Ideias do Milênio

Reza Aslan: "Há pouca novidade a ser dita sobre Jesus"

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7 de fevereiro de 2014, 13h21

Entrevista concedida pelo historiador norte-americano de origem iraniana Reza Aslan ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

O Novo Testamento conta a história de Jesus Cristo, mas o que dizem outras fontes sobre quem foi realmente Jesus, o Jesus histórico? Pouquíssimos documentos sobreviveram à passagem dos milênios, mas, desde o século XIX, pesquisadores trabalham para responder à pergunta. O historiador da religião Reza Aslan reuniu as principais conclusões no livro Zelota, a vida e o tempo de Jesus de Nazaré. Um best-seller nos Estados Unidos, o livro provocou a ira de fundamentalistas cristãos, que atacaram Aslan: Como é possível que um muçulmano fale sobre Jesus? De passagem por Nova York, Reza Aslan, um jovem americano de origem iraniana que vive na Califórnia, recebeu o Milênio para defender sua versão de quem teria sido o Jesus histórico.

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Jorge Pontual — O que o levou a estudar o Jesus histórico?
Reza Aslan — Ouvi a história do evangelho pela primeira vez aos 15 anos, em uma colônia de férias evangélica no norte da Califórnia. Essa mensagem do Deus do Céu e da Terra descendo na forma de um bebê e morrendo por nossos pecados, e de que quem acredita nele também terá vida eterna. Eu nunca tinha ouvido nada parecido na vida. Foi uma experiência transformadora. Eu me converti, virei cristão evangélico, e passei os quatro ou cinco anos seguintes pregando essa mensagem a todos que eu conhecia. Quando entrei na faculdade, decidi que meu trabalho seria estudar o Novo Testamento, e foi nesse momento que tive a experiência que acho que muita gente na minha situação tem: a percepção de que muita coisa que eu julgava saber sobre Jesus era incompleta, se não incorreta; que há um abismo entre o Cristo da fé, ao qual fui apresentado na igreja, e o Jesus histórico, sobre quem eu aprendia na universidade. E fiquei mais interessado no Jesus histórico. Ele se tornou mais real para mim, mais acessível e até mais simpático. E o livro surgiu disso; eu quis escrever sobre esse homem.

Jorge Pontual — Como acadêmico de estudos religiosos, como construiu o seu Jesus histórico?
Reza Aslan — Em relação à minha formação, tenho vários diplomas em história e sociologia das religiões. Eu me especializei no que se chama hoje de religiões ocidentais ou abraâmicas: islamismo, judaísmo e cristianismo. E me interesso principalmente pelas questões das origens. Meu primeiro livro era sobre as origens do islamismo. Este é sobre as origens do cristianismo, embora eu queira deixar claro que o livro “Zelota” não é sobre o cristianismo, porque Jesus não era cristão, ele era judeu. É um livro sobre o judaísmo, e o que eu diria a quem me pergunta qual é a diferença entre o Cristo da fé e o Jesus histórico é que a principal diferença é que Jesus histórico era um judeu pregando o judaísmo a outros judeus. Quando você se dá conta disso, surge uma nova forma de pensar sobre quem foi esse homem.

Jorge Pontual — Mas você descobriu alguma prova nova, algo que as pessoas desconheciam?
Reza Aslan — A busca pelo Jesus histórico tem uns 200 anos. Faz dois séculos que estudiosos têm procurado o Jesus histórico. Então, para ser franco, a esta altura, há muito pouca novidade a ser dita sobre Jesus, com exceção de algumas descobertas arqueológicas. A última grande descoberta que fizemos foi a dos manuscritos do Mar Morto e a dos Evangelhos Gnósticos, que nos ensinaram muito sobre a enorme diversidade existente no cristianismo dos séculos 2 e 3, mas, infelizmente, não revelaram muito sobre o Jesus histórico. Já os manuscritos do Mar Morto, que foram escritos por judeus que compartilhavam vários sentimentos de Jesus e que foram escritos mais ou menos na época em que Jesus viveu, geraram uma nova forma de pensar o mundo em que Jesus viveu. Portanto, o meu principal recurso para reconstruir a vida e a época de Jesus foi o próprio mundo dele. O que tento fazer é destilar esse debate de 200 anos que só acontece na academia, apenas entre estudiosos, e torná-lo acessível e atraente a um público mais abrangente. Quero que todo mundo se envolva nessa discussão.

