Quantidades heterogêneas

STJ errou ao computar votos no julgamento do caso Gradin x Odebrecht

Autor

  • Felipe Barreto Marçal

    é advogado no BBL Advogados.doutorando em Direito Processual pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) mestre em Direito Processual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) professor de Processo Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e membro da ProcNet - Rede de Pesquisa.

28 de agosto de 2014, 6h58

“Não desistam do Brasil”. Foi essa frase e um julgamento equivocado — já ia escrevendo “infeliz” — do Superior Tribunal de Justiça que motivaram o presente artigo. Isso porque, apesar de a questão de fundo aqui tratada vir sendo abordada pela doutrina desde, no mínimo, 1974[1], não desisti de alertar para o problema, muito menos do nosso Poder Judiciário — que espero em breve integrar.

Antes de tudo, deve-se ressaltar que a crítica aqui feita é extensível a praticamente todos (senão todos) os órgãos colegiados do Poder Judiciário pelo país, a fim de que comecem (ou continuem) a colher de forma correta os votos proferidos nas sessões colegiadas.

Pois bem. No último dia 12 de agosto, a 4ª Turma do STJ deu continuidade a um julgamento envolvendo as famílias Odebrecht e Gradin[2], num processo que versa sobre “a maior disputa acionária do Brasil”.

Contudo, a corte não estava diante do mérito do processo, mas de uma questão processual e preliminar àquele: se o litígio deve se desenvolver judicialmente ou extrajudicialmente (por mediação ou arbitragem[3]), sendo imperioso, para isso, interpretar cláusulas (compromissórias) presentes no acordo firmado entre ambas as partes.

De acordo com o que foi noticiado pela imprensa especializada, o Presidente da Turma, ministro Raul Araujo “declarou o resultado de julgamento, até o momento, com dois votos considerando válida a cláusula de arbitragem e um voto considerando-a nula. O voto do ministro Antonio Carlos contou como uma segunda divergência, por ter entendido que o caso deve ser resolvido nas instâncias inferiores”[4]. Por não ter havido consenso da maioria absoluta, suspendeu-se o julgamento, a fim de que seja tomado o voto do ministro ausente (artigo 181, parágrafo 2º, do RISTJ) ou para que seja convocado ministro de outra Turma (§ 3º)[5], tendo em vista a ausência do ministro Luis Filipe Salomão.

No entanto, com todas as vênias, não houve qualquer “segunda divergência” inaugurada pelo ministro Antonio Carlos nessa votação, tampouco necessidade — até o presente momento — de se suspender o julgamento. Com efeito, o que houve, de fato, foi a apresentação de questão nova/distinta e um equívoco — bastante grave e corriqueiro — na colocação das questões para votação e no cômputo dos votos proferidos.

Isso porque “já se averbou que não é concebível o cômputo de votos heterogêneos. Todos os membros do tribunal, a qualquer momento, hão de estar-se pronunciando sobre igual matéria: ou a mesma preliminar, ou o mesmo aspecto do mérito, se mais de um existe”.[6]

E foi exatamente o que ocorreu nesse julgamento, mas que foi chamado de “segunda divergência”. Explico, mas por partes.

Em primeiro lugar, o mérito do recurso julgado pelo STJ, como já dito, é a competência do Poder Judiciário ou de algum órgão de arbitragem/mediação[7]. No entanto, o ministro Antonio Carlos Ferreira trouxe à discussão um novo tema: se o próprio STJ deveria apreciar onde o processo deveria se desenvolver, com base em supressão de instância. Em outras palavras, ele acrescentou nova questão ao julgamento.

É importante notar, para que não paire qualquer dúvida, que o ministro Antonio Carlos não se manifestou sobre a validade das cláusulas ou sobre onde deveria se desenvolver o processo (na esfera judicial ou na extrajudicial). Em vez disso, suscitou questão anterior, prévia, cuja solução pode impedir o julgamento do objeto do recurso pelo STJ, se acolhida, sendo, portanto, verdadeira preliminar àquela anteriormente em debate[8] (preliminar de mérito do recurso).

Sobre o tema, importante trazer as seguintes lições de Barbosa Moreira sobre a classificação das questões preliminares:

“Conceito de questão preliminar – Nos termos em que procuramos fixa-lo alhures, o conceito de preliminar envolve relação entre duas questões, tais que a solução de uma, conforme o sentido em que se pronuncie o órgão judicial, cria ou remove obstáculo à apreciação da outra.

A própria possibilidade de apreciar-se a segunda depende, pois, da maneira por que se resolva a primeira. Esta se diz, então, preliminar daquela.

