Paradoxo da Corte

Rateio de honorários não é regido pelo Estatuto da Advocacia

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4 de fevereiro de 2014, 7h04

Imagino ser importante recordar que, quando o advogado celebra um contrato com seu cliente, emergem obrigações mútuas: o causídico obriga-se a prestar-lhe serviços profissionais com zelo e dedicação; o cliente obriga-se a remunerar o respectivo trabalho.

Como asseveram Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Vera Andrighi, “a prestação de serviço é um contrato bilateral, porque gera direitos e obrigações para ambas as partes, e, via de regra, oneroso, pois, geralmente, dá origem a benefícios ou vantagens para um e outro contratante” (Comentários ao novo Código Civil, vol. 9, Rio de Janeiro, Forense, 2008, pág. 222).

É exatamente por esta razão que o artigo 594 do Código Civil dispõe, de forma genérica: “Toda espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição”. Afinado com esta regra, o artigo 22 da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) prescreve que: “A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento e aos de sucumbência”.

Aduza-se que o contrato de prestação de serviços de advocacia, por força do artigo 593 do Código Civil, é regrado, em seus aspectos específicos, pela supra mencionada lei extravagante, inclusive, por certo, o prazo prescricional de cinco anos, fixado no caput do artigo 25, para o ajuizamento da ação de cobrança dos valores inadimplidos pelo cliente.

É claro que esse lapso temporal de prescrição concerne, exclusivamente, à demanda judicial que o advogado tem contra o seu cliente, que não cumpriu a obrigação de pagar a verba honorária contratada.

Todavia, recentemente, o TJ-SP, confundiu, de forma até bisonha, a avença estabelecida entre sócios de uma banca de advocacia ou entre advogados autônomos, ou, ainda, entre advogados e terceiros, atinente à repartição dos rendimentos advindos da prestação de serviços de advocacia, com o contrato de honorários propriamente dito.

E, assim, por maioria de votos, para reconhecer a prescrição quinquenal à ação derivada daquela avença, foi invocada, no acórdão, a regra do art. 25, I, da Lei 8.906/94.

Com a superveniência do julgamento dos Embargos Infringentes então opostos, a respectiva turma julgadora, até com certo deboche do ilustre advogado que efetivara sustentação oral — cumprindo, aliás, o seu digno mister —, declarou que o negócio celebrado, mesmo entre advogados, também deveria ser equiparado a contrato de honorários. Os Embargos Infringentes não foram recebidos, visto que se reputou tardia a nova qualificação da demanda, tendo sido mantido o entendimento de que transcorrera o prazo prescricional da pretensão dos demandantes.

Sem pretender ser o dono da verdade, não tenho receio em afirmar ter sido patente o error in judicando, seja pela natureza do contrato celebrado entre os litigantes, seja pela notória possibilidade de requalificação da demanda pelo tribunal, decorrente do vetusto aforismo iura novit curia. E isso tudo, sem contar que, não se tratando de celeuma sobre honorários, a competência também deixava de ser do órgão colegiado que proferiu o julgamento!

Ora, examinando-se a questão, salta aos olhos que a relação contratual então sub judice enquadrava-se, perfeitamente, na categoria geralmente denominada “negócio jurídico declarativo”, pelo qual as partes acertam, de forma convergente, os efeitos de outra relação jurídica, ou seja, o objeto do negócio jurídico é a mútua declaração. Redunda, portanto, no acerto de vontades sobre uma relação jurídica diversa, presente ou futura, pactuada entre um dos declarantes ou ambos, e terceiro.

A função do negócio jurídico declarativo, segundo preciso magistério de Pontes de Miranda, é preventiva, visando a eliminar dúvidas e discussões futuras (Tratado de direito privado, t. 3, 2ª ed., Rio de Janeiro, Borsói, 1954, pág. 131).

Assim, quando dois ou mais advogados convencionam a forma de distribuição, repasse ou rateio dos rendimentos de que são todos credores, isto é, da receita advinda do exercício profissional, o objeto da contratação não guarda mínima identidade com a prestação de serviços de advocacia. Inexiste aí qualquer relação advogado-cliente!

E, por esta simples razão, a lei de regência não pode ser o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), mas, sim, com inegável certeza, o Código Civil.

Asserem, acerca desta importante temática, Manoel Antonio de Oliveira Franco, Ricardo Miner Navarro e Gabriel Placha (Contratos de associação – Comentários ao art. 39 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, Sociedade de advogados (obra coletiva), vol. 2, Brasília, Ed. OAB, 2004, pág. 49), que a aproximação de advogados, com um interesse comum, no exercício da profissão, ressalvada a independência de cada um, é geralmente formalizada por meio de um contrato civil, regido, à evidência, pelo Código Civil e não pela legislação especial.

Desse modo, a obrigação assumida pela sociedade de advogados, de pagar aos demandantes um percentual de cada recebimento relativo aos honorários contratados com terceiros, caracteriza-se, à evidência, como prestação de dar, tendo natureza de direito pessoal.

Daí porque, diferentemente de quanto assentado no apontado acórdão, o prazo de prescrição para o exercício da correlativa ação de cobrança de créditos inadimplidos é o de 20 anos, para as prestações vencidas antes da entrada em vigor do Código Civil, em 11 de janeiro de 2003, segundo o disposto no art. 177; e de dez anos para as prestações exigíveis desde então, em consonância com a regra de transição contemplada no art. 205. Dispõe, com efeito, o art. 2.028 do Código Civil que: “Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”.

Caso o tribunal tivesse se curvado ao direito vigente, estaria, mais uma vez, atingido o sábio e conhecido alvitre de Chiovenda, no sentido de que: "O processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito tudo aquilo e exatamente aquilo que se tem direito de conseguir" (Dell’azione nascente dal contratto preliminare, Saggi di diritto processuale civile, vol. 1, Roma, Foro Italiano, 1930, pág. 110).

É uma pena!

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