Jorge Pontual — Quem eram os zelotas? Jesus era um deles?
Reza Aslan — O fenômeno dos zelotas era comum na época de Jesus. A maioria dos judeus no mundo de Jesus provavelmente diria que zelava pelo nome de Deus. O termo “zelo” é na verdade um princípio bíblico e significa principalmente uma devoção inflexível à autoridade suprema de Deus. É uma recusa a servir qualquer outro mestre que não seja o Senhor do Universo. E é algo que está no coração da Torá, que diz que a Terra que Deus separou para seus escolhidos não pode ser ocupada por mais ninguém. Para Jesus e os outros judeus, isso era um conflito muito real. Eles viviam numa terra que estava sob uma ocupação brutal e sangrenta de um Império Romano pagão. O zelo forçava, obrigava os judeus a defenderem sua terra contra esse império pagão. Então muitos judeus, a maioria, eu diria, provavelmente se autodenominariam zelotas com orgulho, mas alguns zelotas realmente radicalizaram e enfrentaram tanto o Império Romano quanto os chamados colaboradores judeus, a elite rica e aristocrática, que apoiava a ocupação romana. E o argumento do livro é que, quando você analisa os ensinamentos e as ações de Jesus, o fenômeno dos zelotas, que era amplamente difundido, era impossível de ser evitado.

Jorge Pontual — Como você separa os ensinamentos do Jesus histórico do que foi adicionado aos Evangelhos?
Reza Aslan — É importante entender que os Evangelhos não são relatos de testemunhas oculares de acontecimentos históricos. Eles são argumentos teológicos escritos por fiéis muitos anos depois dos acontecimentos que descrevem. Em outras palavras, os escritores dos Evangelhos já acreditavam que Jesus era o messias, o filho de Deus ou Deus encarnado. E eles escreveram os Evangelhos para provar essa crença. Portanto, eles são um argumento, são um lado do debate, não uma história ou uma biografia nos termos atuais. Então, o que um estudioso tem de fazer é pegar as declarações dos Evangelhos e analisá-las segundo o que sabemos sobre a época em que foram escritas e a época que descrevem, que são diferentes, para tentar descobrir o que é e o que não é historicamente correto. Mas, como eu disse, esse processo existe há muito tempo. As ferramentas à disposição dos estudiosos para decidir o que é ou não provável nos Evangelhos existem há muitos anos e, a esta altura, há uma razoável unanimidade entre os estudiosos em relação ao que é e não é mais histórico. Ainda há muita discussão. Nem todo mundo concorda em tudo, mas há unanimidade em relação a certos versículos e certas passagens que são descartadas pela maioria. Por exemplo, as passagens sobre a natividade, as histórias sobre o nascimento de Jesus que encontramos em Mateus e Lucas. Pouquíssimos estudiosos levam aquelas histórias a sério.