(…)

Cumpre distinguir com toda a precisão três classes de questões preliminares:

a) as preliminares do recurso, isto é, questões de cuja solução depende a possibilidade de julgar-se o mérito da impugnação: (…);

b) as preliminares ao julgamento do mérito da causa, como a relativa à legitimidade das partes, que podem ser, no recurso, questões pertinentes ao respectivo mérito: (…);

c) as preliminares de mérito, a saber, as questões já situadas no âmbito do meritum causae, mas suscetíveis, se resolvidas em certo sentido, de dispensar o órgão julgador de prosseguir em sua atividade cognitiva (v.g., a questão da prescrição).”[9]

“Não se há de dizer de uma questão X que seja, em si mesma, prejudicial ou preliminar, mas que é prejudicial ou preliminar da questão Y.”[10]

Nesse sentido, já é possível perceber que o ministro Antonio Carlos não estava votando sobre as mesmas questões anteriormente discutidas (e já votadas por alguns dos ministros), razão pela qual não poderiam os votos ser computados em conjunto.

Com efeito, o artigo 561 do CPC estabelece que, “rejeitada a preliminar, ou se com ela for compatível a apreciação do mérito, seguir-se-ão a discussão e julgamento da matéria principal, pronunciando-se sobre esta os juízes vencidos na preliminar”. Apesar da redação pouco precisa do dispositivo, não há dúvidas de que “havendo preliminar já situada no plano do mérito [como ocorreu no caso estudado] (…), o tribunal deve apreciá-la antes da matéria restante; incide aí, igualmente, a regra do artigo 561, fine”.[11]

Significa isso que o presidente da sessão, uma vez suscitada a supressão de instância — logicamente anterior à correta interpretação das cláusulas sobre resolução extrajudicial dos conflitos —, deveria ter colocado essa questão em discussão e, somente se superada, — após o anúncio do resultado dessa questão específica — ter passado à análise das cláusulas compromissórias, reiniciando o procedimento de votação acerca dessa questão e votando todos os ministros presentes (mesmo os porventura vencidos sobre a supressão de instância e os que já tiverem se manifestado sobre a validade das cláusulas)[12].

Afinal, somente se não houve/houver supressão de instância é que o tribunal poderá adentrar a questão principal do recurso. E — não podemos esquecer — “compete ao presidente indicar ao colegiado a matéria que, em determinado momento, se encontra em discussão ou vai ser objeto de deliberação. Inclui-se nessa competência o mister de submeter especificadamente aos votantes cada uma das preliminares acaso suscitadas (ou suscitáveis pela própria presidência) e velar para que não se misturem umas com as outras”.[13]

Assim, diante do que foi feito, somaram-se quantidades heterogêneas — que, pelas leis da física, da matemática e do Direito (!!), não se misturam —, fazendo com que o resultado do julgamento fosse erroneamente pronunciado até o momento, ao se anunciar que não houve votos suficientes para a resolução da questão[14]. Destaque-se que, de fato, não houve votos suficientes, mas justamente porque os ministros estavam votando questões distintas e tanto a colocação das matérias em discussão quanto essa adição — teratogênica[15] e indevida — não foram devidamente abordadas.

E antes que se diga que a questão não tem qualquer conteúdo prático, pode-se, por exemplo: proclamar vencedor alguém que foi derrotado (por exemplo quando juízes do órgão colegiado julgavam procedente o pedido por fundamentos/causas de pedir diversos/as) e vice-versa; impedir que se verifique a real divergência entre os votos vencedores e o vencido, no caso de embargos infringentes etc.

Aliás, a se conduzir o julgamento dessa forma, poderá haver, ainda, dupla violação ao princípio do juízo (ou juiz) natural: por ofensa ao colegiado, já que é possível que nem todos os magistrados se pronunciem sobre a questão principal do recurso; por convocação de um julgador — após o início do julgamento — que não integra o órgão originalmente competente, sem que, a rigor, a hipótese esteja prevista em lei ou em qualquer Regimento Interno.

Tendo sido, portanto, apontados os vícios na condução do julgamento e na colheita dos votos, importante indicar-se o que deve ser feito daqui em diante.

Como se trata de equívoco na proclamação do resultado, este pode ser suprido por advertência, ex officio, de qualquer um dos ministros votantes ou mediante levantamento de questão de ordem pelo advogado. Merece destaque, ainda, o fato de que a sessão está suspensa, não havendo qualquer empecilho para que nessa mesma sessão (ainda que continuada em dia posterior, nos termos do artigo 455 do CPC) corrijam-se os vícios existentes.

Ademais, não sendo sanados os erros na própria sessão, é possível que se interponham embargos de declaração[16] para a correção da proclamação sobre o que foi efetivamente decidido, o que não se confunde com a modificação dos votos após a proclamação do resultado — esta, inteiramente vedada pelo ordenamento jurídico[17] —, conforme já decidiu o próprio STJ[18].

Por fim, aproveito para antecipar que não será lícito aos ministros, em momento posterior, defender a — tão falada — “nulidade de algibeira”[19], já que o erro de proclamação do resultado se trata de nulidade absoluta, cognoscível até mesmo de ofício, a qualquer tempo[20], aplicando-se o artigo 245, parágrafo único, do CPC.

Diante de todo o exposto, e não havendo qualquer pretensão de inovar no assunto — caso contrário, não seriam tantas as referências ao professor Barbosa Moreira —, espero ver reconhecido e corrigido, pelo STJ, o equívoco no julgamento, antes que se inicie um círculo vicioso (com a convocação de outro ministro, que continuará com a votação de questões distintas).

