitos países há muito é adotado, vem a ser a obrigação das empresas na adoção de programas de compliance voltados à constituição de mecanismos e procedimentos interno de integridade, auditoria e incentivo à aplicação de códigos de conduta e de ética no âmbito da pessoa jurídica, além de responsabilizar dirigentes e administradores na medida de sua culpabilidade por atos ilícitos[7].

A taxatividade da lei, na medida de sua culpabilidade, obriga que o advogado auxilie na elaboração de um programa que determine as funções estruturais organizacionais da empresa, como forma de minimizar os problemas de déficit organizacional[8]. Os programas de compliance terão que identificar as formas de decisão organizativa e o papel do administrator na avaliação dos programas anticorrupção e de prevenção. Em muitos casos, pela experiência de outros países, revelou-se que um programa impreciso e amplo poderá levar a uma multiplicação de deveres e de garantias que não limitarão a responsabilidade dos diretores/administradores na gestão administrativa, oportunizando a conhecida responsabilidade genérica.

Sempre haverá por parte do advogado o dever de conhecer os fundamentos, funções, poderes e consequências de decisões dos gestores da empresa, seja na forma ativa ou omissiva, bem como os limites para delegações de poderes (compliance officer).

A busca por um modelo mais adequado possível de compliance criminal deverá estar associado aos princípios e valores básicos voltados à ética corporativa, um compromisso pela prevenção de condutas ilícitas no mundo empresarial.

Como visto, o advogado é a medula no marco teórico da elaboração, orientação e revisão de programas de compliance. É um elemento crucial, dentre outros, para o seu efetivo sucesso; que venham os desafios!


[1] A história sobre a necessidade de um efetivo programa de cumprimento de normas e controle nas empresas nasce após vários escândalos no mundo empresarial, principalmente nos Estados Unidos, como exemplo: o caso Watergate, Penn Central, Enron, WorldCom e, recentemente, a subprimecrisis americana em 2008 (crise imobiliária) e, na Itália, o caso Parmalat. Em todos os episódios comprovou-se a debilidade de programas de controle e de fiscalização das empresas, principalmente na temática de gestão e prevenção de riscos corporativos. Essa constatação tem proporcionado um grande debate sobre a necessidade de implantação de normas de controle interno e externo, o que reflete na autorregulação empresarial em seus vários de seus segmentos (financeiros, bancários, ambientais, farmacológicos, consumidor, saúde, etc.). Sobre o tema ver artigo: http://www.conjur.com.br/2013-set-28/autorregulacao-produz-impactos-direito-penal-empresarial.

[2] Compliance vem do termo inglês to comply, que para o português significa cumprir, executar, observar, satisfazer o que foi imposto. Há uma relação direta com o cumprimento de programas que visam à gestão de determinada empresa. Em muitos casos, os programas estão relacionados com protocolos elaborados para identificar ações de riscos internos de operacionalidade, um referencial para estratégias de prevenção e controle dos mesmos (In. LafuenteLiñán, Alfredo. Cumplimiento normativo. Compliance. Madrid, La Ley, 2012, p.68).

[3] Os programas de compliance demandam um controle efetivo sobre a gestão e organização da empresa. Esses programas estão associados a recomendações internacionais e nacionais. Entre um exemplo está o Comitê da Basiléia, constituído por representantes dos bancos centrais e por autoridades responsáveis pela supervisão bancária dos países membros do G10. Uma das recomendações desse comitê para o fortalecimento da fiscalização dos países, no tocante ao sistema financeiro é a adoção das melhores práticas de gestão de riscos para a promoção da estabilidade financeira dos países. Conclui-se, então, que as empresas que adotam padrões de governança corporativa, através dos programas de compliance, vivem um processo permanente de fiscalização para a manutenção de um processo contínuo e sistêmico de prevenção de qualquer evento que possa representar riscos aos padrões de boa governança, com resultados não desejados interna ou externamente.

[4] Como marco para o desenvolvimento de diplomas legais acerca do compliance tem-se o ForeignCorruptPraticesAct (FCPA), diploma norte-americano de 1977. Todavia, ainda podemos citar outras leis, normativas ou recomendações de outros países que tratam de programas de prevenção e responsabilidade jurídica de empresas e administradores: Estados Unidos da América: Dodd-Frank Act; United States Sentencing Comission Guidelines Manual; Sarbanes-OxleyAct; Comunidade Europeia: Diretrizes para Empresas Multinacionais – OCDE;Acordos de Capital da Basiléia (I, II, e III); Itália: Decreto Legislativo Italiano n. 231/2001; Espanha: Código Penal español, artículo 31 bis; Portugal: Lei 59/2007 e DL 28/84; Suíça: Art. 100 quartier f. ZStrR 121; Alemanha: Normas do Institut der Wistschaftsprufer (IDW OS 908/2011); Chile: Ley n. 20.393, artículo 3.

[5] CasanovasYsla, Alain. Legal e compliance. Madrid, DifusiónJuridica, 2012, p. 33.

[6] A lei responsabiliza a empresa apenas na esfera administrativa e cível.

[7] Tema aprofundado na obra que estou escrevendo, a ser concluído em breve, sob o título Autorregulação, Compliance e Responsabilidade Criminal.

[8] HEINE, Gunter, Modelos de responsabilidade jurídica penal originária de laempresa. Navarra: Editorial Aranzadi, 2006, p. 26.

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