Prisões superlotadas

É preciso garantir que mutirões carcerários não se tornem rotina

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  • Evandro Cangussu Melo

    é juiz de Direito da 2ª Vara Criminal e da Execução Penal de Sete Lagoas (MG). Membro do grupo de trabalho da Amagis que estuda o anteprojeto da nova LEP.

31 de agosto de 2014, 7h21

O anteprojeto da nova Lei de Execução Penal (LEP) em curso no Senado (PLS 513) propõe, no artigo 117-A, a fórmula do mutirão, sempre que os estabelecimentos penais alcancem o limite de vagas. As unidades prisionais no país, na sua esmagadora maioria, já estão superlotadas há muito tempo. Trata-se de fato notório. Vislumbra-se de pronto que mutirões serão uma constante doravante. Em regra, mutirão é uma boa solução gerencial, para dar vazão ao acúmulo transitório de atividades. Trata-se da velha fórmula da concentração de esforços de pessoas, tempo, meios e modos para minorar alguma situação não desejada. A intenção é das mais louváveis. Contudo, por si só, tal fórmula não resolverá o problema da superlotação prisional no país. No plano estrutural é preciso garantir que tais mutirões não se tornem rotina.

Essa estratégia, positivada na nova LEP, será um instrumento de gestão efetivo se, e somente se, acompanhada de outras, como é o caso da vedação do contingenciamento de recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), da criação de um fundo estadual penitenciário, da imposição do processamento eletrônico das guias de execução dos presos, da introdução do processo de execução penal integralmente eletrônico, da plena alocação de recursos humanos e materiais a contento em cada mutirão e da efetiva manutenção da norma que veda o recebimento de presos além da capacidade do estabelecimento, dentre várias outras medidas. Algumas constantes do anteprojeto da nova LEP, outras ainda não.

O legislador precisa estar atento a tais fatos. É que tal qual um castelo de cartas, várias das novidades semeadas pela comissão estão interligadas entre si e devem ser vistas no contexto geral, de forma que os objetivos traçados sejam alcançados, sob pena de tornarem-se medidas inócuas.

Em contribuição à ideia do mutirão, vejo ser necessário acrescentar outras medidas. O poder público não pode ficar continuamente trabalhando sob a forma de mutirão. Mutirão implica em retirar um recurso humano e material de um lado para atender outro. Tal qual o estabelecimento de prioridades, se o mutirão for permanente, ele perde força e eficácia. E é isso que ocorrerá se acontecer continuamente.

É preciso impor ao Executivo, além da vedação do contingenciamento de recursos, uma espada de Dâmocles sob sua cabeça.  Exemplifico e sugiro, se ocorrerem mutirões sucessivos por três anos consecutivos ou cinco ininterruptos, a unidade prisional, sob mutirão, deveria entrar em lista obrigatória de prioridade para ampliação do sistema prisional do respectivo Estado, sob pena de interdição legal automática e esvaziamento completo em até um ano. Tempo suficiente para medidas emergenciais necessárias.

Outros acréscimos poderiam ser sugeridos, tais como a imposição aos futuros gestores dos mutirões de se montar equipe de servidores e magistrados compatíveis com o trabalho que se pretende realizar e, mesmo assim, por tempo curto e determinado.

Tais medidas conjugadas com a norma dos mutirões poderão sim surtir o efeito desejado, uma vez que o Executivo teria como monitorar o nível de lotação de cada estabelecimento e, evidentemente, sob a sombra da norma, diligenciaria a tempo e modo, para que tal fato não ocorresse, sob pena de acarretar a superlotação em outra unidade, fato que geraria efeito cascata imprevisível.

Apenas a determinação isolada para a realização de mutirões, quando a lotação de presos alcançar a capacidade do estabelecimento, não surtirá o efeito que se pretende e tornará o que deveria ser exceção em regra, o que, convenhamos, não é desejável a quem quer que seja. A manutenção do dispositivo em comento, embora carregada de um valor louvável no campo das boas intenções, não será capaz de resolver o problema da superlotação, uma vez que este é estrutural.

Não é demais lembrar que a estrutura das varas de execução é, e será sempre, fixa e limitada. A sequência ininterrupta de mutirões colocará quase todas as unidades prisionais do país por vários anos sob tal regime. Haja recursos para tantos mutirões. O que deveria ser extraordinário transformar-se-á em ordinário. Não há estrutura e esforços capazes de fazer frente a eternos mutirões. Que digam isso os juízes e servidores da execução penal do país, que já trabalham permanentemente esgotados.

Na realidade, é necessário impor a quem tem o dever legal de custodiar os presos, o Executivo, mecanismos outros que evitem a superlotação e não o contrário. A determinação de mutirões de forma automática isolada gerará a eternização da superlotação em detrimento do bom planejamento de construção e operação do sistema e da boa gestão de vagas.

Não podemos mais conviver com a expectativa de que haverá sempre superlotação de presos nas unidades prisionais. Isso tem que ser excepcional. Se tal dispositivo permanecer divorciado de outros estruturais e impositivos ao estado-administração, será o atestado completo da incompetência pública em resolver de fato o problema. Portanto, o legislador na nova LEP deve implementar sim os mutirões, mas é preciso fundamentalmente plantar a construção fática, financeira, orçamentária e gerencial de uma estrutura adequada concomitante  a tal proposição. É preciso que a regra que se vislumbra seja de fato a exceção e não o contrário. Essas reflexões integram conjunto de sugestões feitas pela Comissão de Estudos da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis) ao PL 513/2013, que tramita no Senado Federal, para aperfeiçoar a Lei de Execução Penal.

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