Atipicidade do fato

Reincidência não deve impedir aplicação da bagatela, afirma Barroso

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10 de dezembro de 2014, 19h49

O fato de o réu ser reincidente não deve, por si só, afastar a incidência do princípio da insignificância, pois causas de atipicidade da conduta não podem ser afastadas por conta de questões ligadas ao réu, e não ao fato. É o que diz o voto do ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus que discute se a reincidência ou a existência de qualificadoras no cometimento do crime podem afastar a aplicação da bagatela.

Depois do voto do ministro Barroso, que durou mais de uma hora, o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, encerro a sessão. O caso voltará a ser debatido pelo Supremo na sessão da próxima quarta-feira (17/12), com o voto do ministro Teori Zavascki.

Estão em discussão três Habeas Corpus. Um fala do furto de um par de chinelos, depois devolvidos, no valor de R$ 16. Outro, de um casal que furtou dois desodorantes íntimos, cada um custando R$ 24. E o terceiro falava do furto de uma caixa com 15 bombons.

Todos envolveram condenações a mais de um ano de prisão. O primeiro caso por se tratar de réu reincidente. Os outros dois porque a primeira instância entendeu ter havido qualificadoras. No caso dos desodorantes, como se tratou de um casal, houve “concurso de agentes”. Já no caso dos bombons, o réu escalou um muro para cometer o furto, o que foi entendido como qualificadora pelo Judiciário.

Gervásio Baptista/SCO/STF
Ao proferir seu longo voto, o ministro Barroso (foto) fez algumas considerações a respeito do sistema penal brasileiro. Contabilizou que o Supremo já tem mais de 600 decisões em que aplica o princípio da insignificância, e mais da metade delas se refere a casos de furto.

Ele também levou dados sobre o sistema carcerário. O Conselho Nacional de Justiça contabiliza em seus sistemas 567 mil presos, mas só 357 mil vagas. Um déficit de 210 mil vagas. Da população carcerária, 49% foi condenada por crimes contra o patrimônio, ao passo que 14% foi por furto simples — sem uso de violência ou qualificadoras.

O ministro ainda contou que existem 148 mil pessoas em prisão domiciliar porque não há vagas no regime aberto, ao mesmo tempo em que há 374 mil mandados de prisão nunca cumpridos.

A conclusão do ministro é que o Brasil prende demais, mas prende mal. A argumentação foi para mostrar que o excesso de rigor na aplicação da lei penal não tem levado a resultados sociais satisfatórios. Isso porque há “uma sensação difusa de impunidade”, apesar dos mais de meio milhão de presos no país, e o índice de reincidência chega a 70%, disse Barroso, citando dados de quando o ministro Cezar Peluso era presidente do Supremo e do CNJ.

O que o ministro afirma, então, é que a jurisprudência não pode ignorar a realidade brasileira. “Não estamos na Suécia, onde presídios estão sendo fechados por falta de clientela.”

Contra a corrente
O caso discutido nesta quarta no Plenário estava na 1ª Turma. Foi o ministro Barroso quem o afetou ao Pleno. Na justificativa para a afetação, o ministro afirma que, embora o Supremo tenha alguns critérios para fixar a aplicação da bagatela, “não há um enunciado claro” para as instâncias inferiores.

Ele também afirma que a jurisprudência majoritária do Supremo é pela não aplicação da insignificância para casos de réu reincidente. E na leitura do voto nesta quarta, Barroso reconhece que costumava acompanhar seus colegas, mas passou a sentir certo desconforto com isso, “muito por causa da insistência da colega ministra Rosa”, que é voto vencido na 1ª Turma nessa questão.

A ministra Rosa Weber, inclusive, é das poucas certas de que acompanharão o voto do ministro Barroso. Outra certeza é o ministro Celso de Mello, cujo voto no Habeas Corpus 84.412 é o que norteia a jurisprudência do STF nessa matéria desde que foi proferido. No HC, o ministro Celso definiu que a bagatela se aplica com base em quatro parâmetros: mínima ofensividade da conduta; nenhuma periculosidade social da ação; reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Barroso observou que, embora se trate de uma construção jurisprudencial, todos os parâmetros se referem à conduta do réu, e não ao réu em si. Mas, segundo ele, progressivamente, a jurisprudência do Supremo passou a considerar questões ligadas ao réu, como a reincidência ou os antecedentes criminais. A conclusão, como diz a ementa do voto do ministro, é que “a ausência de critérios claros quanto ao princípio da insignificância gera o risco de casuísmos, prejudica a uniformização da jurisprudência e agrava a já precária situação do sistema carcerário”.

Escolhas trágicas
O ministro Barroso sugere que, para que seja afastado o princípio da insignificância, o juiz deve encontrar motivações específicas no caso concreto. Por exemplo, o excesso de reincidências. Mas não devem ser considerados inquéritos abertos ou processos em andamento, só condenações transitadas em julgado, “sob pena de se configurar o Direito Penal do autor”.

Segundo ele, se a possibilidade de prisão e o endurecimento das penas não desencoraja o cometimento de crimes, o relaxamento de penas e o abrandamento do Direito Penal também não o incentiva.

“O fato de afastar a aplicação do Direito Penal não afasta as implicações cíveis e até administrativas. Mas obstar a aplicação da insignificância com base apenas na reincidência cria embaraço teórico para a configuração de atipicidade.”

Barroso analisa que toda a teoria jurídica que trata do princípio da insignificância leva ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. É o que permite ao juiz graduar a aplicação da pena de acordo com as circunstâncias em que o crime foi cometido, por exemplo.

Ele disse ser compreensível que se busque uma resposta estatal diante do cometimento de um crime, “mas se está diante das escolhas trágicas”. “Não há solução juridicamente simples nem moralmente barata.”

Questões práticas
Barroso deixou claro em seu voto que o fato de o Supremo autorizar que a bagatela se aplique a réus reincidentes não significa que os crimes de furto simples não devam levar à condenação. Ele só defende que, se houver pena, que ela seja proporcional ao delito cometido, e a prisão “tem mostrado resultados desastrosos”.

A sugestão é que a pena para o furto seja fixada em regime inicial aberto com prisão domiciliar, substituída por pena restritiva de direitos. A prisão domiciliar, portanto, só seria aplicada caso o réu descumprisse sua restrição de direitos.

Isso, para o ministro, é que traria à punição o caráter de ressocialização que ela deve ter. “A prisão é uma medida manifestamente desproporcional. Deve ser a última e radical alternativa.”

HC 123734
HC 123108
HC 123533

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