Sentimentos à parte

Professores de Direito nos EUA discutem emoções pessoais na advocacia

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26 de dezembro de 2014, 8h32

Muitos professores de Direito nos Estados Unidos deixaram de ensinar a parte da legislação criminal que trata do estupro – outros consideram fazer isso – porque sempre há um grupo de alunos que não quer ouvir falar no assunto. Qualquer menção a estupro revive sofrimentos que viveram em algum ponto de suas vidas e que não conseguem superar.

A notícia, que teve grande repercussão nos meios acadêmicos, procede de um levantamento informal feito pela professora de Direito da Universidade de Harvard Jeannie Suk. Ela é uma das que têm esse problema em sala de aula e, por isso, consultou professores de Direito de todo o país. Nenhum professor que ensina a matéria desconhecia o fato.

O debate é se um advogado, promotor ou juiz – o futuro profissional de cada estudante – “tem o direito” de ser sensível e se deixar influenciar pelas próprias emoções, muitas vezes traumáticas. Ou se deve criar “calos” emocionais, que os tornem insensíveis a sofrimentos que ele mesmo pode ter experimentado e que, a qualquer ponto, será uma questão que deverá enfrentar profissionalmente, de uma forma racional, sem intervenção interna.

Para a professora da Faculdade de Direito de Harvard, a segunda hipótese é a mais correta. “Imagine um estudante de medicina que quer ser cirurgião, mas diz ao professor que não se sente bem quando vê sangue ou, pior, tem que tocar no sangue”, ela sugere. O que o professor pode fazer? “Mais do que nunca, tem sido difícil discutir violência sexual em aula e, consequentemente, a legislação aplicável que, na verdade, é muito importante para os operadores do Direito e para a sociedade”, ela escreveu em um artigo para a revista The New Yorker.

Até meados da década de 80, a legislação concernente a estupro não era ensinada nas faculdades de Direito. Não era considerada importante, nem adequada à “pedagogia racional” do curso, diz a professora. Isso era um reflexo da sociedade. Segundo a legislação da época, a vítima do estupro era obrigada a resistir até o fim à força física do agressor. Em julgamentos, a história sexual e o caráter da vítima eram atacados.

Mais tarde as coisas mudaram e o ensino da legislação sobre a violência sexual passou a ser obrigatório. Mas as coisas também mudaram dentro da sala de aula, com o tempo. Hoje, organizações estudantis femininas pedem aos professores para avisar com antecedência os alunos quando programarem discussões sobre violência sexual em suas aulas. E aconselham as alunas a não se sentirem pressionadas a assistir tais aulas se elas puderem despertar memórias traumáticas. Alguns alunos pedem aos professores para não colocarem perguntas sobre violência sexual nas provas, porque podem se sentir sem condições emocionais de fazê-las.

Alguns psicólogos se referem às discussões sobre a suposta promiscuidade da vítima, que eram mais comuns antigamente, mas que ainda ocorrem, como “o segundo estupro, mais devastador que o primeiro”. Essa noção de “segundo estupro” foi estendida para a necessidade de confrontar a vítima com o estuprador. Isso infringiria mais trauma à vítima. Na sala de aula, é muito difícil promover um debate simulado – do tipo acusação versus defesa – sem cair nessa armadilha.

Para os professores, resta um dilema: ensinar o que os alunos precisam saber sobre violência sexual ou “cometer a injúria” de não respeitar os sentimentos ou os traumas vividos por muitos alunos em algum ponto de seus passados. E também um problema a resolver: como é que fica o exercício da profissão de advogado, promotor ou juiz nessas circunstâncias?

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