Criminalização da homofobia

Lei que deveria punir discriminação é, ela própria, discriminatória

Autores

29 de agosto de 2014, 12h57

Pessoas são assassinadas no Brasil ou sofrem violência somente porque são ou parecem ser homossexuais ou transexuais. O direito de cada um livremente escolher ou exercer suas formas de amar é cotidianamente desrespeitado nos espaços públicos e privados. No interior de São Paulo, pai e filho que estavam abraçados foram espancados na suposição de que se tratava de um “casal”. Profissionais são preteridos por sua homoafetividade e, por esse motivo, imóveis deixam de ser alugados a alguém. A ocultação da verdadeira identidade é um ônus que muitos são obrigados a suportar em razão da intolerância de tantos. Esses dados da realidade não são questionados pelos críticos do polêmico parecer dado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no Mandado de Injunção 4.733.

A discriminação em escala máxima é um dos mais profundos problemas que o Estado Democrático de Direito precisa resolver e desdiz o objetivo fundamental de nossa República, que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de qualquer espécie.

A legislação que deveria proibir e punir todas as formas de discriminação é, ela própria, discriminatória. Fala em “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, como se a menção da Constituição no artigo 3º, IV, não trouxesse a norma de extensão: “e quaisquer outras formas de discriminação”. A Lei 7.716/1989 não menciona homofobia ou transfobia: faz pensar que uns preconceitos são melhores que outros e que, para eles, ao invés das penas da lei, têm-se as omissões da lei. Essa lei deu uma hierarquia ao preconceito e descumpre uma clara ordem constitucional de criminalização da discriminação odiosa.

Não existe norma específica no Brasil para punir a homofobia e a transfobia, apesar de diversas propostas nesse sentido, como o Projeto de Lei 122/2006 do Senado — que tramita há treze anos! O texto original do Projeto de Lei 236/2012 (novo Código Penal) incluía essa forma de discriminação e agravava a sanção, mas foi alterado e suprimiu-se tal proteção.[1] A mora inconstitucional do Poder Legislativo mostra-se conformada e confortável, como se vivêssemos numa sociedade alheia ao sofrimento — que é dos outros, dos desiguais, dos que são ou escolheram ser assim.

É possível extrair da Constituição o dever de proteger criminalmente os graves atentados por motivo de discriminação sexual? A proteção criminal é a mais adequada social e juridicamente? O que se pode fazer se e enquanto não é aprovada uma lei?

A Constituição informa todos os ramos do Direito, que haverão de concretizá-la. Um Estado Democrático de Direito firmemente comprometido com a liberdade tem de elaborar um sistema penal restrito às ofensas mais sérias e, ao mesmo tempo, eficiente ao proteger os valores mais importantes. Assim, quando a Constituição prevê mandamentos expressos de criminalização para o racismo e a tortura, por exemplo, e quando ela assegura a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, essa Constituição determina — mais do que autoriza — a intervenção do Direito Penal. Não é preciso refutar as teses do Direito Penal garantista para concordar com isso: sim, é possível extrair da Constituição brasileira um mandamento de criminalização da homofobia e da transfobia.

No breve parecer anterior do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, contrário ao Mandado de Injunção 4.733, um dos argumentos foi de que o ordenamento jurídico brasileiro já pune suficientemente os assassinatos e agressões contra homossexuais e transexuais com os crimes comuns de homicídio e lesões corporais. Embora bem-intencionada e reconhecedora do merecimento de tutela penal, essa manifestação não foi bem recebida pelos interessados na proteção dos direitos à diversidade sexual, pois não considerou a discriminação específica contida nos atos homofóbicos de ódio e violência. No extremo, então, também não haveria por que criminalizar o racismo, a violência contra a mulher, contra a liberdade religiosa…

A criminalização da homofobia e da transfobia é a grande bandeira atual dos movimentos em prol da identidade sexual, reivindicada no âmbito político e legislativo, dos meios de comunicação social e também no judicial. Assim, quando a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) opta por acionar o Supremo Tribunal Federal por meio de um mandado de injunção, não é ilegítima quer a estratégia, quer a via eleita. Pode ser que a melhor maneira de discutir a questão e chegar a um resultado efetivo seja uma mudança nas mentalidades ou, em menos tempo, a aprovação de uma lei, mas não devemos negar que nosso quadro democrático e jurídico oferece também a oportunidade de discutir judicialmente a questão. Diante da dificuldade em mudar a cultura ou aprovar a lei, a reivindicação judicial pode oferecer um estímulo e uma contribuição a ambos, como o demonstra o reconhecimento das uniões homoafetivas por meio da ADI 4.277/DF. Explica-se assim uma das intenções da expressão “diálogo institucional entre poderes”, utilizada no novo parecer do PGR.

Se a Constituição comanda uma proteção eficiente em favor da dignidade e contra a discriminação, qual seria o limite da discricionariedade legislativa em um Estado Democrático de Direito? Será que não existe uma alternativa constitucional para a insuportável omissão do legislador? Qual o papel das funções essenciais à Justiça? Em que medida seria tolerável o ativismo judicial? Trata-se de um dos problemas mais tormentosos do constitucionalismo contemporâneo, apimentado pelo caráter moralmente controverso da questão da identidade sexual. Teria sido mais cômodo ao procurador-geral da República simplesmente reportar-se à manifestação anterior e sepultar uma discussão judicial que talvez não tivesse maiores perspectivas.

