Diário de Classe

Fiscalização da constitucionalidade não é vedada ao Conselho Nacional de Justiça

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30 de agosto de 2014, 8h00

Na última quarta-feira (27/8), Alexandre de Moraes publicou, na coluna Justiça Comentada desta ConJur, um artigo em que defende a tese de que é vedado ao Conselho Nacional de Justiça o exercício do controle difuso de constitucionalidade. Sustenta, em síntese, que o CNJ seria um órgão para o qual a Constituição reservou competências ligadas ao controle administrativo e financeiro do poder judiciário “tendo a EC 45/04 estabelecido instrumentos de efetivo controle centralizado da legalidade sobre a atuação dos diversos juízos e tribunais, sem prejuízo, obviamente, dos controles administrativos de cada tribunal e do controle jurisdicional.”

A objeção formulada por Moraes centra-se no argumento de que, em sendo o CNJ órgão administrativo e não jurisdicional, não lhe caberia o exercício de funções que são privativas dos órgãos do poder judiciário com função tipicamente jurisdicional. Para fundamentar sua posição, vale-se o autor de elementos retirados principalmente de uma peculiar narrativa oriunda da experiência Estadunidense no que tange à formação e justificação da judicial review e, correlatamente, do entendimento formulado por Marshall em Marbury v. Madison no que tange às competências constitucionais dos órgãos constituídos. Nos termos formulados pelo articulista: “as competências originárias dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário exigem previsão expressa e taxativa, conforme princípio tradicional nascido com o próprio constitucionalismo norte americano em 1787”.

Assim, como órgão administrativo que é, o CNJ encontra-se submetido à legalidade, não possuindo o poder (ou o dever?) de afastá-la para homenagear a constitucionalidade.

De se consignar, todavia, que a tese defendida por Moraes não acompanha os debates e as contribuições desenvolvidas pelo constitucionalismo nos últimos anos. Principalmente no que tange à vinculação dos poderes públicos à Constituição e à abertura dos intérpretes — oficiais — do texto constitucional.

Com efeito, há já algum tempo — pelo menos desde o final da II Guerra Mundial — o constitucionalismo europeu tem produzido um amplo debate sobre o grau de vinculação exercido pela Constituição e, consequentemente, sobre o espaço ocupado pela chamada fiscalização não jurisdicional da constitucionalidade das leis. Nesse sentido, assevera Rui Medeiros que, em nosso contexto atual e, no caso português, com expressa previsão do texto constitucional, há um princípio — e, sim, isso é um princípio! — de vinculação de todos os poderes públicos à Constituição.[1] Tal vinculação, a toda evidência, atinge também o poder administrativo. Assim sendo, a vinculação à constitucionalidade, e sua consequente fiscalização, não pode ficar restrita apenas aos poderes legislativos e judiciário, estando estendida, também, à administração.

Dito de outro modo, no contexto daquilo que podemos chamar de Constitucionalismo Contemporâneo[2], experimenta-se uma modificação de paradigma, de modo que saltamos de uma vinculação à legalidade em direção a uma vinculação à constitucionalidade. Ou ainda, como quer Elías Díaz, no contexto desse novo paradigma, ao invés de falarmos simplesmente em legalidade devemos falar em uma “legalidade constitucional”.[3]

Desse modo, colocar a competência de fiscalização da constitucionalidade nas mãos de um único poder público caracteriza, de plano, uma ofensa ao princípio da vinculação de todos os poderes à Constituição. Ademais, como bem recorda Rui Medeiros, a decantada ideia de “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” impede que o direito constitucional dê vazão a uma “aristocracia do saber”, em particular do saber jurídico-constitucional. Ou seja, falando-se em vinculação de todos os poderes à Constituição e de sociedade aberta de seus intérpretes, não podemos reduzir a função de fiscalização da constitucionalidade apenas às suas modalidades jurisdicionais, reconhecendo somente aos órgãos do judiciário com função estritamente jurisdicionais a posição de arautos da Constituição.

Portanto, a partir desta curta exposição, já podemos perceber que a defesa de uma pretensa proibição, imposta ao CNJ, no que tange à fiscalização difusa da constitucionalidade, não encontra sustentação na tese da natureza estritamente administrativa de suas atribuições. Ora, em nosso contexto atual, há ampla doutrina defendendo, inclusive em países de jurisdição constitucional especializada (como na Itália e Alemanha), que a vinculação de todos os poderes à Constituição investe também a administração na função de fiscalizar a constitucionalidade. Assim, se existe o poder de fiscalização (pensamos que o mais correto seria dizer o dever!) por parte da administração pública em sentido amplo, por que seria ele defeso ao CNJ?

Voltaremos a este ponto mais adiante.

