Observatório Constitucional

Considerações sobre a tradição jurídica do common law

Autor

  • Sérgio Antônio Ferreira Victor

    é advogado doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) professor de Direito da Uninove e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

6 de dezembro de 2014, 7h00

Alega-se, atualmente, haver uma aproximação entre os modelos americano e europeu de controle de constitucionalidade, ao ponto de torná-los em muitos aspectos equivalentes. Identifica-se, na tradição anglo-saxônica do common law, o caminho natural para se chegar à ideia de controle judicial de constitucionalidade das leis (o judicial review). Para adentrar essa discussão, este texto terá como propósito compreender, antes de qualquer outra coisa, a noção original do que seja o common law, para, em outras oportunidades, proceder à reflexão sobre a procedência da tese que advoga existir tal aproximação entre os modelos referidos.

  As discussões sobre o common law, em geral, começam com a afirmação, por uma das partes engajadas no embate, de que o common law é, ou era, o costume comum tal como vivenciado pelos habitantes do Reino Unido.[1]

Para alguns estudiosos do common law, sua caracterização deveria ser mais precisa, apesar de uma compreensão minimamente adequada do assunto constituir-se verdadeiro quebra-cabeças.[2] Fazia-se, então, a distinção entre costumes que poderiam ser considerados, de modo geral, como compartilhados pelo povo inglês desde tempos imemoriais – cuja origem sequer poderia ser encontrada com segurança – e aqueles outros que somente representariam hábitos de regiões particulares do Reino e, portanto, consistiriam costumes locais, não generalizáveis e, assim, não formadores do common law. A antiguidade do costume e seu enraizamento na comunidade seriam determinantes de sua razoabilidade e adequação, até porque sua aplicação e aceitação teriam passado pelo teste do tempo.[3]

Havia desacordo entre os common lawyers sobre o significado da expressão “tempos imemoriais para descrever a origem do common law. Coke afirmava que as raízes do common law eram profundas e alcançavam os tempos de dominação romana, e até mesmo pré-romana, do Reino Unido.[4] Hale, por outro lado, afirmava que o common law fora trazido pelos saxões e normandos, entre outros. Sua aceitação como direito no Reino Unido, entretanto, dependeu de seu recebimento e de sua aprovação pela população e pelas autoridades aplicadoras do direito naquele país.[5]

Postema procura demonstrar que a imagem do common law com origens antigas ou imemoriais sustenta-se em três fatores principais. O primeiro afirma que o common law caracteriza-se por sua continuidade no tempo. Apesar de sofrer diversas alterações no curso da história, são essas mudanças que permitem que ele continue como uma ordem jurídica estável e coerente, mantendo, assim, sua integridade. Isso significa que, por mais alterações que haja sofrido, o common law mantém-se o mesmo, pois é de sua natureza a continuidade em sua evolução.

O segundo fator a ser mencionado está conectado com a noção de continuidade. Quer dizer que a permanência no tempo do common law é dependente da integração de cada uma de suas partes ao todo. Ou seja, afirmar a existência imemorial do common law significa dizer que a validade e a cogência de cada nova regra de direito são dependentes não da proveniência da norma (de quem a promulgou ou criou, por exemplo), mas de sua efetiva recepção e aprovação no Reino Unido. Essa integração tornava-se evidente na medida em que novas regras eram incorporadas aos textos de doutrina e práticas que formam o common law.[6]

Ressalte-se que essa integração de costumes, legislação e decisões judiciais que veio a definir o common law não é simplesmente matéria de coerência e consistência lógica, mas antes de tudo é fruto de trabalho prático, inserido em seu contexto histórico.

A integração dos elementos costume, legislação e decisões judiciais é tema inerente à prática jurídica porque apenas por meio da efetiva utilização (pelas pessoas em geral, bem como pelos profissionais do Direito e oficiais públicos) das regras e dados que surgem no sistema é que os referidos elementos vão integrando-se ao ordenamento. A empreitada é também histórica em razão do fato de que somente pelo decurso do tempo se pode ter certeza de que determinada regra ou prática foi efetivamente integrada ao common law.  

