Público e privado

Adib Jatene e os dois discursos sobre parcerias na saúde

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13 de dezembro de 2014, 8h49

Adib Jatene foi um entusiasta das parcerias com instituições privadas voltadas aos serviços assistenciais no Sistema Único de Saúde. Para assegurar modelos de contratualização adequados aos propósitos do SUS, vinha se empenhando pessoalmente, ao lado de diversas outras lideranças da saúde pública. Acredito que o ex-ministro percebia os riscos que envolvem as parcerias há alguns anos. Ainda assim, a agenda política não foi capaz de absorver com maturidade os problemas da contratualização. Prevalecem, ao meu ver, dois preocupantes discursos em torno das parcerias: a rejeição corporativista e a vulgarização oportunista.

A primeira vertente – a “rejeição corporativista” – se vincula aos interesses de numerosas corporações de profissionais da saúde pública estatal: é a visão segundo a qual parcerias configuram, quando muito, um “mal necessário”, porém transitório, até que, “um dia”, se consolide o aparato assistencial exclusivo da Administração Pública. Sustenta-se que as parcerias contrariam a higidez constitucional e legal do SUS, pois os serviços assistenciais deveriam ser ofertados unicamente por meios estatais. A segunda vertente – a “vulgarização oportunista” – convive com as parcerias, porém buscando apenas as “facilidades” de um regime jurídico mais flexível e desprezando mecanismos de planejamento, regulação e controle. O importante é inaugurar rapidamente uma unidade de atendimento, a despeito do arranjo contratual, da alocação de riscos e do sistema de avaliação do parceiro privado. São discursos igualmente irresponsáveis. Estamos a tratar de lógicas distorcidas, eleitoreiras e, ainda assim, cada vez mais presentes nos governos de estados e municípios. São discursos apenas aparentemente antagônicos: ao final, eles se complementam.

A “rejeição corporativista” tenta se esconder sob a bandeira da higidez constitucional do SUS. Porém, uma vez que a Constituição Brasileira não só admite as parcerias com particulares, como as incentiva em se tratando de entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, rejeitá-las, pura e simplesmente, só é concebível pela ótica de um corporativismo mal disfarçado – e que compõe, ao mesmo tempo, um eleitorado cativo e bem organizado. O que está em jogo, ao que tudo indica, são mais ou menos vagas de trabalho na Administração Pública. A grita não é sobre a qualidade dos serviços dos parceiros privados, mas contra a presença incômoda das entidades privadas – que, ademais, induzem comparações qualitativas.

O que é melhor? O atendimento na unidade gerenciada pela organização social de saúde (OSS) ou pela administração estatal? Curiosamente, ainda são poucos os estudos comparativos. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo avaliou, em 2011, a situação de seis hospitais estaduais – três sob administração própria do Estado e três gerenciados por meio de contratos de gestão com OSS. As conclusões reconhecem benefícios em ambos, mas pendem para o modelo da administração estatal, notadamente sob o ponto de vista da economicidade. Já o Banco Mundial, que realiza estudos periódicos sobre saúde pública – o último, de dezembro de 2013 –, avaliando globalmente o sistema estadual de saúde de SP, reconhece mais vantagens na contratualização com as OSS.

Faltam estudos e avaliações sistemáticas que ofereçam novos parâmetros e auxiliem na escolha dos modelos de gerenciamento mais adequados. Enquanto isso não ocorre, a utilização de parcerias sem planejamento e condições de supervisão passa a ser um problema em diversos estados e municípios, conforme levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União, em 2013. Para o TCU, os órgãos municipais e estaduais deveriam se focar prioritariamente nas funções de planejamento, regulação, controle e avaliação das parcerias. Ainda não o fazem, em sua maioria.

De fato, a contratualização, comumente, não parte de premissas básicas como alocação mais eficiente dos recursos públicos e valorização da qualidade técnica do parceiro. A percepção de alguns gestores públicos passa pelo que acreditam ser uma “via rápida” para a abertura de novos serviços. Mesmo que não haja uma estrutura administrativa capacitada para gerenciar e regular os contratos. O importante é “cortar a faixa”, abrir as portas do serviço e sair na foto a tempo de se reeleger.  

A “vulgarização oportunista” ignora o desafio de criar órgãos independentes e de formar quadros de servidores para as atividades de controle das parcerias. Porque sabe que isso não se alcança em quatro anos. Então, fica relegado para um futuro incerto. Ou não fica. Pois a lógica corporativista, pragmaticamente, sugere que nem será preciso regular seriamente essas parcerias: se “a estatização total” é a meta, por que razão investir seriamente na política de planejamento e administração dos contratos?

Nesse contexto se verifica uma justificável apreensão das instituições que historicamente atuam em colaboração com o SUS. Os cenários são cada vez mais inseguros. Ao mesmo tempo, já se percebe uma voracidade de organizações desconhecidas por conseguir contratos com o Poder Público pelo país afora. A ideia das parcerias dá lugar à dissimulada “venda de serviços”. O potencial de aprendizado mútuo, o desenvolvimento de novas tecnologias em regime de colaboração, a avaliação por desempenho e a bonificação por resultados tornam-se questões marginais.

Não chega a ser novidade, mas corporativismo, oportunismo e interesses eleitorais andam cada vez mais juntos na saúde pública. Temo apostar que a ausência de Adib Jatene nos debates sobre os rumos do SUS deixará um cenário ainda mais inóspito.

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