Antes, porém, vejamos outro argumento indefensável esgrimido por Moraes em seu texto. Trata-se de sua interpretação a respeito das competências dos órgãos de cúpula do judiciário que ele atribui ao Aresto de Marshall no caso Marbury v. Madison, induzindo o leitor à conclusão de que o argumento construído pelo mesmo Marshall representaria uma espécie de acabamento de um produto do constitucionalismo estadunidense. Ora, quem conhece as particularidades que condicionam subterraneamente o julgamento deste caso em 1803 sabe muito bem as motivações políticas que levaram Marshall a produzir a doutrina da judicial review.[4] E sabe, igualmente, que a competência do judiciário de revisar os atos do congresso quando contrários à Constituição estava longe de ser consenso entre os próceres da república recém formada. Muito pelo contrário, não eram poucas as vozes que criticavam a possibilidade de atribuição desta competência ao poder judiciário. Thomas Jefferson, por exemplo, sempre se manifestou contrariamente a uma tal possibilidade. E continuou assim fazendo mesmo depois de Marbury v. Madison.[5] E, dentre os vários argumentos esgrimidos para tanto, lá estava, com clareza solar, o da falta de uma previsão, expressa e taxativa, da referida competência por parte do texto da Constituição estadunidense.

De se notar, então, que a formulação de Marshall é revestida de certo tom paradoxal: ao mesmo tempo em que se afirma a necessidade de taxatividade constitucional das competências dos órgão de cúpula do judiciário — rechaçando a possibilidade de o congresso ampliá-las por meio de atos infraconstitucionais —, afirma-se, também, que a competência de revisão judicial dos atos da legislação é implícita. Trocando em miúdos: para firmar a taxatividade constitucional das competências, Marshall teve antes que justificar um poder reservado ao judiciário de forma implícita (e não taxativa) pela Constituição.

Veja-se, portanto, que um dos argumentos utilizados por aqueles que entendiam não caber ao judiciário o exercício da fiscalização da constitucionalidade no âmbito do direito estadunidense é recuperado por Moraes para excluir do CNJ a possibilidade do exercício do controle difuso.

Retomemos, agora, a questão da possibilidade da fiscalização da inconstitucionalidade por parte do poder administrativo e, em consequência, do CNJ.

Voltando nossa atenção para o contexto da experiência europeia percebemos claramente que a questão suscita amplos debates que não são resolvidos com formulações simples do tipo taxatividade de competências. Em Portugal, por exemplo, existe uma situação interessante no que tange ao debate doutrinário. Um número grande de autores importantes, tais quais Jorge Miranda e Blanco de Morais, posicionam-se de forma contrária a uma fiscalização ampla da constitucionalidade por parte da administração. Todavia, admitem que, em limitadas hipóteses, tal fiscalização deve ocorrer. Assim, a administração teria o dever de levar a cabo a fiscalização quando estejam em caso atos normativos violadores de direitos, liberdades e garantias. Ou seja, ainda que em hipóteses restritas, a fiscalização da constitucionalidade por parte da administração é admitida.

E isso em Portugal, que possui um modelo de controle de constitucionalidade muito mais parecido com o nosso atual sistema do que aquele observado no âmbito do direito estadunidense. Todavia, ainda que haja alguma semelhança entre o modelo português e o brasileiro eles são, na essência, diferentes, pelo simples fato de que, por lá, existe um Tribunal Constitucional nos moldes dos demais tribunais europeus e, entre nós, não. Mas, ainda assim, mesmo com um tipo de jurisdição especializada, a doutrina não exclui completamente a possibilidade da fiscalização por parte da administração pública.

Nesse aspecto, aliás, importante referir o trabalho de Georges Abboud que, a partir de alentada pesquisa, mostra-nos como a situação da doutrina portuguesa pode ser analisada de modo que a aceitação da fiscalização da constitucionalidade por parte da administração concentra um maior contingente de autores, ainda que, nalguns casos, essa possibilidade fique restrita a hipóteses específicas.[6]

Sem embargo, importantes constitucionalistas portugueses reconhecem à administração a possibilidade completa da fiscalização da constitucionalidade. Esse é o caso de Rui Medeiros que, mantendo-se fiel ao princípio da vinculações dos poderes públicos à Constituição, afirma ser impossível subtrair dos órgãos da administração pública o papel de intérprete da Constituição e, como consequência, o dever de fiscalizar a constitucionalidade.[7]

Há, ainda, uma discussão adicional com relação aos órgãos subalternos da administração. Pergunta-se, nesse sentido, se qualquer órgão poderia realizar a referida fiscalização, ou se, ao contrário, esta ficaria reservada aos escalões superiores da estrutura administrativa. Nesse caso, há certo consenso no sentido de que a referida fiscalização ficaria a cargo daqueles órgãos que ocupem funções diretivas e uma posição hierarquicamente superior no contexto da administração. Rui Medeiros relata, inclusive, uma discussão que está ambientada no contexto do direito alemão, cujo entendimento predominante expressa a necessidade da discussão a respeito da constitucionalidade da lei chegar até as estruturas mais altas da administração, no âmbito do governo federal, para que este possa, no exercício da legitimidade que lhe confere a Constituição, provocar o Tribunal Constitucional para analisar, no âmbito abstrato, a questão.

