Tortura e confissão

Operação "lava jato" lembra tempos da Idade Média

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4 de dezembro de 2014, 5h18

A denominada operação “lava jato”, desencadeada pela Polícia Federal e sob a jurisdição, repleta de fundados questionamentos, da Vara Criminal Federal de Curitiba, trouxe uma nova perspectiva constitucional, remontada em passagens sombrias da história humana — a idade média —, quando se prendia e torturava até a confissão, sob o argumento de se expiar o mal.

Importante lembrar que o ordenamento jurídico da idade média consagrava a confissão como a “rainha das provas”. Naquele tempo, a autoria do delito era auferida, especialmente, por duas formas: depoimentos de duas pessoas que presenciaram o fato tido como criminoso ou a confissão, que ocorria, via de regra, após todo tipo de tortura, inclusive o cárcere excessivo e injustificado.

Outra forma de “comprovação” de autoria do crime ocorria quando o acusado era atirado amarrado ao mar ou tanque de água. Se ele submergisse, significava que era inocente. Caso afundasse, era culpado. E na visão míope da época, estaria feita a justiça.

Indo da idade média diretamente ao século XX, ao tempo da Carta Constitucional Garantista Brasileira, promulgada em 1988, que traz seu artigo 1º como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, é difícil acreditar aquilo que se assiste hodiernamente. Pessoas são presas sob o argumento de que fizeram reiteradas viagens ao exterior ou que são financeiramente abastadas, dentre outros argumentos que não se sustentam, sob o clichê de se garantir a instrução criminal e a ordem pública.

Pasmem, buscas e apreensões foram feitas, toda prova foi colhida, não há notícia de que qualquer das pessoas presas tenha destruído provas ou exercido qualquer pressão sobre testemunhas.

Então, qual a razão das prisões? Esta é a pergunta que tanto angustia.

Coube ao procurador da República que oficia no caso conhecido como “lava jato” descortinar a dúvida: “além de se prestar a preservar as provas, o elemento autorizativo da prisão preventiva, consistente na conveniência da instrução criminal, diante da série de atentados contra o país, tem importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos”.

Diante do conteúdo do parecer, muitos daqueles que acreditam na presunção do estado de inocência, no direito ao silêncio e, sobretudo, na ampla defesa, restaram estupefatos, perplexos ou nas palavras de outros colegas, também defensores da liberdade como conteúdo dogmático, “perderam o pudor” ou ainda “tornaram letra rasa o direito ao silêncio”, ou mesmo que estar-se diante de um caso inspirado em “Guantanamo”. É exatamente isso. Trata-se de uma troca. A liberdade pela delação.

Inicialmente, queria crer que existiam razões para custódias cautelares, pois o Código de Processo Penal e a Constituição Federal exigem requisitos muito rígidos para custódia cautelar. Porém, agora, aparentemente revelou-se o real motivo: atingir o instituto da delação premiada, sob pena de se manter em cárcere indivíduos até mesmo como antecipação de pena – que eventualmente só será aplicada ao final de um processo que sequer começou. Isso não é razoável no Estado Democrático de Direito. Ou existe motivo para custódia cautelar, ou rasga-se a Constituição Federal.

Nesse contexto, inverte-se a regra constitucional. A regra passou a ser a prisão e a liberdade exceção! Como justificativa ao seu argumento, após ser questionado pela imprensa a respeito do Parecer Ministerial, a Procuradoria afirma que o direito precisa evoluir, “por isso, diante de uma regra que fala da conveniência da instrução de forma abstrata como causa para a prisão preventiva, é possível se interpretar que uma dessas conveniências seja forçar o réu a colaborar.”.

Com a devida vênia, mas isso não é evolução. Trata-se do mais evidente retrocesso à idade média, buscando-se por meio da tortura a aplicação do “moderno” instituto da delação premiada. Situações como essa não podem ser admitidas numa Democracia, sobretudo para aqueles que buscam compreender a lógica constitucional e processual penal, especialmente com o advento do artigo 319, do Código de Processo Penal, segundo o qual se aplicam medidas cautelares diversas da prisão, justamente buscando cumprir os fundamentos da Carta Magna. Diante disso tudo, a expectativa é que tal qual Berlim, existam juízes no Brasil.

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