A opção pela interposição de um mandado de injunção estava posta pela ABGLT. Era o caso, então, de avaliar as possibilidades desse instrumento processual a partir da jurisprudência que o STF está a construir e que oscila desde uma mensagem ao Congresso Nacional para que edite a norma faltante (como um “apelo ao legislador”) até a elaboração de norma específica, ainda que adaptada de material legislativo já existente (como dão exemplo a questão da greve no serviço público — MI 670/ES, 708/DF e 712/PA — e da aposentadoria de servidores públicos que tenham exercido atividades sob condições especiais — MI 795/DF). Sem descurar das particularidades constitucionais dos dispositivos penais (que regem, afinal, a relação entre liberdade e sociedade), há normas, como a do artigo 10 da Lei 9.882/99, que permitem ao Judiciário decisão vinculante sobre “as condições e o modo de interpretação e aplicação” de preceitos fundamentais. O direito de não ser discriminado figura entre tais preceitos e não parece haver razão para que a lei penal se coloque à margem deste campo da jurisdição constitucional.

O controle da omissão inconstitucional suscita uma reconfiguração da independência, mas igualmente da harmonia que deve reger as relações entre os Poderes, conforme preconiza o artigo 2º da Constituição. Busca-se uma legalidade, porém configurada excepcionalmente com a participação do Supremo Tribunal Federal na qualidade de árbitro constitucional. A proposição do Mandado de Injunção 4.733 e o parecer que opina por sua procedência exemplificam uma maneira legítima, criativa e prática de buscar o atendimento da legalidade criminal estrita, jamais de renegá-la ou amainar as exigências da tipicidade penal.

A proibição de proteção insuficiente, como aporte teórico para a determinação constitucional de criminalizar a homofobia e transfobia, aponta para a possibilidade extrema de controle judicial da liberdade de conformação legislativa no campo penal. Não é possível esperar dos deveres de proteção dos direitos fundamentais apenas uma postura passiva ou de invalidação de revogações legislativas. Foi de fato o que aconteceu no caso Aborto I, do Tribunal Constitucional Federal alemão, no qual a lei que descriminalizava todas as formas de aborto foi declarada inconstitucional, voltando-se ao sistema das exceções razoáveis à sua criminalização. Disso não decorre, porém, que esse modelo seja estático e infenso às necessidades cambiantes de proteção de direitos. Criminalizações e descriminalizações devem ser feitas com a função de se obter um Direito Penal constitucionalmente adequado, proporcional. Numa Constituição que desconfia democraticamente do legislador a ponto de criar, expressamente, deveres de criminalização e que, ao mesmo tempo, trouxe ao menos dois mecanismos de controle judicial da omissão, as soluções não podem quedar-se esquemáticas, não enquanto o preconceito campeia.

No âmbito internacional, existem orientações para a proteção criminal, como uma Resolução do Parlamento Europeu sobre a homofobia na Europa, de 2006, cujo item 9 “exorta urgentemente a Comissão a considerar o recurso a sanções penais em caso de violação das diretivas” que versam sobre o combate a toda discriminação, inclusive sexual.

Eminentes constitucionalistas publicaram, neste ConJur, no último dia 21, artigo de elevada crítica a respeito do parecer do Procurador-Geral da República.[2] São luminares do constitucionalismo emancipatório e cada um deles poderia, por sua competência, ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. A crítica que eles e outros fazem merece reflexão atenta, por apontar riscos advindos de um ativismo judicial que não pode romper as peias de garantias constitucionais como a reserva de lei penal. Textualmente dizemos, sem desvio retórico, que não cogitamos de subverter dogmas e defender uma “analogia in malan parten” em Direito Penal. Não se trata simplesmente de aplicar uma norma incriminadora a outra hipótese não prevista, mas de elaborar uma norma para a situação desprotegida, a partir de uma intervenção judicial excepcional, controlada e constitucionalmente viável, que force a atuação do legislador. Assim, o foco do parecer do PGR é a afirmação dos direitos fundamentais, a reprovação da omissão inconstitucional e a ampliação dos efeitos do mandado de injunção.

Para o exercício da liberdade é preciso não ter medo. Requer-se o respeito pelas pessoas como elas são, qualquer que seja sua identidade sexual. A proteção criminal contra a discriminação sexual violenta contribui decisivamente para o livre desenvolvimento da personalidade e representa um papel legítimo que o Direito Penal tem a cumprir. A discussão a respeito das possibilidades jurídicas de se obter essa proteção é fundamental na construção de uma resposta adequada. Além do Mandado de Injunção 4.733, tramita no STF, sobre o mesmo tema, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF, que também reclama um pronunciamento das autoridades implicadas. A manifestação do procurador-geral da República na questão tal como posta pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais é arrojada, mas consciente, atenta às expectativas da sociedade brasileira e rigorosamente comprometida com a ordem constitucional. Não é o propositivo parecer do PGR que enfraquece a defesa do Estado Democrático de Direito, mas a violência impune e a desproteção a direitos fundamentais gerada pela ausência de criminalização desta forma odiosa de preconceito.


[1]              “Substitutivo do Código Penal abandona proteção à opção sexual” – Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, www.conjur.com.br, 8 de fevereiro de 2014.

[2]              “Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito”; Clèmerson Merlin Clève, Ingo Wolfgang Sarlet, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Lenio Luiz Streck e Flávio Pansieri.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!