Limite Penal

Deve-se ter cuidado com a armadilha psíquica do álibi no processo penal

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

12 de dezembro de 2014, 7h01

Spacca
A situação
Imaginemos a acusação: no dia 10 de maio de 2014, na rua Azaleia, 12, nesta cidade, o acusado Paulo Roberto, mediante arrombamento, adentrou no estabelecimento comercial da vítima, pela janela basculante, subtraindo, para si, um computador, bolsa e pertencentes da vítima, os quais não foram localizados. A imputação é de furto qualificado (CP, art. 155, §4º, I).

A presunção de inocência
No Processo Penal constitucionalizado a carga probatória é da acusação. Ao acusado não cabe provar qualquer conduta descrita na narrativa da denúncia. Compete ao autor da ação penal a obrigação de produzir todas as provas necessárias à formação da convicção do julgador, no círculo hermenêutico prova/fato (cuja aceitação aqui é meramente circunstancial). Como se estabelece uma tensão entre a liberdade (presunção de inocência) e a prova suficiente para condenação, a presunção de inocência foi a escolha democrática de tratamento do acusado. Claro que é preciso superar uma leitura civilista do art. 156 do CPP (A prova da alegação incumbirá a quem a fizer), superando a teoria da relação jurídica (Büllow) para da situação processual (Goldschmidt) ou do processo como procedimento em contraditório (Fazzalari), ou seja, não se pode imaginar ainda que tenhamos vasos comunicantes entre as cargas probatórias, dado que no processo penal somente cabe a prova da conduta ao órgão ministerial, desprovida de sentido, portanto, as inversões, verdadeiras regras de bolso, no sentido de demitir a acusação de sua obrigação[1].

A questão do álibi
Entretanto, surge a discussão de qual a carga probatória da defesa na hipótese de invocar um álibi, isto é, quando o acusado, por exemplo, no caso acima, nega estar no local dos fatos no momento da imputação, dizendo que estava, por exemplo, trabalhando. Com a inserção de uma excludente física, a narrativa acusatória permanece a mesma. A defesa, por sua vez, indica novo curso narrativo para o lugar em que o acusado se encontrava, instaurando-se aparente “ônus probatório” defensivo, com os perigos daí decorrentes, especialmente a captura psíquica do julgador. Isso porque a defesa, ao invocar a exclusão física precisa comprovar a hipótese do álibi, sua carga probatória diante da nova linha probatória acrescentada. A acusação, por sua vez, mantém a carga de comprovar a conduta.

O perigo da não comprovação
Assim é que cabe à defesa comprovar que o acusado estava no local indicado (trabalhando), com as cargas daí decorrentes (prova documental, testemunhal, etc.). O perigo da captura psíquica do julgador, naquilo que já se chamou de dissonância cognitiva, conforme aponta Aury Lopes Jr:

“Em linhas introdutórias, a teoria da ‘dissonância cognitiva’ desenvolvida na psicologia social, analisa as formas de reação de um individuo frente a duas ideias, crenças ou opiniões antagônica, incompatíveis, geradoras de uma situação desconfortável, bem como a forma de inserção de elementos de ‘consonância’ (mudar uma das crenças ou as duas para torná-las compatíveis, desenvolver novas crenças ou pensamentos etc.) que reduzam a dissonância e, por consequência, a ansiedade e o estresse gerado. Pode-se afirmar que o indivíduo busca – como mecanismo de defesa do ego – encontrar um equilíbrio em seu sistema cognitivo, reduzindo o nível de contradição entre o seu conhecimento e sua opinião. É um anseio por eliminação das contradições cognitivas.” (ver aqui)

Daí que com a inserção, pela defesa, de nova linha narrativa e não comprovado o álibi, pode acontecer a captura psíquica do julgador nos seguintes moldes: 1) a defesa alegou o álibi; 2) não comprovou; 3) o acusado estava no local da denúncia.

Essa maneira de pensar apresenta um silogismo ingênuo, naquilo que Manuel Atienza denomina de paralogismo, a saber, um erro lógico, na sua grande maioria, de boa-fé. Manuel Atienza o define como sendo uma falácia formal, dado que aparentemente se usou uma regra de inferência válida, porém baseada em premissas equivocadas[2].

Assim, invertendo-se a lógica da presunção de inocência, com a não comprovação do álibi, pela lógica dos vasos comunicantes do ônus probatório decorrente da interpretação prevalente do artigo 156 do CPP, aparentemente a acusação estaria exonerada da comprovação da conduta descrita na denúncia.

Por isso Aury Lopes Jr aponta que se constitui em “gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que a defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação.”[3]

No mesmo sentido, Guarnieri[4] afirma categoricamente que "incumbe a la acusación la prueba positiva, no sólo de los hechos que constituyan el delito, sino también de la inexistencia de los que le excluyan."

Levar a sério a presunção de inocência
A conclusão democrática é a de que mesmo alegado um álibi e não comprovado, tal circunstância não é causa suficiente para conclusão de que a autoria esteja configurada, dado que o não provado foi o curso narrativo acrescentado pela defesa, o qual, por sua vez, em nada modifica a carga probatória do acusador em comprovar o alegado. O Ministério Público precisa comprovar que o acusado estava no local descrito na imputação. Pensar diferente é cair nas armadinhas da argumentação, na maioria dos casos, de boa-fé. Assim é sempre arriscada a tática defensiva de invocar um álibi, dado que a dissonância cognitiva tocaia o mapa mental de boa parte dos julgadores que se sentem desonerados da exclusiva carga acusatória. A presunção de inocência precisa ser levada a sério, embora tenhamos muitas armadilhas argumentativas a desvelar, especialmente se entendido o processo pela metáfora do jogo[5].


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED JR, Salah. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[2] ATIENZA, Manuel. Curso de argumentación jurídica. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 116: “una falacia formal tiene lugar cuando parece que se ha utilizado uma regla de inferencia válida, pero en realidad no há sido así; por ejemplo, la falacia de la afirmación del consecuente (que iría contra uma regla de la lógica deductiva) o de la generalización precipitada (contra uma regla de la indución). Em las falacias materiales, la construción de las premisas se há llevado a cabo utilizando un criterio solo aparentemente correcto.”.
[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014.
[4] GUARNIERI, Jose. Las Partes en el Proceso Penal, Trad. Constancio Bernaldo de Quirós. México, José M. Cajica, 1952. p. 305. 
[5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

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