Nexo de causalidade

A responsabilidade isolada da pessoa jurídica por crimes ambientais

Autor

  • Heloisa Estellita

    é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa na mesma instituição.

16 de dezembro de 2014, 5h20

A admissão, pelo STF, da possibilidade da responsabilidade isolada da pessoa jurídica por crimes ambientais se deu, principalmente[1], no RE 548.181, publicado em 30 de outubro de 2014.

O caso que culminou na tomada de posição do STF tem contornos interessantes. Em apertada síntese, o caso que chegou ao STF tratava de acusação contra o presidente da Petrobras, contra o superintendente responsável pela unidade subsidiária e contra a própria pessoa jurídica por prática de poluição omissiva imprópria culposa. A figura típica imputada foi a de causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora, na modalidade culposa (artigo 54, parágrafo 1º, Lei 9.605/98).

Com relação ao presidente da empresa à época, o STF determinou sua exclusão da ação penal por entender não estar provado “nexo de causalidade” entre sua omissão e o vazamento de óleo (HC 83.554). A segunda pessoa física também foi excluída, na medida que em a acusação era do mesmo teor. Por fim, como a jurisprudência unânime do STJ entende que a responsabilidade penal da PJ (doravante, apenas RPPJ) é dependente da imputação a uma pessoa física, também a Petrobras foi afastada da ação penal, que restou, assim, totalmente esvaziada. Contra esta última decisão, houve recurso ao STF, o qual, em 2013, reverteu a decisão do tribunal inferior para afirmar que a RPPJ não pressupõe também a imputação da conduta criminosa a uma pessoa física (RE 548.181, publicado em 30 de outubro de 2014).

No acórdão se lê textualmente que a RPPJ “decorre exatamente da percepção da insuficiência e da dificuldade da responsabilização penal da pessoa física para prevenir a prática de crimes, ambientais, ou de outra natureza, por parte de entidades corporativas” (p. 38), reconhecendo-se a dificuldade prática de identificar a pessoa física diretamente responsável pela prática criminosa em ambientes corporativos: “reconhece-se que a distribuição de competências no interior das modernas organizações e aparatos societários complexos impossibilita, em quantidade não desprezível de casos, a identificação e respectiva imputação de infrações penais a um sujeito concreto” (p. 51), daí que a RPPJ fundamente-se “na extrema dificuldade de obtenção da prova da autoria de ilícitos cometidos no ambiente empresarial e de conglomerados associativos, de intensa e intrincada segmentação na tomada de decisões e na conduta técnica e de opções da sociedade, muitas vezes desenvolvidas em etapas sucessivas e complementares” (p. 51; v. também p. 52-54).

Segundo o voto da relatora, não haveria dificuldades dogmáticas para superar os argumentos da falta de ação e culpabilidade por parte da PJ (p. 45-46) e cumpriria à doutrina e à jurisprudência estabelecer os critérios de imputação do injusto penal ao “ente moral” (p. 55), os quais deveriam incluir a pertinência do fato à PJ, no sentido de que o injusto decorreu de deliberações da empresa, ou que foi praticado por indivíduos ou órgãos a ela vinculados, no exercício regular de suas atribuições e em seu benefício ou interesse (p. 58)[2].

Sem entrar no mérito da conveniência e dos pressupostos da RPPJ, a imputação direta dos fatos ao presidente da empresa, na forma de atribuição de responsabilidade no vazamento por omissão imprópria culposa, foi resolvida pelo STF com a negativa do nexo de causalidade. Na verdade, mais adequado seria enfrentar a questão no âmbito da categoria da posição e deveres do garantidor, para negar uma posição de garantidor geral do presidente da empresa, no caso concreto. Com a extensão da ordem ao Superintendente da unidade subsidiária — o qual, parece, não estava na mesma posição longínqua dos fatos como a do Presidente da empresa —, esvaziou-se o processo com a negativa de possibilidade de responsabilidade exclusiva da PJ, declarada pelo STJ. Assim, o quadro que se colocou perante o STF no RE era de impunidade total: nem pessoas físicas, nem pessoa jurídica. A mim parece que essa é a verdadeira causa da admissão do processamento isolado da PJ pela Corte.

