Retrospectiva 2014

Polêmicas movimentaram o ano do
Direito Desportivo, mas não foi só

Autor

  • Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga

    é advogado Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa Professor CBF Academy; Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo; Presidente da Comissão de Direito Desportivo do IAB; Secretário Geral da Comissão de Direito Desportivo do Conselho Federal da OAB.

23 de dezembro de 2014, 6h23

Spacca
Há muito é repetido aquele velho chavão que diz que, no fundo, todo brasileiro é um “técnico de futebol”, pois adora dar palpites acerca de convocações e disposição tática dos jogadores em campo. O início do ano de 2014 nos mostrou uma pequena mudança no velho ditado popular, pois além de técnico, o brasileiro também passou a ser auditor do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do futebol, tendo em vista os desdobramentos do “Caso Heverton” da Portuguesa, na medida em que o julgamento pelo Tribunal Pleno ocorreu no apagar das luzes do ano de 2013.

A mídia afirmava que o “bom senso havia sido punido e o Fluminense salvo do rebaixamento”. Inúmeros torcedores, indignados, apontavam a falta de sensibilidade do STJD, pois sua decisão ajudava um time já conhecido por se “beneficiar do tapetão”.

Ocorre que, passado aquele momento inicial cuja emoção prevaleceu entre os comentaristas e palpiteiros, o ano de 2014 começou com a mudança da tabela do Campeonato Brasileiro de futebol em razão da decisão do STJD, que assegurou a autoridade da Lei Desportiva e fez cumprir o CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva).

Caso aquela decisão tivesse ocorrido no início ou no meio do campeonato, não haveria tanta repercussão, pois o que o STJD fez foi aplicar a lei e seguir a sua jurisprudência.

Além disso, em razão de equivocadas ações judiciais aforadas por torcedores, combinadas com algumas decisões que foram proferidas em total desalinho com o artigo 217 da Constituição Federal, foi necessário que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmasse a autonomia da Justiça Desportiva, princípio consagrado no dispositivo constitucional já mencionado.

Com efeito, a decisão da Justiça Desportiva somente pode ser discutida na Justiça Comum, na hipótese de vício ou mácula inerente a própria decisão, como, por exemplo, ausência de ampla defesa e devido processo legal ou irregularidade na investidura do auditor, o que não era hipótese, pois os processos judiciais discutiam o mérito da decisão.

Ao julgar o Conflito de Competência 133.244/RJ, o Ministro Sidnei Benetti, da 2ª Seção do STJ, afirmou que “o Juízo do local em que está situada a sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) é o competente para processar e julgar todas e quaisquer ações cujas controvérsias se refiram apenas à validade e à execução de decisões da Justiça Desportiva acerca de campeonato de futebol de caráter nacional, de cuja organização a CBF participe, independentemente de as ações serem ajuizadas em vários Juízos ou Juizados Especiais (situados em diversos lugares do país) por clubes, entidades, instituições, torcedores ou, até mesmo, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública”.

Racismo no futebol
O STJD também foi protagonista em outro episódio. Lamentável, registre-se, pois se refere a caso de injúria racial ocorrido em estádio de futebol.

No final do mês de agosto de 2014, o goleiro Aranha, do Santos, foi covardemente ofendido por torcedores do Grêmio que, aos gritos, o chamavam de “macaco”, a demonstrar que a ausência de punições exemplares e pedagógicas incentivam a reiteração desta prática criminosa, pois tais episódios estão se repetindo com frequência nas competições desportivas.

Paralelamente à questão desportiva, há a questão criminal envolvida, na medida em que o ofendido, no caso o arqueiro do Santos, apresentou queixa, sendo que no final do mês de outubro de 2014 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) aceitou a denúncia ofertada pelo Ministério Público contra os quatro torcedores que foram indiciados pela Polícia Civil por injúrias raciais contra o goleiro.

Além disso, o juiz que recebeu a denúncia aplicou medida cautelar de proibição de ida aos estádios aos acusados.

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê penas duras para esta prática criminosa, inclusive com a exclusão do clube do torneio (art. 243-G). A Comissão Disciplinar do STJD do futebol excluiu o Grêmio da Copa do Brasil e acabou tocando em ponto nevrálgico e que há muito precisava ser enfrentado. Todavia, mesmo entendimento não teve o Pleno do STJD, que apenas determinou a perda de pontos, porém não eliminou o clube pela atitude de seus torcedores.

Nada obstante a parcial reforma da decisão, nota-se uma tentativa, ainda que tímida, de se coibir tais prática criminosas do futebol brasileiro, cabendo destacar trecho da decisão proferida no processo em referência (Recurso 211/2014), no sentido de que “a Justiça Desportiva não pode ser complacente com injúrias discriminatórias, sendo de extrema urgência e necessidade a tentativa de cessar este tipo de comportamento, devendo-se, aqui, novamente aplicar as severas penalidades outrora aplicadas, desta vez, com repercussão ainda maior em âmbito nacional, esperando agora que as abomináveis condutas não ocorram mais.”

