Consultor Tributário

Nova lei pode restabelecer segurança jurídica na indústria do petróleo

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3 de dezembro de 2014, 6h30

“Quando dissera a Luiz Vergara que ainda tinha algo e muito importante a fazer à frente do governo, Getúlio estava se referindo àquilo. Rodeado por todos os assessores, sentado à mesa negra de jacarandá do gabinete de despachos, molhou a pena no tinteiro e assinou a lei n.º 2004, de 3 de outubro de 1953. Depois de 22 meses de tramitação na Câmara e no Senado, justamente quando o governo se via imerso em uma aguda crise política, estava criada, em caráter oficial, a maior empresa nacional de todos os tempos, a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras”[1].[i]

Esta passagem do terceiro volume da biografia de Getúlio Vargas da autoria de Lira Neto é reveladora da importância da criação da Petrobras, um dos principais capítulos da história do Brasil contemporâneo, escrito pelas mais importantes cabeças pensantes do país, que dividiu corações e mentes, e que proporcionou, ao fim, o nascimento de uma empresa que durante anos viria a ser motivo de grande orgulho nacional. Orgulho que pessoalmente carrego desde a infância, da memória de meu avô Mário Duque Estrada, que a ela dedicou anos de sua vida profissional. Orgulho irremediavelmente ferido pela constatação de que a companhia é hoje a principal “estrela” do noticiário criminal, vitimada pelos desvios bilionários, vergonhosamente cometidos por uma organização criminosa político-partidária-empresarial que dela se apoderou. O financiamento da existência e subsistência do atual comando do poder político nacional passou por um descarado e desmesurado assalto aos cofres da Petrobras. Dos livros de história às páginas policiais. Que triste fim Petrobras!

Não bastasse a sangria nos desvios de recursos, a Petrobras, em especial, e a indústria do petróleo, em geral, têm sido vítimas de sistemáticas autuações fiscais por parte da União Federal, tendentes a exigências de tributos sobre operações de afretamento de embarcações marítimas e prestações de serviços relacionados à prospecção e exploração de petróleo ou gás natural.

Tudo começou com as autuações fiscais em matéria de imposto de renda na fonte incidente sobre as remessas ao exterior para pagamento do afretamento de embarcações.

Com efeito, o artigo 1º, I da Lei 9.481, de 13 de agosto de 1997[2], determina que “a alíquota do imposto de renda na fonte incidente sobre os rendimentos auferidos no país, por residentes ou domiciliados no exterior, fica reduzida para zero nas seguintes hipóteses: I – receitas de fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas ou fluviais ou de aeronaves estrangeiras ou de motores de aeronaves estrangeiros, feitos por empresas, desde que tenham sido aprovados pelas autoridades competentes, bem assim os pagamentos de aluguel de containers, sobrestadia e outros relativos ao uso de serviços de instalações portuárias”.

Trata-se de norma que visa eliminar um ônus suportado pela fonte pagadora brasileira sobre remunerações que serão normalmente tributadas no país de domicílio do titular do rendimento. Aliás, caso não haja tributação no exterior, em virtude do beneficiário ser domiciliado em país de tributação favorecida, a lei interna brasileira determina a incidência do imposto à alíquota agravada de 25%.[3]

O Fisco recusou a aplicação do regime de alíquota zero aos afretamentos de plataformas de petróleo firmados pela Petrobras ao argumento de que o conceito de embarcação restringe-se às construções “destinadas ao transporte de pessoas e/ou cargas sobre e/ou sob a água”. Ou seja, sustentou um conceito restritivo de embarcação assimilando-o ao de “navio” de transporte.

Ora o artigo 2º, V da Lei 9.537/97 que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário é claro em conceituar embarcação como “qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita a inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas”.

As plataformas de petróleo estão sujeitas a registro junto à autoridade marítima (Seção I, 0201, da Norma da Autoridade Marítima 1º – NORMAM I) e no direito comparado e mesmo no direito interno são inúmeras as normas que equiparam as plataformas de qualquer natureza às embarcações (v.g. Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar – Montego Bay, Convenção Internacional sobre Segurança da Vida no Mar – SOLAS, Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, Lei 5.811/72 e Resolução Normativa 72/2006 do Ministério de Trabalho e Emprego)[4].

Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[5] sempre entendeu pela natureza de embarcação das plataformas, com apoio na classificação dada pelas autoridades marítimas, únicas constitucionalmente competentes para definir quais as estruturas que devem ser consideradas embarcações e, como tais, sujeitas a registro naval.[6]

A linha de entendimento do Fisco conduz ao absurdo de se excluir do conceito de embarcação, por exemplo, as embarcações militares, de recreio, de desporto, bem como as de apoio marítimo, já nenhuma dessas têm como propósito principal a exploração da atividade de transporte de cargas ou de pessoas.

Já se foi o tempo em que na interpretação das normas recorria-se aos elementos sistemático e teleológico. Em que contexto se insere a norma de exoneração? Qual a finalidade da redução dos ônus? É razoável interpretar-se que o benefício dirige-se apenas à indústria do transporte naval? Porque não se estenderia às embarcações utilizadas na exploração e extração de petróleo e gás natural? Parece-nos evidente ser a redução dos ônus incidentes sobre as empresas nacionais o propósito principal da disposição legal e se tais “estruturas” são embarcações para as autoridades marítimas, o que mais se pode exigir do contribuinte nacional que não a aplicação da alíquota zero? Porque haveria de desconfiar do benefício, da palavra do Estado? Não é adequado, em uma relação minimamente racional, surpreendê-lo com uma exigência desproporcional, por uma intepretação isolada, de uma autoridade fiscal, que resolve restringir o conceito de embarcação apenas em razão de sua suposta função?

Mais recentemente começaram a pulular autuações fiscais contra as empresas prestadoras de serviços de operação das embarcações de prospecção e exploração de petróleo. É que esses contratos de prestação de serviços são celebrados simultaneamente com os contratos de afretamento das embarcações. Uma empresa nacional (pro exemplo a Petrobras) contrata o afretamento da embarcação a uma empresa residente no exterior e, simultaneamente, contrata a prestação de serviços de operação dessa mesma embarcação a uma empresa brasileira que, na maioria das vezes, pertence ao mesmo grupo econômico da empresa estrangeira afretadora. São os chamados split contracts no jargão do mercado.

As autuações fiscais têm questionado a alocação do preço global dos dois contratos, considerando haver um “superfaturamento” do afretamento (potencialmente beneficiado pela alíquota zero) e um “subfaturamento” do preço da prestação dos serviços (tributado localmente pelo IRPJ, CSLL, PIS/COFINS). Como consequência da recusa de reconhecer a validade da bipartição, autuam-se as prestadoras de serviços, seja por omissão de receitas, considerando como tal eventuais reembolsos de despesas feitas pelas afretadoras estrangeiras e até mesmo aportes de capital; seja pela glosa de dedução de custos e despesas considerados desnecessários para a empresa nacional.

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) já repeliu a pretensão do Fisco, assentando que “o lançamento fundado em suposta omissão de receita requer a prova da existência de tais receitas e o não oferecimento destas à tributação. O fato de a lei brasileira prever a tributação de forma diferenciada às empresas estrangeiras, proprietárias de embarcação objeto de contrato de afretamento com a Petrobras, ou a circunstância de a Petrobras limitar o valor pago às empresas de perfuração de poços, subsidiárias das proprietárias das embarcações não pode ser utilizado como elemento subjetivo para supor conluio entre as empresas contratantes, em especial quando a contratação se dá por força de licitação pública”. (Acórdão 1402-001.439)[7]

Mas já houve casos em que autuações foram mantidas, pelo voto de qualidade, argumentando-se falta de propósito negocial para a existência de contratos distintos, sustentando-se que “a atuação de empresas do mesmo grupo econômico na prestação de serviços a terceiros de forma conjugada e informal, com confusão de bens materiais e humanos, descaracteriza a veracidade do conteúdo do contrato, impondo a tributação dos valores indevidamente classificados como reembolso de despesas” (Acórdão 1202-001.067).