Dentre outras causas que explicam o desfecho do caso, parece-me que houve açodamento e uma certa avidez na escolha dos acusados. A Petrobras é uma empresa de grande porte, bem estruturada, com organograma interno de divisão e delegação de funções entre os diversos setores e subsidiárias. Não se trata ali, certamente, de hipótese de “irresponsabilidade organizada”[3]. Uma melhor investigação certamente seria capaz de conduzir aos garantidores que teriam praticado omissões causais e puníveis.

Talvez na esteira desse julgamento, matéria recente da ConJur relata novo caso de afastamento das pessoas físicas para condução do processo apenas contra a pessoa jurídica[4]. Segundo a matéria, o magistrado afastou a responsabilidade das pessoas físicas ao argumento de que sem conduta típica, crime não há. Nada mais correto. O que causa estranhamento, porém, não é essa parte da decisão, mas a manutenção, sem mais, do feito contra a pessoa jurídica se, como dito, “conduta materialmente típica não há”. Certo que a ausência de tipicidade para uns, não necessariamente se estende a outros acusados (especialmente no âmbito da coautoria), mas era essencial que a decisão explicasse como se mantém uma aparente tipicidade para a PJ quando negada para as pessoas físicas. A decisão, tal qual veiculada na matéria, parece dispensar a exigência de uma conduta típica para a responsabilização da pessoa jurídica.

Parto do pressuposto de que inexiste, em nosso ordenamento jurídico, um outro “sistema jurídico-penal” que não aquele formado pelo conjunto das normas constitucionais relevantes e das constantes, especialmente, na Parte Geral do Código Penal (CP), além, para o caso concreto, da norma insculpida no artigo 3º da Lei 9.605/98, que não afasta, contudo, as regras do CP (bem o contrário, conforme artigo 79). Esse sistema pressupõe a prática de uma conduta típica, ilícita e culpável para a aplicação de uma sanção penal, seja ela aplicada à pessoa física, seja ela aplicada à pessoa jurídica. Tipicidade é preenchimento das elementares objetivas e subjetivas do tipo penal, portanto, conduta, resultado, nexo de causalidade, imputação objetiva e dolo ou culpa.

A tipicidade tem a função político-criminal fundamental de atender ao mandamento constitucional da legalidade em matéria penal[5]. Ao se abrir mão dela, nega-se vigência ao disposto no artigo 5º, inciso XXXIX da CF, e se abre a possibilidade (até então impensável) de pessoas — físicas ou jurídicas — serem acusadas sem que a conduta imputada esteja definida em uma lei penal.

Mas não é “só”. Admitir pura e simplesmente a acusação contra uma pessoa jurídica abrindo-se mão dos pressupostos de um direito penal de culpabilidade (em sentido amplo) é, ao mesmo tempo, negar vigência a todos os dispositivos penais, constitucionais ou infralegais, que atrelam a responsabilidade penal a uma conduta pessoal e subjetiva. Se é possível responsabilizar a pessoa jurídica sem comprovada culpabilidade (ainda que adaptada a tal “ator”), o que impedirá de se fazer o mesmo quanto à pessoa física?

É essa a lógica nefasta que perturba na admissão pura e simples do processamento contra a pessoa jurídica sem que estabeleçam, antes, os pressupostos de sua culpabilidade. Ou seja, sem que se adaptem — se é que isto é mesmo possível[6] — a essa “pessoa” os pressupostos elementares da responsabilidade penal, assentados na prática de uma conduta típica, ilícita e culpável, no sentido de reprovação pessoal por não agir conforme o direito, quando, nas circunstâncias lhe era possível assim proceder. Dizer que tais pressupostos devem ser desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência, mas autorizar de pronto o processamento[7] é negar à sanção penal qualquer efeito preventivo-geral.

