Relacionamento familiar

PL 117/13 confunde o que seria o espírito da guarda compartilhada

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

8 de dezembro de 2014, 6h04

A aprovação pelo Senado do Projeto de Lei 117/2013 tem sido festejada em diversos veículos de comunicação que exibem casais parentais felizes, como se finalmente pudessem vir a exercer, com o auxílio da lei, seus direitos e deveres para com os filhos. Um desejo que só pode ser por todos comungado — um ideal mais do que legítimo. E neste sentido, a aprovação do PL foi por muitos defendida, embora diversas vozes lhe fizessem ressalvas.

Mas, é preciso que se diga, que o entendimento tem sido principalmente no sentido de uma divisão do tempo dos filhos de forma igual entre as casas dos pais, correndo o risco de confundir-se com a guarda alternada, o que foi objeto de manifestações por parte do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Em termos sociais, familiares e legislativos há um longo caminho a ser percorrido para a ampliação da consciência quanto à responsabilidade dos pais e às formas de seu exercício.

As mudanças legislativas apresentam um movimento pendular, com avanços e retrocessos. Caso o PL seja sancionado, esclarecimentos estarão por vir, quer pela via legislativa, quer pela própria interpretação e jurisprudência, neste movimento pendular. E talvez, oxalá apenas um talvez, venha a ocorrer uma sobrecarga ao Poder Judiciário… Mas, assim se caminha na seara das relações familiares e na função do Judiciário em matéria de Direito de Família, com sucessivos aprimoramentos necessários, e mesmo novas leis. E quiçá, inclusive o termo “guarda”, com as imprecisões e confusões que carreia, possa vir a ser substituído, no futuro próximo, pelo instituto da “convivência familiar” como previsto no Estatuto das Famílias ou, ainda, por “relacionamento familiar”. Mas esta é toda uma outra discussão.

O que caberia questionar, no atual estágio das discussões, é se o referido PL legitima o nobre ideal do relacionamento familiar equilibrado dos pais com os filhos — e complementar entre os primeiros —, respeitando suas diferenças e, mais ainda, se lhe dá a necessária eficácia.

Em primeiro lugar, não cabe a inocência em se acreditar que a lei tenha, por si só, o condão em harmonizar as relações familiares. Estas são complexas por natureza, sobretudo em situações de litígio que envolvem os filhos, nas difíceis crises que demandam a diferenciação do casal parental do casal  conjugal, quando este assim se constituiu. Dando mostras de tal complexidade tem se dado importância a outras abordagens dos conflitos e litígios, com a possibilidade do recurso à orientação técnico-profissional, como contemplado no artigo 1.584, II-, parágrafo 3º da lei 11.698 (“Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar”). Recurso este mantido no PL 117/2013 mas que, no entanto, prioriza a questão do tempo reservado a cada um dos pais, (“O juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe”, grifos da autora).

Seja como for, dando mostras da complexidade da questão, somou-se ao rito processual o recurso a outros profissionais e equipes interdisciplinares. E ainda, apenas como exemplo de iniciativas que buscam contemplar as dificuldades quanto ao exercício da responsabilidade parental, temos a difusão das Oficinas de Pais e a crescente ênfase dada aos institutos da mediação e da conciliação. Em recente Conferência Mundial da Sociedade Internacional de Direito de Família (ISFL), realizada em agosto em Recife, clara se mostrou a tendência em se recorrer a outros profissionais nas questões relativas ao exercício da parentalidade, vez que a lei e o Judiciário em outras partes do mundo enfrentam problemas semelhantes aos que aqui se discutem.

A lei tem importante função em acompanhar as mudanças nos paradigmas sociais, abrigando contribuições trazidas por outras áreas do conhecimento. E as leis da guarda compartilhada, 11.698, e da alienação parental, 12.318, trouxeram inúmeros avanços, sobretudo em um país em que a grande maioria das guardas é unilateral, em que mais de um terço dos lares é mantido exclusivamente por mulheres, em que um sem número de filhos não tem o nome do pai na certidão de nascimento, e em que há tantos outros sintomas a demonstrar fragilidades nas instituições… fragilidade que se atualiza também nas famílias, e que demandam a proteção do Estado.