 Por fim, essa integração dever ser realizada de modo a acomodar à natureza da nação as regras ou máximas que vão se incorporando ao common law, ou seja, ao seu temperamento, de forma que possa tornar-se uma espécie de constituição ou estrutura normativa básica enraizada na mentalidade coletiva.

Note-se que, diferentemente do entendimento de Constituição inerente ao direito moderno (à tradição do civil law), no sentido de constituição de um governo e de suas estruturas, o common law, por esse processo de integração, terminava por se legitimar como uma constituição do povo mesmo (constitution of the people).[7]

Pode-se abordar o tema a partir da distinção entre general costums e maxims. Os primeiros, esses costumes gerais, eram conhecidos pelos advogados, de maneira geral, e pelo povo espalhado pelo reino; as maxims eram regras especiais de direito conhecidas apenas nas Cortes reais (king’s courts).[8] É claro que havia uma relação entre os costumes praticados no reino e o direito ditado pelas Cortes reais. O interessante é que essa relação legitima-se em via de mão dupla, isto é, as decisões judiciais utilizam-se dos costumes gerais para legitimarem-se e, ao mesmo tempo, desenvolvem tais costumes tornando-os outra coisa.

Desse modo, a atividade dos profissionais do direito nas Cortes de Justiça modela continuamente o common law, refinando-o pelo uso de técnicas argumentativas mais apuradas.[9] Schauer informa que “any common-law rule is tentative, remaining continuously open to defeat in a particular case or subject to modification as new situations arise”.[10] Assim, o common law segue em constante modificação, criação e reformulação por meio das decisões judiciais emanadas dos diversos juízes e tribunais, a partir dos casos que lhes são submetidos.

As decisões judiciais, no entanto, fazem as devidas referências aos costumes gerais no intuito de se mostrarem com eles congruentes, atribuindo a essa conexão sua validade e sua força vinculante. Assim, o common law não se identifica fielmente aos costumes gerais do reino, mas estes constituem a sua fonte de validade enraizada na nação, não somente por uma certa forma de derivação, mas como fonte atribuída e pelo esforço de congruência a que se submetem as decisões judiciais.[11]

Significa dizer que os juízes e tribunais, no modelo do common law, possuem uma importância incomensurável na criação ou sedimentação do direito, no entanto descrevem a atividade que exercem como se estivessem a descobrir o direito comum do Reino, e não a criá-lo. Essa referência aos costumes e práticas da comunidade confere às decisões judiciais a necessária fonte de legitimidade para, de fato, construírem o Direito que regerá a nação.

Desse modo, ainda que pouco se consiga vislumbrar acerca de como os costumes gerais imemoriais do povo inglês estaria a embasar determinadas decisões dos tribunais, estes sempre buscam fundamentá-las reconduzindo-as a tais costumes, em ordem a reinseri-las, as decisões, na cultura imemorial do povo, o que tem o condão de servir como fonte de legitimação da atividade judicial criadora do Direito.

É de se notar, assim, que a ratio das decisões judiciais é extremamente importante não apenas na construção do common law, mas também em sua legitimação como ordem jurídica de toda a comunidade que o adota. Nesse sentido, os defensores clássicos do sistema afirmavam que o common law não é outra coisa senão a razão comum prevalecente em dada comunidade. A razão seria a vida do Direito, contudo não uma razão comum (common reason) ou uma razão natural a que todo e qualquer homem tem acesso, mas a razão artificial adquirida pelos operadores do direito, treinados por meio de longas horas de estudo, observação e experiência.[12]

Em aparente contradição com o que Coke dissera séculos antes, Holmes abre sua obra sobre o tema afirmando: “The life of the law has not been logic: it has been experience”.[13] Pragmaticamente, segue informando que, muito mais do que por meio de silogismos, o common law foi formado a partir das necessidades sentidas em cada época, pela moral prevalecente, pelas teorias políticas que predominavam no cenário, pelas políticas públicas empreendidas e até mesmo pelos preconceitos compartilhados entre juízes e seus concidadãos. Tudo isso determinava a forma como os homens eram governados. Desse modo, para Holmes, o Direito incorpora a história de uma nação, acompanhando seu desenvolvimento e, portanto, não se pode lidar com ele como se seus axiomas e corolários estivessem todos contidos em um livro de matemática. Para se saber o que é o Direito em dada comunidade, é preciso conhecer o que ele foi e o que ele deverá ser no futuro.[14]

