Convenção de Haia

Direito de guarda deve ser decidido na residência da criança

Autor

  • Carmen Tiburcio

    é professora de direito internacional privado e processo internacional na Faculdade de Direito da UERJ. Mestre e doutora em direito internacional. Consultora no escritório Barroso Fontelles Barcellos Mendonça & Associados.

7 de fevereiro de 2014, 7h10

A separação (em regra) não é o evento mais feliz da vida de um casal. Havendo bens a serem partilhados, é possível que as coisas piorem. As chances de uma separação tranquila diminuem ainda mais quando é necessário determinar a quem caberá a guarda dos filhos do ex-casal. A se considerar que os cônjuges possuem nacionalidade ou origem distintas, bem como a probabilidade de que passem a viver em países diferentes, a disputa pela guarda torna-se ainda mais intensa.

Nessas circunstâncias, não é incomum que um dos genitores sinta-se compelido a buscar refúgio em seu país de origem, a fim de ser beneficiado pelo Judiciário local na disputa pela guarda da criança. É dizer: o genitor abdutor — em busca de vantagem indevida — altera ilicitamente a jurisdição competente para decidir as questões relacionadas à criança, geralmente também importando em alteração do direito aplicável ao caso.

Para atingir sua finalidade, o genitor abdutor usualmente pratica uma entre as duas seguintes ações. Na primeira hipótese, a criança é retirada ilicitamente — ou seja, sem a autorização do genitor abandonado — do país de sua residência habitual. Trata-se da típica situação que envolve genitores de nacionalidades distintas, na qual, por conta do término do relacionamento entre o casal, um dos genitores, por decisão unilateral, retira a criança do ambiente no qual ela reside, para levá-la ao país de origem do genitor abdutor. Na segunda hipótese, embora a remoção não seja ilícita, a permanência da criança longe de sua residência habitual configura a ilicitude da conduta. É o caso do genitor que, aproveitando autorização de viagem ao exterior nas férias, por exemplo, não retorna com a criança após o período previsto.

Antes da Convenção de Haia, os resultados da remoção ou retenção frequentemente beneficiavam o genitor que praticou o ilícito. Os relatos dos obstáculos enfrentados pelo genitor abandonado descrevem cenário realmente devastador, incluindo dificuldades para localizar o destino da criança — muitas vezes sem qualquer ajuda das autoridades locais —, os altos custos do litígio no exterior e a tendência do Judiciário local de favorecer seus nacionais, premiando a conduta ilícita[1]. Foi esse cenário que antecedeu a elaboração da Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças, concluída em 1980 e em vigor no Brasil a partir de 2000.

A Convenção de Haia é instrumento internacional com propósito bastante específico e bem definido, a saber, permitir que disputas judiciais envolvendo direitos de guarda e visitação sobre crianças sejam decididas pela jurisdição de sua residência habitual, à luz do direito local. A afirmação de que as autoridades do local de residência habitual da criança são as mais aptas a decidir questões a ele relacionadas é bastante intuitiva: trata-se do juízo mais próximo de eventuais provas a serem produzidas e também mais familiarizado com as práticas sociais do local da residência habitual, bem como com a legislação aplicável à relação. Esse é o juiz natural para a causa.

A retenção/remoção ilícita afeta não apenas o genitor abandonado, mas também a criança sequestrada. O distanciamento entre a criança e seu meio social, decorrente da subtração, promove prejuízos muitas vezes irreversíveis. Por isso, a convenção tem como finalidade criar mecanismo apto a proteger os direitos do genitor abandonado e da criança abduzida, restabelecendo a jurisdição da autoridade competente e prevenindo a manipulação fraudulenta do direito aplicável (artigo 3, a, da Convenção).

A descrição dos meios usualmente empregados para obtenção de vantagem ilícita por um dos genitores — a subtração de crianças de sua residência habitual — e dos malefícios decorrentes da prática permitem antever a finalidade da convenção. Como o afastamento da residência habitual é a origem comum dos danos jurídicos e fáticos causado ao genitor abandonado e à criança, a principal medida da convenção consiste em determinar o retorno da criança ao país da residência habitual. Desse modo, a ordem de retorno tem o objetivo de restaurar o status quo, reinserindo a criança no meio ao qual está habituada e preservando os direitos validamente adquiridos do genitor abandonado naquela jurisdição.

A convenção não pretende punir o genitor abdutor, tampouco veda que a ele seja atribuída a guarda da criança. Essa e outras questões devem ser analisadas pelo Judiciário do local da residência habitual da criança. A convenção pretende apenas evitar decisões oriundas de Judiciário cuja suposta competência decorre de ato ilícito praticado por uma das partes. O ponto é simples. Presumir que o Judiciário brasileiro é mais apto a decidir o futuro de criança residente em outro país do que o juiz da residência habitual pelo simples fato da sua nacionalidade ou porque se encontra no Brasil é retrocesso imensurável. Certamente, essa não é a melhor maneira de promover o melhor interesse da criança; ao contrário, apenas demonstra alto grau de provincianismo.

Inicialmente, as decisões proferidas pela Justiça Federal foram objeto de críticas da comunidade internacional, pois reiteradamente negavam o retorno da criança. Em momento posterior, as decisões foram deferentes ao tratado e, por isso, objeto de questionamentos na esfera doméstica, sob o fundamento, inclusive, da invalidade da própria convenção. (ADI 4245). Nada obstante as críticas injustas às decisões mais recentes é fácil perceber que a Convenção de Haia é a melhor chance do genitor abandonado rever seu filho e, para a criança, é o meio mais eficaz para que retorne prontamente ao local de sua residência habitual e possa ter contato com ambos os genitores. Por questões mais bem explicadas pela psicologia do que pelo direito, e parafraseando Rui Barbosa, nos casos envolvendo a remoção ou retenção de crianças, justiça atrasada não é justiça — os efeitos do prolongamento da remoção frequentemente são irreversíveis.

Naturalmente, a convenção nem sempre determinará o retorno da criança ao Estado do genitor requerente. É possível que se conclua que a residência habitual da criança havia sido transferida antes da remoção ou retenção ilícita ou que incidam os óbices ao retorno previstos na convenção. A boa aplicação da convenção não exige o retorno em todos os casos; bem diversamente, apenas requer que o Judiciário local não adote a premissa equivocada de que é mais apto a proferir boas decisões do que as autoridades da residência habitual da criança — nesse, como em outros casos, um Judiciário que presume muito de si geralmente desempenha menos do que dele se espera.

[1] . Em relatório apresentado ao governo dos Estados Unidos, Peter Pfund chegou a afirmar que o sequestro de crianças era problema irremediável (Pfund, The Developing Jurisprudence of the Rights of the Child-Contributions of the Hague Conference on Private International Law, ILSA Journal of International & Comparative Law 3: 665-7, 1997). No Brasil, ver Carmen Tiburcio, “O sequestro de crianças e o direito internacional, Revista de Direito do Estado 13:385, 2009: “O principal instrumento de combate à subtração internacional de menores é a Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980, em vigor no Brasil por força do Decreto nº 3.413/2000, que veio resolver principalmente os conflitos entre pais de nacionalidades/domicílios diferentes sobre questões relacionadas aos filhos comuns do casal. Até a conclusão da Convenção esse era um problema intransponível: em muitos casos, com o término da relação conjugal, os filhos desses casais eram retirados do local da sua residência habitual e levados por um dos pais para o exterior, jamais retomando contato com a mãe ou com o pai deixado para trás”.

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    é professora de direito internacional privado e processo internacional na Faculdade de Direito da UERJ. Mestre e doutora em direito internacional. Consultora no escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados.

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