Jorge Pontual — Pode dar um exemplo desse Jesus revolucionário em uma de suas pregações?
Reza Aslan — Talvez o exemplo mais famoso, e um que a maioria dos estudiosos concorda como sendo historicamente correto, seja sua declaração sobre o pagamento de tributo. É uma declaração que a maioria das pessoas conhece, aquele famoso momento no qual as autoridades judaicas preparam uma armadilha para Jesus perguntando a ele se é legítimo pagar o tributo a César ou não. O interessante é que os Evangelhos dizem que os judeus estavam preparando uma armadilha, mas não dizem qual é. Isso porque o público original dos Evangelhos sabia exatamente do que se falava, mas nós, 2 mil anos depois, não entendemos o contexto. A cena é a seguinte: Jesus acaba de entrar triunfante em Jerusalém, proclamando-se o novo rei dos judeus. Ele participou de um ato de traição ao expulsar do templo os cambistas e os animais para o sacrifício. Nesse momento, os próprios discípulos reconhecem o fanatismo nas ações de Jesus e relembram o versículo mencionado pelo Rei Davi: “O zelo por Vossa casa me consome.” Imediatamente depois disso, as autoridades judaicas decidem fazer uma pergunta para que Jesus se entregue enquanto zelota. Então vão até ele e perguntam: “Rabi, devemos pagar o tributo a César ou não?” Essa não se trata de uma pergunta simples. O pagamento de tributo na época de Jesus era o teste definitivo do fanatismo. Simplificando o máximo possível: os zelotas se recusavam a pagar tributo a Roma, porque, ao contrário dos impostos, que todo mundo pagava dependendo da propriedade que tinha, o tributo era um pagamento extra de um denário que todos os homens judeus faziam diretamente ao imperador como sinal de sua subserviência a Roma. Era um sinal de que a terra pertencia a Roma. Portanto todos os homens tinham de pagar essa moeda simbólica. E a fala seguinte de Jesus ficou famosa: “Mostre-me um denário.” Alguém lhe dá uma moeda e ele diz: “De quem são o rosto e o nome nesta moeda?” Dizem que são de César e então Jesus diz algo que, por muitas gerações, desde a Bíblia King James, é entendido, não só em inglês mas em muitas línguas, como: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, mas não é isso que Jesus diz. A palavra grega que ele usa não significa “dar”. É na verdade uma palavra composta que significa “devolver”. A palavra em si significa devolver algo a alguém que é o dono da coisa. Se eu pegasse algo emprestado com você, eu lhe devolveria. O que Jesus que dizer é: “Devolva a moeda a César porque é dele. O nome e o rosto dele estão nela. Mas devolva a Deus o que é de Deus”, e todo judeu daquela época que ouviu isso sabia exatamente o que era de Deus: a terra era de Deus. Portanto esse se torna o momento em que Jesus se entrega enquanto zelota e de fato, quase imediatamente depois disso, ele se esconde porque os romanos tentam prendê-lo, e ele é levado à justiça logo depois.

Jorge Pontual — Qual era o significado do “reino de Deus” para o Jesus histórico?
Reza Aslan — Acho que a maioria dos estudiosos concorda que os ensinamentos de Jesus se baseiam nessa noção do reino de Deus. Mas muito se discute o que Jesus queria dizer quando falava no “reino de Deus”. Mas quando analisamos as primeiras declarações de Jesus, principalmente no Evangelho de Marcos, o primeiro, escrito por volta de 70 d.C., o que percebemos é que Jesus descreve um reino muito real, um reino presente que ele presumia que fosse criado na Terra durante a sua vida. Ele diz que há pessoas que não morrerão antes de verem o reino de Deus criado na Terra. Entenda que o papel do messias como descendente do Rei Davi era restaurar o reino de Davi. Então, acho que quando Jesus se refere ao reino de Deus, também se refere ao reino de Davi. Para ele os dois são a mesma coisa. O “reino de Deus” para Jesus era uma nova ordem mundial, uma na qual os ricos e os pobres trocariam de lugar, quem está em cima desceria e quem está embaixo subiria. Quando Jesus fala que os pobres herdarão o reino de Deus, os famintos serão alimentados, os que pranteiam se alegrarão, as pessoas esquecem que ele continua falando do outro lado desse argumento: que os ricos receberão consolo, que os que têm comida passarão fome, que os alegres prantearão. Jesus, em sua concepção do reino de Deus, não descreve uma fantasia utópica onde todos são iguais. Ele está descrevendo uma realidade assustadora, na qual os pobres e os ricos trocam de lugar, na qual os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros. Ele descreve a inversão da ordem social e, como pode imaginar, essa era uma mensagem atraente para quem estava na base da escala social e ameaçadora para quem estava no topo e, no final, é o que o leva à morte.