Nesta linha, é importante a sensibilização para a responsabilização conjunta dos pais e para a consciência da importância de ambos na vida dos filhos e, ainda, para o que se mostra fundamental: que as funções parentais devem ser tratadas mais como complementares do que como paralelas.

E este ponto, de relações complementares, é central. Como que às avessas, ele se representava na controversa expressão “sempre que possível”, que consta no artigo 1.584, II-, § 2º (“Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”). Expressão suprimida no PL 117/2014 (“quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor”).

A complexa questão da complementaridade das funções acabou, muitas vezes, por ensejar uma simplificação indevida, com a interpretação de que a expressão “sempre que possível” implicava na impossibilidade da guarda compartilhada quando não houvesse entendimento entre os pais; embora, cabe lembrar, houvesse a possibilidade do recurso a outros profissionais, recurso aliás bem pouco utilizado. E, na indevida linha de simplificação do que é por natureza complexo, o PL 117/2014 acabou por enfatizar a questão da divisão do tempo, talvez como se desta forma se “resolvesse” e se pacificasse a questão. Ao que muito indica, o compartilhamento corre o risco de ser transformado, assim, em  alternância.

Não se tem dúvidas de que, historicamente, a lei da guarda compartilhada, 11.698, representa uma evolução no sentido de reforçar o poder familiar que, repita-se, deveria idealmente ser exercido de forma complementar e cooperativa entre os pais. É certo que a guarda única podia contribuir para diminuir o poder familiar, para a exclusão e mesmo alienação dos pais, tanto impondo uma sobrecarga a um, enquanto que ao outro lhe ficava reservado o direito de visitas, o pagamento da pensão e o dever de fiscalização. Na falta de entendimento, o primeiro tornava-se refém da boa-vontade do segundo, e este, em alguns casos, refém daquele contemplado com a guarda — em geral a mãe.

A guarda unilateral, como única modalidade possível, reproduzia um contexto social em que predominava uma divisão das funções baseadas no sexo e identidade de gênero. Podia ser, assim, desequilibrado o exercício do poder familiar, sobretudo nos casos de litígio, mas não só. Também em termos dos novos papéis assumidos por homens e mulheres, o exercício do poder familiar podia se ver desbalanceado, e também as concernentes responsabilidades, promovendo-se desigualdades de direitos e deveres, vis-a-vis as novas possibilidades de organização das famílias e das funções parentais, e a consciência da necessidade dos filhos em contarem com o relacionamento com ambos os pais.

As mudanças quanto à compreensão da importância dos vínculos com  os dois pais, baseados no afeto, e quanto à uma maior plasticidade no exercício das funções parentais, e mesmo relativamente à igualdade entre os gêneros, refletiram-se em novos modelos familiares que reclamavam novas leis; ademais ganharam voz os abusos, exclusões e tentativas de alienação.

Produto também de um compreensível e legítimo movimento dos pais,  as leis, tanto da guarda compartilhada como da alienação parental, tentaram acompanhar as mudanças de paradigmas, sobretudo vindo em socorro do desequilíbrio no exercício do poder familiar.

Curiosamente, a definição da guarda compartilhada é a de responsabilização conjunta do pai e da mãe, como se não o fosse na guarda unilateral… Mas é certo que à lei coube enfatizá-la, sendo que a responsabilidade parental e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe, concernentes ao poder familiar, não só não deveriam se restringir, como encontravam-se indevidamente desequilibrados com o predomínio da guarda unilateral. Tal desequilíbrio expressa-se também em expressões como "direito de visita" e "dever de fiscalização", embora as interpretações considerem como sendo um direito/dever, um múnus. É unanimidade que o conceito de visita não cabe mais nas relações parentais, e que a responsabilidade transcende a fiscalização e o mero pagamento relativo à manutenção dos filhos e, em muitos casos, da mãe.