Ainda, “sem desistir do Brasil” e dos órgãos colegiados que integram o Poder Judiciário, espero que esses vícios recorrentes na apresentação das questões para julgamento e na colheita dos votos proferidos sejam superados, pronunciando-se corretamente os resultados.

Afinal, como apontado anteriormente, há inequívocas repercussões práticas e, “se o problema é praticamente importante, então compensa que a ele se volte de vez em quando, tênue que seja a esperança de vê-lo um dia bem resolvido. Ao menos nisto não se dirá que pecamos por omissão.”[21]


[1] Por todos: MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. V: arts. 476 a 565” – 17ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 698-705 (1ª ed.: 1974); “Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no Julgamento colegiado”, in “Temas de direito processual : sexta série”, 1997, p. 145 e s. Para a íntegra do artigo: http://www.iabnacional.org.br/article.php3?id_article=1632

[2] REsp nº 1331100 / BA.

[3] Não utilizo os termos como sinônimos, mas, conforme apontado na notícia supracitada, o Min. Raúl Araujo “reconheceu a validade da cláusula contratual que estabelece a solução por meio de mediação ou arbitragem, como hipóteses que não se excluem”.

[4] http://www.conjur.com.br/2014-ago-12/quinto-ministro-decidira-disputa-entre-gradin-odebrecht

[5] Resultado que é possível extrair da consulta processual relativa aos dias 24/06/2014 (18:30h) e 12/08/2014 (16:10h).

[6] MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Questões de técnica de julgamento nos tribunais”, in “Temas de direito processual : nona série”. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007, p. 293.

[7] MOREIRA, José Carlos Barbosa. “A competência como questão preliminar e como questão de mérito”, in “Temas de direito processual : quarta série” – São Paulo: Saraiva, 1989, p. 95 e s.

[8] CÂMARA, Alexandre Freitas. “Lições de direito processual civil : volume 1” – São Paulo: Atlas, 2012, p. 309.

[9] “Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. V: arts. 476 a 565” – 17ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 700

[10] “Questões prejudiciais e questões preliminares” in “Direito processual civil – ensaios e pareceres” – Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 89

[11] MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. V: arts. 476 a 565”, p. 700.

[12] Idem. Questões de técnica de julgamento nos tribunais”, in “Temas de direito processual : sexta série”, p. 294.

[13] Idem. “Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no Julgamento colegiado”, in “Temas de direito processual : nona série”, p. 162.

[14] Idem. Op. cit., p. 163.

[15] Pelo acerto da terminologia aqui empregada, confira-se: CÂMARA, Alexandre Freitas. "Manual do Mandado de Segurança" – 1ª ed. – São Paulo: Atlas, 2013, p. 335-336, nota de rodapé nº 17.

[16] Barbosa Moreira aponta que, “se houve equívoco no anúncio do resultado e no momento não se deu por ele, é lícito a qualquer dos juízes que participaram do julgamento requerer, na sessão seguinte, que se retifique a ata, para fazer constar o que verdadeiramente se decidira” (“Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. V: arts. 476 a 565”, p. 677). Apesar de concordar com o ilustre professor, ressalto que, no presente caso, a retificação do resultado produziria a impossibilidade de conclusão do próprio julgamento ou, ainda, sua anulação, devendo, para tanto, existir nova intimação das partes, a fim de que se retome o julgamento.

[17] MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Julgamento colegiado – modificação de voto após a proclamação do resultado?”, in “Temas de direito processual : sétima série” – Rio de Janeiro: Saraiva, 2001, p. 107 e s.

[18] EDcl no REsp 866.414/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe 22/04/2013

[19] REsp 1372802/RJ, DJe 17/03/2014

[20] Sustento que a referida “nulidade” de algibeira deveria ser chamada de “anulabilidade” de algibeira, já que as nulidades, relativas e absolutas, podem ser conhecidas de ofício, aplicando-se a regra do art. 245, p.ú., do CPC, que impede a preclusão. Isso porque me filio ao entendimento dominante na doutrina processual de que há diferença entre nulidade absoluta, nulidade relativa e anulabilidade (CÂMARA, Alexandre Freitas. “Lições de direito processual civil : volume 1”, p. 289-290). Há autores, contudo, que não fazem distinção entre nulidades relativas e anulabilidades, como o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira (“Prazos e nulidades em processo civil” – Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 40).

Entretanto, o STJ, de lege ferenda, deixa de aplicar o art. 245, p.ú., do CPC mesmo às nulidades que considera cognoscíveis de ofício (dentre elas, a relativa): “(…) 1. A não observância da regra contida no art. 71 do RISTJ gera apenas nulidade relativa, de modo que, caso não seja reconhecida de ofício, deve ser suscitada até o início do julgamento do recurso pelo colegiado ou monocraticamente pelo relator, nos termos do § 4º do citado artigo. (…)" (AgRg no Ag 1392923/RN, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/06/2014, DJe 25/06/2014).

[21] MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Que significa ‘não conhecer’ de um recurso?”, in “Temas de direito processual : sexta série”, p. 143.

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