Danos ambientais

Princípio da precaução guarda estreito vínculo com causalidade jurídica

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12 de dezembro de 2014, 6h39

O princípio da precaução guarda estreito vínculo com a causalidade jurídica em matéria de danos ambientais. Ambos possuem relevância jurídica ao contrário da causalidade natural, que pode não possuí-la, e ser relevante apenas no mundo dos fatos e das ciências naturais. O princípio da precaução, se aplicado corretamente, pode interromper o nexo de causalidade jurídica e, consequentemente, evitar o dano injusto. Todavia, se mal aplicado, de forma excessiva ou inoperante, pode permitir que o nexo causal chegue ao seu fim causando o dano injusto.

Perales entende que a distinção entre causalidade jurídica e causalidade naturalística ou científica está no fato de que, enquanto os cientistas tendem a exigir um alto grau de prova, para admitir uma determinada relação de causa e efeito, o Direito busca, em primeiro lugar, a partir de critérios que são próprios, encontrar o sujeito agente e imputar-lhe a responsabilidade correspondente. Todavia, o mesmo ressalta que “as teoria gerais sobre o nexo de causalidade possuem um mesmo modo de abordagem do conceito de causa, que se moldam a partir de dados fáticos, obtidos pela realidade” (Perales, 1997, p. 164-165).

A causalidade jurídica está diretamente relacionada com o nexo de causalidade assim como compreendido no Direito. Em relação ao nexo de causalidade, propriamente dito, Demogue refere que “é preciso que esteja certo que, sem este fato, o dano não teria acontecido”. Assim, não basta que uma pessoa tenha contravindo a certas regras; “é preciso que, sem a ocorrência desta contravenção, o dano não teria ocorrido” (in Stocco, 1999, p. 74). O nexo de causalidade, desse modo, é a indispensável relação de causa e efeito para que o dano possua relevância jurídica.

O nexo causal é o elemento que faz a ligação entre a conduta e o resultado. Em face dele é que podemos concluir quem foi o causador do dano e qual a sua extensão. Ou, ainda, indo mais além, é por meio dele que podemos atribuir responsabilidade aos agentes causadores ou potenciais causadores do dano. Na origem do nexo causal, da causalidade jurídica, contudo, não se pode deslembrar que ela decorre das leis naturais, mas vai além delas na busca da solução dos fatos relevantes para o Direito.

Importante ressaltar que, em alguns casos, existe uma incerteza científica quanto ao nexo de causalidade. Por exemplo, no caso de contaminação da água, existe o nexo de causalidade entre determinada substância, sabidamente despejada na água, e a contaminação produzida. Nesse aspecto, justifica-se a aplicação do princípio da precaução, porquanto se deve considerar, em matéria de prova, uma forte probabilidade acerca da existência do nexo de causalidade, ou um grau de probabilidade de causalidade, sem prova científica. Ou, ainda, é de se considerar a demonstração de um motivo para acreditar nos efeitos nefastos de determinada substância sobre o meio ambiente, que não remete à prova do liame de causalidade (Giraud, 1997, p. 27).

A análise da causalidade, contudo, não se confunde com a verificação da culpabilidade; para que se possa passar para a verificação da culpabilidade, em primeiro lugar, o operador do Direito deve delimitar o nexo de causalidade. A relação de causalidade deve ser demonstrada para que se possa resolver o problema da reparação do dano mediante a sua imputação a um determinado sujeito. A culpabilidade é a aplicação da lei em face da conduta e da intensidade, para a quantificação do grau de responsabilidade do sujeito.

O exemplo basilar de tal diferença está nos casos da responsabilidade objetiva (ver: Wedy, 2007) em que a responsabilização do agente não está vinculada à culpa, mas ao risco da atividade, como na responsabilidade extracontratual do Estado, na responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, na responsabilidade por danos causados ao consumidor e na responsabilidade causada por acidente nuclear, entre outras.

A causalidade jurídica nada tem a ver com a condição meramente propiciatória. As condições são fatores associados ao dano, são meras circunstâncias, mas não são a causa do dano. A causa do dano é qualificada por sua necessariedade, ou seja, sem ela o dano não teria ocorrido. A causa, assim, é juridicamente relevante, é uma condição qualificada do dano injusto. O princípio da precaução é um instrumento que visa a interromper o nexo causal e, por consequência, também acaba por estancar as condições meramente propiciatórias.