Esperamos que no ano de 2015, esses episódios não repitam e caso isso ocorra, que os culpados sejam punidos de forma exemplar.

Eventos acadêmicos
A Academia Nacional de Direito Desportivo, sob a presidência do ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, do Tribunal Superior do Trabalho, se consolidou no ano de 2014. No segundo semestre foi formalmente apresentada à CBF no Rio de Janeiro e à Federação Paulista de Futebol, em São Paulo. A Federação Gaúcha de Futebol também recebeu os membros da ANDD, bem como os clubes Internacional, Flamengo e Grêmio. No ano de 2015 as visitas e apresentações serão retomadas.

No dia 22 de agosto foi realizada a posse solene dos 29 membros da Academia Nacional de Direito Desportivo, na Sala de Sessões Plenária do Tribunal Superior do Trabalho. O evento contou com a participação do ministro do Esporte Aldo Rebelo, do presidente do TST, ministro Antônio José de Barros Levenhagen e do presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coelho, com a presença de inúmeros ministros do TST, além de outras autoridades. Naquele dia, teve início o I Jurisports, evento realizado pela ANDD e voltado às matérias jusdesportivas, tendo sido discutidas questões ligadas ao direito trabalhista desportivo, modernização da Lei Pelé e Lei de Responsabilidade no Esporte, fiscal e civil.

A cidade de Foz do Iguaçu sediou o II Jurisports, no mês de novembro, ocasião na qual também foram tratados temas ligados a outras modalidades, a demonstrar que o Direito Desportivo abrange todas as modalidades e não apenas o futebol. A Autoridade Pública Olímpica, presidida pelo general Fernando Azevedo e Silva se encarregou da abertura do evento e mostrou que o desafio de sediar os Jogos Olímpicos será ainda maior do que foi o de sediar uma Copa do Mundo, tendo em vista a diversidade de modalidades e atletas envolvidos nas Olimpíadas de 2016.

Ao todo, os dois Jurisports realizados pela Academia Nacional de Direito Desportivo reuniram mais de 1,8 mil inscritos, o que demonstra o alto interesse de acadêmicos e de operadores do direito pelos temas ligados ao Direito Desportivo.

O convênio firmado em 12 de novembro de 2014 entre a ANDD e a ALADDE (Asociación Latinoamericana del Derecho del Deporte), fortalece o estudo e aprofundamento das matérias ligadas ao Direito Desportivo, pois estabelece projetos conjuntos e requisitos de cooperação para a realização de eventos e grupos de estudos jusdesportivos.

Além disso, foram realizados importantes eventos em todo o território nacional, como por exemplo o Seminário Internacional de Direito Desportivo realizado em Campinas em setembro de 2014 que reuniu juristas do Brasil, Portugal, Espanha, Uruguai, Colômbia, Argentina e Venezuela, ocasião na qual foi lançado o livro Direito do Trabalho e Desporto, organizado pelo Dr. Leonardo Andreotti.

O I Simpósio Científico de Direito Desportivo foi realizado em Goiânia pela UFG, tendo sido coordenado pelo Professor Wladimyr Camargos, enquanto que o Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), em parceria com a AASP, promoveram, nos dias 6 e 7 de novembro, a 10° edição do Fórum de Direito Desportivo IBDD/AASP. O evento contou com a participação de integrantes do STJD, do TST, do Ministério Público, das torcidas organizadas, das polícias civil e militar, de presidentes e representantes de entidades ligadas ao futebol, jornalistas, advogados e juristas especialistas em Direito Desportivo.

Fair Play financeiro e débitos fiscais
A modernização do esporte brasileiro, com gestões responsáveis e transparentes, foi tema recorrente e tormentoso. A questão referente ao fair play financeiro, foi destaque de inúmeras pautas no ano de 2014. Trata-se de um verdadeiro desafio, pois é preciso conciliar o princípio da autonomia desportiva com o da transparência das entidades de administração do desporto.

Deve ser ressaltado que tal fato não diz respeito somente a CBF, pois como foi noticiado pela imprensa, a Confederação Brasileira de Vôlei também foi alvo de denúncias durante a gestão de seu ex-presidente, fato este que culminou com o fim de um duradouro patrocínio com importante banco, além de representar prejuízo para inúmeros jogadores de vôlei.

As agremiações desportivas também devem ter seus atos pautados pela transparência. As recentes notícias sugerem que a CBF fará o seu papel no intuito de implementar o fair play financeiro, pois foi divulgado que no dia 20 de dezembro de 2014 a CBF publicou o regulamento geral de competições 2015 com a inclusão do artigo 105, no qual prevê que a CBF irá editar normas visando o saneamento fiscal e financeiro dos clubes, que, caso não sejam cumpridas, poderão resultar em punições severas. O fair play financeiro será condição para a participação nas competições e a manutenção dos pontos e da classificação conquistados “em campo”.

