Projeto com qualidades

Há lugar para certo otimismo em relação ao novo CPC

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4 de fevereiro de 2014, 17h04

Três observações são necessárias antes que se comece a tratar propriamente do projeto para um novo CPC[1].

A primeira delas é a de que realmente este projeto, em todas as suas versões, têm inegavelmente muitas qualidades. Na minha opinião a mais relevante delas é conter dispositivos que dão relevância à jurisprudência reiterada dos tribunais superiores[2] no mesmo sentido e outros que estimulam os ministros e os desembargadores a construir uma jurisprudência uniforme e a mantê-la estável. Trata-se de uma forma de combater um sério problema que aflige quase todas as sociedades latino americanas e mesmo países europeus, como por exemplo, a Itália: a incrível dispersão jurisprudencial.

Todas as versões do projeto procuram estabelecer visível contextualização do Código num panorama mais amplo em que a CF figura como lei fundamental, que deve dar o tom a todos os demais dispositivos que compõem o sistema positivo. Percebe-se, também, uma tentativa de simplificar as regras, hoje existentes, com o objetivo de que elas não se transformem em mais um problema que o juiz tem que resolver, além do mérito.

Evidentemente, todos os pontos acima mencionados podem ser considerados como qualidades do projeto.

A segunda observação consiste em que se deve ter presente que este Código não vai resolver todos os problemas da prestação jurisdicional no Brasil. Aliás, nem este código e nenhum outro. A mudança da lei não tem senão um papel de coadjuvante nas mudanças sociais. Apenas numa certa medida terá um novo diploma legal o condão de produzir alterações visíveis no plano empírico. De fato, o excesso de litigiosidade, que é um problema social, é indiretamente responsável pela morosidade dos processos e isso não se resolve com mudanças nas regras processuais.

Que isso não seja, todavia, visto como algum tipo de desestimulo a que haja aprovação do novo CPC!

A terceira e última observação diz respeito a uma crítica que se se vinha fazendo com frequência ao Código vigente. Dizia-se, e, ainda se diz, que o CPC vigente precisava e precisa ser substituído por um Código novo porque se tinha transformado numa verdadeira “colcha de retalhos”, em virtude das várias reformas parciais que houve durante os últimos vinte anos. No entanto, o projeto já passou por várias comissões, depois da primeira, de que tive a honra de ter sido relatora.

Nos últimos tempos, mais especificamente nos últimos dois anos, o projeto foi uma esponja para acolher sugestões oriundas de todos os cantos do Brasil, dadas por um número incomensurável de processualistas. Houve momentos em que, numa mesma semana, o projeto teve três versões diferentes. Preparar palestras ou dar entrevistas sobre o projeto passou a ser um tormento: porque se precisava (e se precisa) saber qual a versão do dia. E o pior é que essas versões não são divulgadas oficialmente: ou seja, não se sabe ao certo qual está “valendo”.

Se este fenômeno tem um lado muito positivo, porque as pessoas que contribuíram, principalmente as que ficaram à testa da seleção e inclusão das propostas enviadas, são juristas muito preparados e sobretudo bem intencionados, e por que isso é a democracia, por outro lado, evidentemente, o que se tem hoje é a mesma “colcha de retalhos” que tanto se criticava e ainda se critica. Perdeu-se a oportunidade de se construir um projeto coeso, harmônico e simples.

Apesar destes “pesares”, há lugar para certo otimismo em relação à atual(?) versão do projeto.

Nenhuma das comissões oficialmente nomeadas ou grupos de trabalho que informalmente trabalharam no texto, felizmente, cedeu à tentação de reduzir o número de recursos como meio de tornar o processo mais célere[3].

A meu ver, é solarmente claro que esta não é a solução. Vivemos num país sem maturidade ética, característica esta que macula todos os grupos sociais em maior ou menor grau, infelizmente. Como subtrair à parte o direito de recorrer? O que se pode fazer é adiar o momento de exercício deste direito, como se fez no projeto, alterando-se o sistema da preclusão e deixando as questões decididas pelo juiz, que hoje são objeto de agravo, para serem impugnadas no recurso de apelação[4]. Assim, nesse caso, só aparentemente se teria suprimido um recurso. A situação ficou quase inalterada, pois a questão é e continuará sendo decidida no mesmo momento, ou seja, quando for decidida a apelação. Daí se vê por que não procedem muitas das críticas que neste ponto muito injustamente têm sido feitas ao projeto.

Alterações extremamente positivas foram feitas no plano dos recursos especiais e extraordinários, tornando estes recursos mais eficientes para resolver a controvérsia subjacente, desestimulando a lastimável jurisprudência dita “defensiva” dos tribunais superiores[5].

A mesma atitude deve haver no primeiro e no segundo grau: havendo possibilidade de se julgar o mérito, de recursos e de ações, deve o Tribunal, ou o juízo de primeiro grau, sempre que possível, relevar ou mandar sanar falhas que, em tese, impediriam o julgamento da controvérsia[6].

As cautelares tipificadas despareceram, tendo dado lugar a um tratamento conjunto das tutelas “antecipadas”, que podem ser cautelares ou satisfativas[7].

O projeto aceita o fato consumado que consiste em que o juiz, nos dias atuais, não decide com base na lei que, se percebe, à luz da mera leitura de seu enunciado, se aplicaria claramente ao caso concreto. Estando o sistema repleto de conceitos vagos e cláusulas gerais, a nova lei exige do magistrado fundamentação analítica sempre que a lei a aplicação da lei ao caso concreto não seja evidente[8].

Estas são, a meu ver, alterações relevantes que seriam trazidas pelo novo CPC, na versão atual do projeto, e que constam desde o início. Prova de que, em meio a estes desencontros gerados pela democracia, são fruto de unanimidade.

Para concluir, deve-se lembrar que novas lei não mudam “cultura”: a atitude psicológica dos operadores do direito e do processo. Devem, para que se operem efetivamente as mudanças esperadas, ser acompanhadas de bons cursos de direito, de obras didáticas de qualidade e, sobretudo, de bons exemplos.


[1] Todos os artigos mencionados neste ensaio estão de acordo com a Emenda Aglutinativa Substitutiva Global, que tramita na Câmara dos Deputados, de 09 de outubro de 2013.

[2] Art. 520 e ss.

[3] Art. 1.007.

[4] Art. 1.022 e §§s.

[5] Cf. arts. 1.042, §§ 2.º, 3.º, 4.º e 5.º; art. 1.043, § único; art. 1.045, art. 1.046, art. 1.047 e art. 1.048, §§ 3.º, 9.º, 10.º e 11.º

[6] Art. 282, §2.º.

[7] Livro V, arts. 295 e ss.

[8] Art. 521, §6.º.

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