A responsabilidade dos pais, seja na guarda única como na compartilhada implica no dever/direito em educar e criar; mas a referida lei continha ainda uma divisão indevida, sendo critério para atribuição da guarda unilateral ao pai ou à mãe que demonstrasse melhores condições para propiciar saúde, segurança e educação, cabendo ao outro a supervisão dos interesses dos filhos. O equilíbrio entre direitos e deveres dos pais podia ficar, assim, um tanto restrito à guarda compartilhada. Necessária se faz a correção, que está contemplada no PL 117/2014 (Art. 1634. “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação; II- exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos o art. 1.584;”…”IV- conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V- conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;” grifos da autora).

Ainda, digna de nota, é a importância que foi dada ao afeto na Lei 11.698. Este decorrente do exercício da responsabilidade parental e dos vínculos formados com base no relacionamento familiar, ou formas de convivência. O afeto foi contemplado indiretamente como condição para a atribuição da guarda unilateral para aquele que revelasse mais aptidão para propiciar aos filhos "afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar" (artigo 1.583, § 2º, I-). Novamente o espírito da complementariedade aí está presente. No entanto, na redação do PL 117/2014, tal referencia foi suprimida…

Assim, a lei da guarda compartilhada enfatizou: a responsabilidade parental conjunta, a cooperação, a importância do relacionamento familiar com ambos os pais e familiares em suas diversas formas, a importância do afeto — e, por tudo, a complementariedade das funções. Contar com outros profissionais para o estabelecimento das responsabilidades e do tempo a ser empregado no cuidado para com os filhos, mostrou-se neste sentido um caminho salutar.

Observe-se que as necessidades de cada criança ou adolescente variam de acordo com a idade, maturidade e contexto, como também variam as possibilidades de cada genitor, sendo diversas as formas quanto ao exercício da parentalidade. Não se deve esquecer que, assim como se busca atualmente contemplar uma série de composições familiares, também são diversos os modelos parentais, e que estes podem se modificar ao longo do tempo, de acordo com interesses e necessidades diversas. Ademais há pais e mães que participam mais do cotidiano, há outros que participam menos diretamente, o que não os faz pais piores ou melhores.

Se de um lado a guarda compartilhada pode ajudar a prevenir a alienação parental, chamando à responsabilidade parental conjunta, diferenciando as questões da conjugalidade daquelas da parentalidade, por outro lado é inegável que a expressão "sempre que possível" tem dado margem a um incremento do litígio e tentativa de alienação parental para obtenção da guarda unilateral. Um efeito colateral indesejável, e mesmo um uso perverso daquela expressão.  O recurso previsto a outros profissionais seria um caminho para tentar harmonizar as diferenças e mesmo apaziguar o litígio, mas infelizmente pouco utilizado e distante da realidade da maioria dos nossos tribunais; mas estas são dificuldades que não justificariam a indevida simplificação.

O PL 117/2013 viria no sentido de tentar aprimorar os avanços obtidos com a lei anterior. 

No entanto, ao tentar corrigir a expressão "sempre que possível", e que deu margem a injustiças, muito indica que a nova lei acabou por confundir o que seria o espírito da guarda compartilhada — complementariedade das funções, separação das questões da conjugalidade desfeita com as da parentalidade, formação dos vínculos por meio do exercício da responsabilidade parental e das diversas formas de convivência — enfatizando a questão do tempo com uma redação que dá margem à interpretação deste ser metade com a mãe e metade com o pai e a alternância entre as residências. O resultado pode ser uma equiparação equivocada do que é necessariamente diferente: função materna e função paterna. É preciso que se diga que as diferenças não implicam menos direitos e deveres.

Curiosamente, o que deve ser privilegiado na lei — o superior interesse dos filhos, que se entende como indissociável daquele dos pais enquanto no exercício de suas funções — pode acabar por se desvirtuar com a simples divisão equilibrada do tempo, e com a designação genérica de custódia física dos filhos, recém substituída por tempo de convívio (artigo 1583, § 2º).