Sob alegação de que “a bipartição dos serviços de produção e prospecção marítima de petróleo em contratos de aluguel de unidades de operação (navios-sonda, plataformas semissubmersíveis, navios de apoio à estimulação de poços e unidades flutuantes de produção, armazenamento e transferência) e da prestação de serviços propriamente dita é artificial”, o Fisco (pasme-se) exigiu da Petrobras o pagamento de CIDE-remessas de 10% sobre todos os valores remetidos a título de afretamento. Tal autuação foi mantida, uma vez mais pelo voto de qualidade, ao argumento de que “o fornecimento dos equipamentos é parte integrante e indissociável aos serviços contratados, razão pela qual os pagamentos efetuados ao amparo dos contratos ditos de “afretamento” sujeitam-se à incidência da Contribuição” (Acórdão 3403-002.702).

No entanto, em momento algum, as autuações fiscais investigaram e/ou propuseram um equilíbrio razoável daquilo que se poderia considerar uma bipartição válida dos preços, já que é inegável a existência formal e execução real de dois contratos de naturezas distintas, celebrados com partes com personalidades jurídicas distintas, e é absolutamente indiscutível a maior relevância quantitativa do preço do afretamento.

Esses casos são uma prova de como atualmente a relação entre contribuinte e Estado se encontra maltratada, esgarçada. Nos últimos anos, houve um incremento sem paralelo das autuações fiscais baseadas em conceitos como simulação, fraude à lei, falta de propósito negocial, abuso de direito, inadequação de formas, carência de substância, entre outros. 

Os contribuintes estão aterrorizados e anestesiados diante de tamanha verborragia, de tantas desconsiderações, reconsiderações, requalificações, seja lá o que for. Nada escapa, qualquer fato é capturado pela norma em nome de um único intuito — aumentar a arrecadação.

Autoridades cada vez mais autoritárias imiscuem-se nos negócios privados, provocam insegurança jurídica e afugentam os capitais, naturalmente avessos a riscos dessa natureza.

Mas há uma excelente oportunidade para restabelecer a segurança jurídica na indústria do petróleo e ela decorre de uma providência legislativa. Referimo-nos ao artigo 106 da Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014, que inseriu novos parágrafos[8] ao artigo 1º da Lei 9.481/97 já acima transcrito, dos quais reproduzimos abaixo o parágrafo 2º:

“§ 2o  No caso do inciso I do caput deste artigo, quando ocorrer execução simultânea do contrato de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e do contrato de prestação de serviço, relacionados à prospecção e exploração de petróleo ou gás natural, celebrados com pessoas jurídicas vinculadas entre si, do valor total dos contratos a parcela relativa ao afretamento ou aluguel não poderá ser superior a:

I – 85% (oitenta e cinco por cento), no caso de embarcações com sistemas flutuantes de produção e/ou armazenamento e descarga (Floating Production Systems – FPS);

II – 80% (oitenta por cento), no caso de embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação, manutenção de poços (navios-sonda); e

III – 65% (sessenta e cinco por cento), nos demais tipos de embarcações.”

A nova disciplina legislativa parece equacionar os problemas enfrentados pelas empresas com atuação na indústria da prospecção e exploração de petróleo e gás natural, uma vez que, inequivocamente, passam a se subsumir expressamente no conceito de “embarcação” para fins da alíquota zero do imposto de renda na fonte as embarcações destinadas à prospecção e exploração de petróleo e gás natural.

Também ficam arbitrados ex lege os percentuais adequados aos split contracts consoante a natureza da embarcação afretada, legitimando as proporções contratualmente estabelecidas entre as partes contraentes quando houver vinculação entre as pessoas jurídicas afretadora estrangeira e prestadora de serviços nacional.

Poderia a administração fiscal complementar a norma, através de um ato declaratório normativo, reconhecendo a aplicação da solução legislativa em questão aos contratos celebrados pelas empresas do setor, mesmo que anteriormente à sua vigência. Com isso ficaria restabelecida a segurança jurídica para os contribuintes, seriam canceladas as autuações com esse fundamento, evitando-se mais demandas no Poder Judiciário, sempre onerosas para as partes, além de se estancar a sangria desmesurada de recursos do patrimônio da Petrobras em prejuízo da empresa e de seus acionistas.