Nota-se que tal medida é extremamente salutar e completamente viável, na medida em que a entidade de organização do desporto (CBF) tem a prerrogativa de estabelecer as regras de organização do seu campeonato e à elas aderem os clubes que quiser. Outrossim, restou demonstrado que tal medida surte efeitos positivos em países da Europa, por exemplo.

Outra questão que mereceu destaque foi a aprovação, em 18 de dezembro de 2014, do relatório aprovado da Medida Provisória 656/14, que introduz o parcelamento de débitos de clubes esportivos com a União em até 240 prestações mensais, com redução de 70% das multas isoladas, de 30% dos juros de mora e de 100% do encargo legal.

De acordo com a redação aprovada (pendente de sanção presidencial), poderão ser parcelados os débitos tributários e não tributários com a Receita Federal, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e o Banco Central vencidos até a data de publicação da futura lei.

Além disso, a entidade desportiva constituída como empresa poderá usar prejuízo fiscal apurado e base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) para quitar ou abater a dívida. O principal poderá ser abatido em até 30% do montante.

Justiça do Trabalho
Também tiveram grande destaque as decisões proferidas pela Justiça do Trabalho em relação aos temas que envolvem o Direito Desportivo. Em julgamento realizado no dia 26.02.2014, a 1ª Turma do TST deu provimento ao Recurso de Revista de atleta nos autos do RR – 393600-47.2007.5.12.0050 e condenou o seu clube empregador a pagar R$ 100 mil de indenização por danos morais e materiais a um jogador do time que sofreu lesão na cartilagem do calcanhar durante o jogo e fez com que o jogador encerrasse a sua carreira.

Neste caso o pedido de indenização foi rejeitado pelo TRT que apurou a inexistência de culpa da agremiação desportiva que custeou o tratamento médico e tomou todas as providências necessárias para tentar reverter a lesão.

Todavia, o relator do processo no Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Walmir Oliveira da Costa, aplicou a teoria da responsabilidade objetiva do empregador, pois, segundo o magistrado, é fato público e notório que a competitividade e o desgaste físico, inerentes à prática desportiva são fatores que podem desvalorizar o atleta que sofre lesões, seja durante os treinos ou nas partidas.

O ministro avaliou que é obrigação dos times profissionais de futebol zelar pela saúde física dos atletas e reparar possíveis danos que a atividade profissional pode causar. Desta obrigação, adviria a responsabilidade objetiva de reparar o dano causado, independentemente de culpa, ainda mais quando o legislador passou a obrigar os clubes a pagar apólices de seguro para os atletas.

Outra decisão comentada foi o acórdão proferido pela 6ª Turma do TST que condenou o Fluminense Football Club a pagar o direito de arena no percentual de 20% ao jogador de meio-campo Ygor Maciel Santiago. A decisão do TST reformou entendimento do TRT da 1ª Região que considerou válido acordo judicial que reduziu o percentual referente ao direito de arena de 20% para 5%. Ao examinar o caso, a relatora do RR 952-80.2010.5.01.0064, destacou que a jurisprudência do TST considera inválida a transação que reduz o percentual referente ao direito de arena e que o sindicato da categoria não poderia transacionar para diminuir o percentual destinado aos atletas referente ao direito de arena.

Em abril de 2014, o STJ decidiu uma das maiores polêmicas envolvendo o futebol brasileiro. Pelo placar de 4 a 1, a 3ª turma retirou o título de campeão brasileiro de 1987 do Flamengo e reconheceu o Sport como o único vencedor da competição, conforme decisão proferida no REsp 1.417.617. 

A decisão também afetou o time da Gávea em relação à Taça das Bolinhas. O troféu seria entregue pela CBF ao primeiro clube que conquistasse cinco vezes o Campeonato Brasileiro. No caso, o quinto título do time rubro-negro teria sido conquistado em 1992. Com a anulação, o São Paulo passou a ser o primeiro pentacampeão do campeonato.

Os temas ligados ao Direito Desportivo são apaixonantes e o aumento da procura e interesse por eventos ligados a esta área, demonstram que trata-se de um ramo do direito que em breve conquistará a sua autonomia, na medida em que possui características especiais e peculiares. Certamente, o ano de 2015 promete grandes surpresas e novidades em relação ao esporte e consequentemente ao Direito Desportivo.

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  • Brave

    é advogado,pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM-RJ; Membro do IAB; Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF; Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD); Auditor do Tribunal Pleno do STJD da CBTE; Procurador Geral do STJD da CBTARCO; Membro da Escola Superior da Advocacia da AATDF; Sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados.

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