Era uma vez

Consumidor deve ser avisado se história contada em propaganda for fictícia

Autor

  • Felipe Barreto Veiga

    é sócio do BVA Advogados e líder das práticas de M&A venture capital e private equity do escritório representando companhias startups family offices bancos e fundos de investimento de mais de 60 países.

1 de dezembro de 2014, 10h53

A arte de contar histórias é algo tão humano como a própria humanidade. Elemento fundamental de formação das culturas ao longo dos anos, a contação de histórias (ou, do inglês, storytelling) remonta aos primórdios da humanidade, quando o homem de cro-magnon iniciou a prática da arte rupestre, contando em desenhos — e de maneira bastante rudimentar — os fatos vivenciados no cotidiano pré-histórico.

Ultrapassando a pré-história, o storytelling ganhou civilizações antigas (tais como os astecas, egípcios, gregos e romanos) e até mesmo instituições religiosas, como forma de se promover o entretenimento e a educação, bem como de se preservar a história e a cultura dos povos e nações. E, como não poderia deixar de ser, a prática do storytelling alcançou a civilização moderna com a mesma força que tinha no passado.

Contar histórias, porém, nem sempre significa contar a verdade: muitas histórias que conhecemos são baseadas em mitos, lendas, suposições, boatos e inspirações com uma ou mais pitadas de fantasia e ficção — como é o bom velhinho Papai Noel, um personagem inspirado em São Nicolau.

Assim como o storytelling, este tipo de história também alcançou a civilização moderna, ponderando-se, entretanto, que está cada vez mais difícil incutir fantasias no imaginário humano, devido à facilidade de se “desmascarar” tais histórias nos tempos atuais, através da busca pela informação na internet. Mas, ainda assim, existem pessoas e sobretudo empresas cada vez mais empenhadas neste tipo de prática, porém com um intuito bem diferente de nossos ancestrais: marketing.

O storytelling como ferramenta de marketing tem sido cada vez mais explorado ao redor do globo e, no Brasil, um dos principais mercados produtores e consumidores de publicidade, esta prática tem crescido consideravelmente.

Isto porque, como se depreende da análise da doutrina de marketing, o
storytelling é uma forma de se fidelizar o consumidor, através da contação de uma história que estabeleça uma conexão de identificação entre uma empresa, uma marca, um produto ou um serviço e seu consumidor, reforçando o branding.

Essa história, se contada de maneira adequada, cria um elo emocional com o consumidor que potencializa o engajamento e a valoração de elementos básicos de seu convencimento, como melhor preço, melhor atendimento, etc. Ou seja, contar a história certa para o seu público-alvo pode aumentar as vendas, trazer novos consumidores e fidelizar os já existentes — tudo o que qualquer empresa deseja.

Ocorre que, sendo uma ferramenta de marketing, invariavelmente o storytelling de empresas é considerado um artificio publicitário com finalidade comercial (lucro) direta ou indireta, estando sujeito à auto-regulamentação do setor e às leis de proteção ao consumidor.

Com o crescente interesse no storytelling pelas agências de publicidade e empresas, muitas têm se dedicado à esta prática de maneira arriscada, valendo-se de histórias fantasiosas para construir conceitos e se aproximar do consumidor, como noticiado nesta semana sobre as empresas Diletto (do setor de sorvetes) e Do Bem (do setor de bebidas não-alcoólicas), que estão sendo representadas pelo Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária (Conar).

Para quem conhece tais empresas, é evidente que o marketing deles é dos mais refinados: enquanto a Diletto produz picolés finos e ostenta freezers (e até lojas próprias) com design clássico e elegante, a Do Bem se destaca na prateleira do supermercado com seus sucos e chás de caixinha com aspecto de natural.

O storytelling delas, por sua vez, não foge à regra e, enquanto a Diletto conta que suas receitas são baseadas nas elaboradas pelo imigrante italiano ficcionalmente denominado como Nonno Vittorio (um alterego do avô do fundador da marca), a Do Bem conta que as laranjas de seu suco são oriundas da fazenda do senhor Francesco, um dos fornecedores da empresa.

Sem adentrar na veracidade ou não de tais histórias, apesar de a própria Diletto ter desmentido a sua em recente nota divulgada pela empresa e de haverem denúncias de consumidores no sentido que a Do Bem adquire suas laranjas de gigantes como a Brasil Citrus, vale o comentário para as representações que estão sendo conduzidas pelo Conar para apurar denúncias feitas pelos consumidores, com base nos artigos 1º e 27 do Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária — ao contrário do que muitos veículos de mídia noticiaram, as empresas não estão sendo investigadas e sim tendo as denúncias contra elas apuradas.

Neste sentido, é importante mencionar que o artigo 1º do Código determina que “todo anúncio deve ser respeitador e conformar-se às leis do país; deve, ainda, ser honesto e verdadeiro” e que o artigo 27 dispõe que o anúncio deverá conter uma apresentação verdadeira e passível de comprovação, inclusive quanto à descrição e alegações eventualmente feitas sobre o que é anunciado, sendo que ambos vão de encontro com os artigos 36 e 37 do Código de Defesa do Consumidor, que versa sobre a publicidade.

Portanto, caso o storytelling seja fictício, é importante que sejam incorporados às peças publicitárias pequenos disclaimers informando que se trata de uma história de ficção ou que, no mínimo, elementos de ficção foram incorporados para se incrementar a história. Tudo isso com o intuito de se prevenir responsabilidades e evitar procedimentos perante o Conar e até mesmo na justiça comum, por meio de ações privadas ou civis públicas baseadas em violações aos dispositivos supramencionados do CDC, que podem ser demasiadamente custosos.

E ainda que o storytelling seja verdadeiro, recomenda-se que a empresa mantenha em seus arquivos os documentos de suporte à história contada e aos dados nela explorados, inclusive para fins de pronta resposta aos consumidores em seus canais de comunicação e para os veículos de imprensa, tendo em vista que o maior dano que pode ocorrer, sem dúvidas, é quanto à imagem da empresa ou da marca. E aí, era uma vez… uma boa estratégia de marketing.

Nas representações em tela, a decisão a ser proferida poderá determinar a advertência dos envolvidos na elaboração e veiculação da peça publicitária, a alteração do anúncio ou determinação da sustação de sua veiculação ou, ainda, a divulgação pública da reprovação do Conar quanto aos envolvidos. Lembrando que as decisões do Conar são colegiadas e não possuem efeito impositivo, é importante ressaltar que elas são normalmente cumpridas pelos punidos.

Autores

  • Brave

    é advogado especializado em propriedade intelectual e direito do marketing, formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com pós-graduação pela ESA/OAB. Foi professor assistente no curso de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e é co-autor do livro Brazilian Legal Trends in Technology and Intellectual Property.

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