Seria um excelente presente de fim de ano para o país, para os contribuintes e para sua maior empresa, tão maltratados nos últimos anos.

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Com essa coluna despeço-me de 2014. Agradeço o carinho dos leitores que nos tem acompanhado e “curtido” esse espaço de reflexões tributárias. Desejo a todos os amigos da coluna Consultor Tributário um Feliz Natal e um Ano Novo pleno de realizações.

Até 2015!


[1] Getúlio, 1945-1954. Da volta pela consagração popular ao suicídio, Companhia das Letras, 2014, p. 264.

[2] Com a redação dada pela Lei n.º 13.043/2014.

[3] Cfr. Art. 8º da Lei n.º 9.779/99 e Instrução Normativa n.º 1.455, de 6/3/2014. A alíquota geral do imposto é de 15%.

[4] Citamos apenas alguns exemplos indicados no excelente estudo de Camila M. V. Cardoso, A natureza jurídica das plataformas marítimas, in Revista Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário – Instituto de Estudos Marítimos 8 – maio/jun. 2012.

[5] Cfr. RE n.º 76.133, de 1974. Idêntica orientação foi adotada mais recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça quando reconheceu a aplicação de normas de isenção em matéria de imposto de importação e de IPI (cfr. RESP n.º 1.341.077/RJ).

[6] Sobre a competência da Marinha cfr. art. 142 da CF/88 e art. 17 da Lei Complementar n.º 97/1999.

[7][7] Cfr. Ainda no mesmo sentido Acórdão 1402-001.595.

[8] A íntegra dos parágrafos é a seguinte: “§ 2o  No caso do inciso I do caput deste artigo, quando ocorrer execução simultânea do contrato de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e do contrato de prestação de serviço, relacionados à prospecção e exploração de petróleo ou gás natural, celebrados com pessoas jurídicas vinculadas entre si, do valor total dos contratos a parcela relativa ao afretamento ou aluguel não poderá ser superior a:

I – 85% (oitenta e cinco por cento), no caso de embarcações com sistemas flutuantes de produção e/ou armazenamento e descarga (Floating Production Systems – FPS);

II – 80% (oitenta por cento), no caso de embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação, manutenção de poços (navios-sonda); e

III – 65% (sessenta e cinco por cento), nos demais tipos de embarcações.

§ 3o  Para cálculo dos percentuais previstos no § 2o, o contrato celebrado em moeda estrangeira deverá ser convertido para Real à taxa de câmbio da moeda do país de origem, fixada para venda pelo Banco Central do Brasil, correspondente à data da apresentação da proposta pelo fornecedor, que é parte integrante do contrato.

§ 4o  Em caso de repactuação ou reajuste dos valores de quaisquer dos contratos, as novas condições deverão ser consideradas para fins de verificação do enquadramento do contrato de afretamento nos limites previstos no § 2o.

§ 5o  Para fins de verificação do enquadramento das remessas de afretamento nos limites previstos no § 2o, deverá ser desconsiderado o efeito da variação cambial.

§ 6o  A parcela do contrato de afretamento que exceder os limites estabelecidos no § 2o sujeita-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 15% (quinze por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento), quando a remessa for destinada a país ou dependência com tributação favorecida, ou quando o arrendante ou locador for beneficiário de regime fiscal privilegiado, nos termos dos arts. 24 e 24-A da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996.

§ 7o  Para efeitos do disposto no § 2o, será considerada vinculada a pessoa jurídica proprietária da embarcação marítima sediada no exterior e a pessoa jurídica prestadora do serviço quando forem sócias, direta ou indiretamente, em sociedade proprietária dos ativos arrendados ou locados.

§ 8o  O Ministro da Fazenda poderá elevar ou reduzir em até 10 (dez) pontos percentuais os limites de que trata o § 2o.” (NR)

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