A adoção da teoria da causalidade alternativa, dentro deste cenário, é a mais acertada em virtude do princípio da reparação que norteia o direito ambiental. Isso porque, como refere Beck, em uma sociedade de risco “la causalidad supuesta siempre queda más o menos insegura y provisional” (Beck, 2006, p. 41) e o meio ambiente precisa ser em primeiro plano restaurado e, subsidiariamente, reparado pecuniariamente. A teoria da causalidade alternativa, consequentemente, é a que se molda mais satisfatoriamente aos tempos atuais marcados pelos constantes riscos de danos ao meio ambiente.

O aplicador do Direito, ao apreciar o nexo de causalidade em sede de danos causados ao meio ambiente, deverá levar em conta o risco aumentado de dano decorrente da atividade poluente como consta no artigo 10 da Convenção sobre Responsabilidade Civil dos Danos Resultantes de Atividades Perigosas para o Meio Ambiente. No mesmo sentido, consta no artigo 7º da sessão de Estrasburgo, de 1997, que devem ser adotadas “presunções de causalidade relativas às atividades perigosas ou relativas a danos acumulados ou duradouros imputáveis não a uma só entidade, mas a um setor ou um tipo de atividade”.[1]

É de se discordar da opinião de Canotilho (1994) que não admite uma solução para o caso de danos ecológicos gerados por diversas fontes — multicausalidade — baseada nas modernas teorias do nexo causal, voltadas menos à causalidade naturalística, propriamente dita, e mais voltadas para um sistema de imputação lesante/lesado. É preciso evoluir na seara do Direito, a fim de garantir uma reparação do dano ecológico e restauração do ambiente, na hipótese de falha do princípio da precaução, na forma mais ampla e expedita possível, não se esquecendo de que o meio ambiente é um direito fundamental de terceira geração necessitando de proteção para as presentes e futuras gerações.

As soluções propostas por Canotilho[2] para superar as teorias que explicam a multicausalidade, no sentido de adoção do imposto ecológico e dos fundos de reparação, não são satisfatórias. No caso da adoção do imposto ecológico, poderia significar na prática que o poluidor pagaria determinado tributo e, com isso, estaria liberado para poluir e causar danos ambientais sem qualquer sanção.[3] Isso porque os tributos são fixos e respeitam o princípio da legalidade e da anterioridade, não servindo eles para a integral reparação do dano. Não se quer dizer com isso que sejam desnecessários, mas não como instrumento de substituição da responsabilização civil por danos ambientais.

Do mesmo modo, os fundos de compensação ecológica nem sempre são suficientes para a reparação integral do dano e nem sempre podem ser direcionados para o dano diretamente causado por determinada atividade. Os fundos podem não estar destinados legalmente a certos tipos de poluição e focados em determinados segmentos de agentes poluidores. Ao se adotar a proposição de Canotilho, nos casos de situação de multicausalidade do dano ecológico, em determinadas situações, o dano injusto não poderá jamais ser reparado, ou reparado integralmente.

Não se pode desconsiderar a importância do imposto ecológico e dos fundos de compensação ecológica no Direito Ambiental, até mesmo como manifestação efetiva do princípio da precaução. Todavia são insuficientes para a reparação do dano ecológico em si. O melhor é reconhecer a evolução do Direito e aceitar, evidentemente, com critérios de prudência, teorias como a da causalidade alternativa. O Direito deve acompanhar os avanços da ciência e da tecnologia que geram ao longo dos tempos novos tipos de poluição e de fontes poluidoras que não podem escapar de um racional e adequado sistema de responsabilização civil que dependa, como conditio sine qua non, de uma adequada teoria do nexo causal.

Por isso, ganha realce na apreciação do nexo causal a figura do perito judicial e dos assistentes técnicos das partes em busca do deslinde do feito. Também, nesse caso, não se pode descurar da apreciação do depoimento de testemunhas afetadas pelos danos, pela oitiva dos movimentos sociais e das empresas poluidoras para que se possa buscar a aplicação de uma decisão justa para o caso concreto.

A simples experiência do juiz na interpretação de normas, regras e princípios jurídicos, na forma tradicionalmente conhecida, é insuficiente para a apreciação madura do nexo causal existente no dano ambiental. O estudo mais aprofundado das ciências, o embasamento em laudos técnicos gabaritados, e até mesmo a inspeção judicial, devem ser utilizados para uma verificação mais amiúde do nexo causal.