Examine-se o que se afigura como uma confusão quanto ao significado de “divisão equilibrada do tempo”. É importante que esta se dê “sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”, como consta do PL. Condições e interesses que variam em cada fase do desenvolvimento das crianças e adolescentes, como também de acordo com as possibilidades dos pais, levando-se em conta o exercício diferenciado das funções. Caso as condições e interesses não recebam o necessário exame, e a continuar a confusão divulgada na mídia e nas críticas ao PL, em que se entende que os filhos passarão igual período na casa de cada genitor, a lei pode acabar por não atender aos interesses da família transformada pela separação dos cônjuges, conviventes, ou mesmo nos casos de filhos de casais que não se constituíram.

A necessária cooperação entre os pais não se estabelece pela tentativa em homogeneizar as diferenças e dividir o tempo e moradia; pelo contrário, isto pode vir a acentuar a competição e a cisão. Em suma, o risco é o de se privilegiar fatores espaciais e temporais, objetivos, em detrimento dos fatores existenciais e afetivos, certamente mais complexos. Mas, desconsiderá-los transforma complexidade em complicação. Os vínculos devem ser, tanto quanto possível, considerados na sutileza, complexidade e especificidades das relações. 

Assim, até o presente estágio das discussões, não se pode dizer ao certo o quanto o espírito da lei pode ser desvirtuado em uma visão salomônica — divide-se a parentalidade, divide-se o filho ao meio, e o tempo de convivência — confundindo-se igualdade de direitos com a desconsideração das diferenças entre as funções parentais e as necessidades dos filhos.

A continuar o entendimento da divisão do tempo dos filhos entre as casas dos pais, deve-se temer, ainda, que o "efeito colateral" indesejável da nova lei possa refletir-se em tentativas de modificação quanto à pensão alimentícia. Talvez mais controvérsias estejam por vir.

Finalmente, há ainda dois pontos que merecem reflexão. O primeiro diz respeito ao que pode ser interpretado como um “ato falho” da lei ao punir indiretamente os filhos com o que seria a punição aos pais. Veja-se na Lei 11.698, o artigo 1584, II-, § 4º (“A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusulas de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho.”). Como um avanço, foi suprimida a frase “inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho” redação do PL 117/2014, permanecendo um tanto vaga o que seria a “redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor”. Mas ainda, fica a ideia de que o Superior Interesse da Criança e do Adolescente seria ferido com a punição à mãe ou ao pai, seja com diminuição de horas de convivência ou redução de prerrogativas; caminhos que visem à sensibilização deveriam ser privilegiados.

O outro ponto reside no que pode ser interpretado como imposição de um modelo de relacionamento familiar, em que a supervalorização da guarda compartilhada tomada no sentido de igualdade de tempo com cada pai, colocaria em difícil posição aquele que “declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor”. O desejável é que panorama atual fosse mais de conscientização do que de imposição, do respeito à diversidade, de liberdade com responsabilidade e reforço do poder familiar.

A guarda compartilhada deveria e poderia representar um caminho para a inibição da alienação parental. No entanto, em alguns casos, ela pode inclusive fomentá-la. Assim se dá nos casos em que o litígio é indevidamente ampliado para que a guarda seja unilateral — um mau uso da expressão “sempre que possível”. Mas é certo que a alienação parental tem terreno fértil, sobretudo, quando as relações não forem entendidas de forma complementar como o devem ser as funções materna e paterna, bem como consideradas suas diferenças.

Os filhos necessitam de pai, de mãe, e que estes de alguma forma cooperem e não compitam. As relações tratadas de forma paralela, podem acabar por ser uma tentativa de combater uma alienação, de um dos pais, com outra alienação — a da própria relação parental.

O desafio é: o da consideração dos interesses dos filhos — indissociados daqueles dos pais no exercício de suas funções —, e o da consideração das diferenças na igualdade de direitos e deveres.

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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