A impunidade — razão que parece ter sido suficiente para o STF — não é fundamento para a revogação de normais jurídicas, especialmente quando aquela decorre da investigação insuficiente ou da incapacidade de dedução de imputação apta contra as pessoas físicas efetivamente responsáveis penalmente pelo fato. Também não é fundamento para que se crie um “sistema penal paralelo”, sem previsão legal, no qual são aplicadas penas a pessoas — agora jurídicas, talvez no futuro físicas — que não praticaram condutas típicas, ilícitas e culpáveis.

Algo mais que causa perplexidade. Se se pretende tomar o artigo 3º da Lei 9.605/98 como a norma que estabelece os pressupostos desta responsabilidade — como indicado nesses precedentes —, olvida-se que tal dispositivo equipara os pressupostos de responsabilidade nas esferas cível, administrativa e penal. Chega-se, assim, à conclusão — creio que por muitos tão surpreendente quanto indesejada —, de que também no âmbito da responsabilidade sancionadora civil e administrativa os tais “critérios seguros e objetivos de imputabilidade” deverão ser observados. É letra da lei. Lida isoladamente, ou seja, fora dos subsistemas normativos das respectivas responsabilidades, essa conclusão é logicamente irretorquível: há uma equiparação total entre os pressupostos de responsabilidade nas três esferas[8]. Não há terceira via. Que a proposta nega o caráter sistemático do ordenamento jurídico, é algo tão evidente, quanto surpreendente.   


[1] No RE 628.582 AgR, julgado em 2011, invocado no julgamento do RE 548.181, não se debateu apropriadamente sobre a matéria, posto que o relator negou conhecimento ao recurso por entender ausente o devido prequestionamento. Assim, se é verdade que há pronunciamento do relator daquele RE sobre o assunto, não foi ele objeto de conhecimento naquela ocasião.

[2] Ministro Roberto Barroso vai mais longe e admite a possibilidade de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica seja objetiva (v. p. 59).

[3] Cf., a título ilustrativo, SILVA SÁNCHEZ, Die strafrechtliche Haftung von juristischen Personen nach spanischem Strafrecht, 2012, p. 61.

[4] http://www.conjur.com.br/2014-dez-09/diretores-empresa-nao-sao-responsaveis-crime-ambiental. Há outros, como o da Apelação Criminal n. 0010064-78.2005.404.7200/SC, decidido pelo TRF da 4a Região.

[5] ROXIN, Strafrecht: allgemeiner Teil – Band I – Grundlagen – Der Aufbau der Verbrechenslehre, 4a ed., München, 2006, p. 196.

[6] Sobre o tema, bastante recente: SCHÜNEMANN, Die aktuelle Forderung eines Verbandsstrafrechts – Ein kriminalpolitischer Zombie, ZIS, 2014, especialmente p. 2-6.

[7] Disse-o o STF e também o TRF da 4a Região, no precedente acima indicado, no qual se lê que se trata de “tópico desafiador, que deve ser cautelosamente estudado tanto pela doutrina de ponta como pelos órgãos judicantes, a fim de que se formulem critérios seguros e objetivos de imputabilidade” (p. 24). Como pode a pessoa jurídica saber, antes da prática do fato, como proceder para que não seja responsabilizada por um ato de integrante de sua administração ou empregado?  

[8] Concordo com o pensamento segundo o qual não pode haver sanção sem culpabilidade, seja ela penal ou administrativa. Evidentemente que as exigências deverão ser proporcionais à gravidade da sanção, todavia sem abrir mão de um conjunto mínimo de pressupostos. Cf., a título ilustrativo, COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental: viabilidade, efetividade, tutela por outros ramos do direito. São Paulo: Saraiva, 2010, com farta indicação bibliográfica.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da FGV Direito SP, doutora em Direito Penal pela USP e pós-doutoranda nas Faculdades de Direito da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e de Augsburg, com financiamento da Fundação Alexander von Humboldt e Capes.

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