Jorge Pontual — Como foi que o “reino de Deus” passou a significar algo totalmente diferente: a eternidade, o reino dos céus?
Reza Aslan — É importante entendermos que os Evangelhos foram escritos depois do ano 70 d.C. O que aconteceu nesse ano? Como resultado de uma rebelião de zelotas em 66 d.C. em Jerusalém, os romanos marcharam até a Cidade Sagrada e a incendiaram, mataram cerca de 100 mil judeus e destruíram o Templo, e o judaísmo deixou de ser um culto legítimo no Império Romano. E os cristãos tinham uma decisão simples a tomar: continuar a pregar o evangelho aos judeus, que são párias no Império Romano, ou se concentrar exclusivamente num público não judeu, ou romano? E fica bem claro quando lemos os Evangelhos que eles não foram escritos para um público judeu. Primeiro, foram escritos em grego, não em aramaico, a língua de Jesus, nem em hebraico, a língua dos judeus. Segundo, eles descrevem constantemente rituais judaicos, explicam as coisas judaicas que Jesus e seus seguidores fazem, claramente porque são destinados a um público não judeu. Mas, principalmente, se você fosse pregar essa mensagem a um público não judeu, teria que fazer três coisas importantes. Primeira: teria que descrever um Jesus um pouco menos judeu. Ou seja, teria que remover o contexto etnonacionalista de seus ensinamentos e transformá-los em princípios éticos abstratos que todos aceitariam, independentemente de sua raça ou cultura. É difícil convencer um grupo de romanos a se associar a um movimento fundado por um camponês judeu. É preciso torná-lo menos judeu. Segunda: precisa torná-lo menos revolucionário. Precisa adaptar as declarações revolucionárias de Jesus. Novamente, é muito difícil convencer romanos a seguirem um movimento iniciado por um homem cuja motivação era retirar Roma do poder. Não é um argumento muito bom. Então, é a essa altura que vemos a espiritualização da mensagem de Jesus. “O reino de Deus não é um reino terreno, é celestial.” “Jesus não queria mudar o mundo terreno. Seu único interesse era no mundo dos céus.” “O messias não está interessado em restaurar o Reino de Davi na Terra; o messias é uma figura espiritual. Seu reino virá no final dos tempos.” Isso significa remover qualquer tipo de ameaça política que o movimento de Jesus pode apresentar aos romanos. Você tenta convencer Roma de que se trata de um movimento puramente espiritual sem nenhum objetivo político. A terceira coisa, talvez a mais importante, que precisa fazer para tornar a mensagem do evangelho palatável aos romanos é retirar a culpa de Roma pela morte de Jesus. Roma não pode ter matado esse homem. Foram os judeus que o mataram. Por isso o que você vê nos Evangelhos, desde o primeiro, de Marcos, até o último, de João, é uma progressão constante, em que, pouco a pouco, toda a culpa é retirada de Pôncio Pilatos, e colocada diretamente sobre os judeus. Foram os judeus que mataram Jesus, o que, por sinal, é um argumento perfeito para “desjudificar” Jesus. Além de Jesus não ser judeu, foram os judeus que o mataram.

Jorge Pontual — São Paulo estava por trás disso?
Reza Aslan — Paulo certamente teve um papel muito importante na dissociação desse movimento de suas conexões judaicas. Paulo disse que Cristo era o fim da Torá, e o que ele tentou fazer foi transformar o movimento em algo novo e diferente, algo que claramente não era mais o judaísmo. Mas é importante entender que, durante a vida de Paulo, a sua versão do movimento foi uma versão marginal. Na verdade, Paulo não era nada popular entre a primeira comunidade de cristãos. Ele vivia em conflito com a assembleia de Jerusalém e os principais líderes do movimento: Tiago, irmão de Jesus, Pedro, o primeiro apóstolo, e João. Esses três líderes, que conheceram Jesus, viajaram e conversaram com ele, ao contrário de Paulo, que nunca conheceu Jesus, eram os verdadeiros líderes da comunidade, e sua interpretação do movimento era muito mais judaica do que a interpretação de Paulo. Mas foi depois da morte de Paulo, da destruição de Jerusalém e, com ela, a destruição da primeira igreja de Jerusalém, a igreja que foi liderada por Pedro, João e Tiago, que a visão de Paulo de um cristianismo separado do judaísmo, um cristianismo mais romano e helenístico, ganhou força.

Jorge Pontual — Qual é a relevância, para nós, desse Jesus revolucionário?
Reza Aslan — Se há alguma lição para ser aprendida hoje com o exemplo revolucionário de Jesus é a de que todas as pessoas, em todas as épocas, usarão a religião em busca de um propósito e uma identidade quando sua dignidade lhes for retirada. Isso aconteceu com judeus vivendo sob a ocupação romana, há 2 mil anos, e também acontece com um muçulmano vivendo sob a ocupação judaica 2 mil anos depois. Acho que um fato fundamental em relação à religião é que ela oferece uma sensação de propósito e de identidade, e quando você é marginalizado, quando se sente pessoalmente atacado, a religião preenche o espaço, para o bem e para o mal. Às vezes por motivos pacíficos, outras por motivos violentos. Mas esse é o poder que a religião tem, e acho que esse á uma lição a ser aprendida sobre a vida e a época de Jesus.

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