Entre nós, o colorido do problema tem ainda outros tons. Em primeiro lugar, a possibilidade da fiscalização no âmbito administrativo, como bem lembra Georges Abboud[8], é expressamente reconhecida pelo artigo 66, parágrafo 1º da Constituição de 1988 quando estabelece a possibilidade de o presidente da república interferir no processo legislativo a partir da aposição do veto, que pode ter como motivo técnico a inconstitucionalidade.

No caso específico do CNJ, há ainda um outro aspecto importante a ser considerado. Trata-se do fato de que, embora não seja dotado de jurisdição, uma vez que suas decisões não fazem coisa julgada, o CNJ pratica atos de resolução de lides. Isso ocorre, por exemplo, nos casos em que “julga” a validade de um edital de concurso para a magistratura, ou ainda, quando “julga” algum magistrado pela prática de infração disciplinar nos casos de sua competência. Nessa medida, pergunta-se: diante de eventuais inconstitucionalidades no edital ou nos autos do processo disciplinar, o CNJ deve fazer o que?

Parece-nos que a resposta é evidentemente no sentido de efetivar a fiscalização. Claro que subsistiria aqui uma questão relativa ao exercício do controle no caso de atos dotados de generalidade e abstração. Sem embargo, pensamos que o mais correto seria buscar uma saída através de algum diálogo interinstitucional, chamando à colação um legitimado para propor a devida ação de inconstitucionalidade, como o procurador-geral da República. Ou seja: diante de uma situação concreta, o CNJ deixa de aplicar o texto jurídico inquinado de inconstitucional e, na sequência, insta-comunica a quem de direito que promova a respectiva arguição no modo concentrado de aferição de inconstitucionalidade. Afinal, se uma lei é inconstitucional em um caso concreto, o será também na forma objetiva de controle. De todo modo, em hipótese alguma, poderíamos retirar do CNJ a possibilidade da fiscalização.

No mais, é também intrigante a posição de Moraes no sentido de que o exercício do controle difuso pelo CNJ representaria uma ofensa ao legislativo em face de uma pretensa — e discutível — transcendência de efeitos da decisão (violação do artigo 52, inciso X da CF). Levando tal argumento às últimas consequências, seríamos obrigados a concluir que o poder normativo atribuído ao CNJ, que é exercido sempre que o conselho edita uma resolução seria, igualmente, inconstitucional, uma vez que colocaria o órgão em uma posição de quase-legislador.

Em suma, por tudo o que foi dito, está claro que cabe ao CNJ o poder de fiscalização difusa da constitucionalidade. Aliás, no caso, não está correto falar em poder. Diante da importância de uma tal atribuição e do princípio da vinculação dos poderes públicos à Constituição, melhor mesmo seria falar em dever! 


[1] Cf. Medeiros, Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 1999, p. 168.
[2] Verdade e Consenso. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, passim.
[3] DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Derechos Humanos. In: Novos Estudos Jurídicos. Ano 1, n. 1, jun-1995. Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí. De se consignar, ainda, que essa alteração de paradigmas levou um considerável número de autores a analisar as modificações ocorridas no que tange à vinculação administrativa à legalidade e sua relação com a constitucionalidade. Por todos, destacamos aqui: OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003 e MATOS, André Salgado de. A fiscalização administrativa da constitucionalidade. Coimbra: Almedina, 2004
[4] Nesse sentido, cf. TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. ABBOUD, Georges. A Gênese do Controle Difuso de Constitucionalidade: Cidadania e democracia na conformação das atribuições do Judiciário no marco de um Estado de Direito. In: Revista de Processo, v. 229, p. 433, 2014. Para detalhes acerca dos “bastidores” da decisão Cf. Cliff Sloan e David Mckean em The Great Decision: Jefferson, Adams, Marshall and the Battle of the Supreme Court. New York: Public Affairs, Kindle Edition, passim.
[5] Um bom exemplo do que foi afirmado pode ser lido em: JEFFERSON, Thomas. Writings of Thomas Jefferson. Nova York: Derby and Jackson, 1854, p. 178. Disponível on line, em texto integral.
[6] Cf. ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 405/444.
[7] Cf. MEDEIROS, Rui. op., cit., p. 167 e segs.
[8] Cf. ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional… op., cit., p. 419.

 

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