E, é importante ressaltar, quando se faz referência ao estudo mais aprofundado das ciências, pode-se entender o estudo mais aprofundado do próprio Direito Ambiental, que é uma matéria vinculada às ciências jurídicas e sociais, mas envolve um importante componente de ciências naturais e exatas, como a física, a biologia, a química e a biotecnologia. Nesse contexto, é que deve ser manejado o princípio da precaução a fim de se evitarem os riscos de danos em casos de incerteza científica.

O estudo estanque do operador do Direito sobre matérias de sua competência não mais atende às necessidades de uma sociedade de risco, em que os avanços tecnológicos exigem um magistrado inserido em seu contexto histórico e social, e não mais insulado em um cabedal de sabedoria exclusivamente jurídica. Apenas aceitando esse desafio é que o operador do Direito poderá aplicar de modo eficiente e profícuo o princípio da precaução.

Pode-se observar hoje, como afirmado por Passos de Freitas, uma mudança de atitude do magistrado “no sentido da busca de um conhecimento científico mais aprofundado que lhe permita aplicar o Direito com vistas não apenas às gerações presentes mas, em especial, às gerações futuras”.[4] Nesse sentido, Kiss (2004) refere que, “em determinadas situações, a aplicação do princípio da precaução é uma condição fundamental para proteger os direitos para as gerações futuras”.

Em suma, o princípio da precaução deve ser aplicado para interromper o nexo causal em curso, ou, o que seria mais desejável, impedir o seu início. Em caso de não aplicação do princípio da precaução, aplicação insuficiente ou excessiva, tendo como resultado o dano injusto ao meio ambiente, a teoria do nexo causal que deve ser aplicada é a da causalidade alternativa, embora não isenta de críticas, por ser mais consentânea com a sociedade de riscos em que vivemos.

A abordagem da causalidade jurídica, portanto, torna possível a reparação dos danos ao meio ambiente quando falhar a aplicação do princípio da precaução. A reparação dos danos ambientais, após a adoção da teoria da causalidade alternativa, também é uma manifestação do princípio da precaução, pois impede que os danos continuem a se proliferar.  O meio ambiente, assim, pode ser preservado com maior efetividade dos riscos de novos danos.

Referências
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[1] Ver Machado (2006, p. 346), reportando-se ao Annuaire de L’Institut de Droit International, Session de Strasbourg (vol. 67, II, Paris, Éditions A. Pedone, 1998, p. 494).

[2] Canotilho (1994): Annelise Monteiro Steigleder faz crítica ao pensamento de Canotilho acerca das modernas teorias da causalidade no Direito Ambiental: “O pleno desenvolvimento destas teorias, no direito comparado, ainda encontra resistência e deve superar obstáculos contundentes, como a opinião de Canotilho, para quem, nas hipóteses de multicausalidade, de indeterminação das fontes emissoras e indeterminação dos receptores (lesões difusas), a responsabilidade civil não apresenta solução satisfatória, eis que amparada no esquema lesante/lesado, devendo-se partir para outras respostas, tais como impostos ecológicos e os fundos de compensação ecológica” (Steigleder, 2004, p. 208).

[3] Existe exemplo disto nos Estados Unidos e África do Sul em que caçadores profissionais pagam altos valores para matarem animais selvagens em zonas de caça, e recebem a pele e a cabeça dos animais abatidos “já preparados e confeccionados” como troféus.

[4] Passos de Freitas faz referência à necessária mudança de paradigmas: “[…] a jurisprudência outrora conservadora e indiferente a tais questões. Assim era por duas razões: (a) os magistrados foram formados sob a ótica do Código Civil, que dava à propriedade um caráter individual e absoluto; (b) como cidadãos comuns não haviam sentido o problema da poluição em sua vida. Agora as coisas se passam de outra maneira. As decisões voltam-se para a época que vivemos e para as futura gerações” (Passos de Freitas, 2005, p. 168).

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    é juiz federal, mestre e doutorando em Direito pela PUC/RS. Ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil [2010-2012] e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul [2008-2010]. Professor de Direito Ambiental na Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul. Autor do livro “O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública”.

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