Menciona-se acima que Holmes apenas aparentemente entra em contradição com Coke porque, em verdade, ambos admitem que o common law é, em grande medida, senão principalmente, experiência. A afirmação de Coke no sentido de que o common law é a razão e, sobretudo a razão artificial, que para ele é a razão jurídica apreendida por meio de estudo, observação e experiência, não destoa do referido por Holmes. O relevante é que ambos convergem na definição desse sistema jurídico como fundamentado na experiência prática, em especial na atividade dos juízes.

Assim, o estudo do common law deve considerar com especial atenção a atividade jurídica ou judicial propriamente dita. Ou melhor, deve buscar compreender como o common law lidou com as tentativas de fundamentar as práticas judiciais ante os obstáculos que lhes foram impostos, até que se lograsse a construção da prática do judicial review.

[1] POSTEMA, Gerald J. Philosophy of the common law. In: COLEMAN, Jules e SHAPIRO, Scott. The Oxford handbook of jurisprudence & philisophy of law. New York: Oxford University Press, 2004, p. 588-622, p. 590.

[2] SCHAUER, Frederick. Is the common law law? California Law Review, v. 77, 1989, p. 455-71, p. 455.

[3] POSTEMA, Gerald J. Philosophy of the common law. In: COLEMAN, Jules e SHAPIRO, Scott. The Oxford handbook of jurisprudence & philisophy of law. New York: Oxford University Press, 2004, p. 588-622, p. 590-91.

[4] COKE, Edward. The Selected writings and speeches of Sir Edward Coke. v. 1. Ed. Steve Sheppard. Indianápolis: Liberty Fund, 2003, Part Two of the Reports.

[5] HALE, Matthew. A history of the common law of England. Ed. Charles M. Gray. Chicago: University of Chicago Press, 1971, p. 43.

[6] POSTEMA, Gerald J. Philosophy of the common law. In: COLEMAN, Jules e SHAPIRO, Scott. The Oxford handbook of jurisprudence & philisophy of law. New York: Oxford University Press, 2004, p. 591.

[7] POSTEMA, Gerald J. Philosophy of the common law. In: COLEMAN, Jules e SHAPIRO, Scott. The Oxford handbook of jurisprudence & philisophy of law. New York: Oxford University Press, 2004, p. 591-592.

[8] ST. GERMAN, Christopher. Doctor and student. Ed. por T. F. T. Plucknett e J. L. Barton. London: Selden Society. 1. ed., 1974, p. 59.

[9] ST. GERMAN, Christopher. Doctor and student. Ed. por T. F. T. Plucknett e J. L. Barton. London: Selden Society. 1. ed., 1974, p. 59.

[10] SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 104-05.

[11] POSTEMA, Gerald J. Philosophy of the common law. In: COLEMAN, Jules e SHAPIRO, Scott. The Oxford handbook of jurisprudence & philisophy of law. New York: Oxford University Press, 2004, p. 592.

[12] COKE, Edward. First Institute of the Laws of England. In: Theselected writings and speeches of Sir Edward Coke. vol. 2. ed. Steve Sheppard. Indianápolis: Liberty Fund, 2003.

[13] HOLMES, JR, Oliver Wendell. The common law. Kindle Edition. Louisiana: Quid Pro Books, 2010, p. 1.

[14] HOLMES, JR, Oliver Wendell. The common law. Kindle Edition. Louisiana: Quid Pro Books, 2010, p. 1. A passagem está assim descrita no original: The felt necessities of the time, the prevalent moral and political theories, intuitions of public policy, avowed or unconscious, even the prejudices wich judges share with their fellow-men, have had a good deal more to do than syllogism in determining the rules by which men should be governed. The law embodies the story of a nation’s development many centuries, and it cannot be dealt with as if it contained only the axioms and corollaries of a book of mathematics. In order to know what it is, we must know what it has been, and what it tends to become”.

Autores

  • é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília e do Instituto Brasiliense de Direito Público, membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

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