Limite Penal

A moda agora é dar Habeas Corpus
“de ofício, mas só quando eu quiser”

Autor

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

22 de agosto de 2014, 8h00

Se o processo penal de uma nação é o termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de sua Constituição (Goldschmidt), podemos dizer que a eficácia do Habeas Corpus é um termômetro de aferição da democratização (ou não) do processo penal. Não sem razão, em sistemas autoritários, as limitações e vedações ao HC é uma das primeiras coisas que se faz para o controle da atividade jurisdicional e, por conseguinte, das liberdades individuais. Muito se fala atualmente em uma ‘banalização’ do HC e na necessidade de limitar o acesso, através desta ação, aos tribunais superiores.

Antes de ir ao ponto nevrálgico da questão, algumas considerações iniciais devem ser feitas, inclusive para melhor compreensão do estado da arte[1]. No Brasil é por todos conhecida a origem em 1832, mas chamo a atenção para o HC preventivo, consagrado em 1871, quando sequer havia recepcionado na Inglaterra. De qualquer forma, é importante sublinhar que o HC sempre pode ser usado, no Brasil, como instrumento de “collateral attack”, não só nos casos de prisão, mas também como uma via alternativa de ataque processual contra atos judiciais e coações ilegais no curso do processo (nulidades, provas ilícitas, etc.). E, mais, sempre se admitiu como ação de impugnação de decisões judiciais passíveis de recurso e até para desconstituir sentenças com trânsito em julgado. Claro em situações excepcionais de evidente nulidade/ilicitude, diante das limitações cognitivas do HC. Mas nada disso é novo! Não se trata de uma distorção funcional recente, senão de uma prática consagrada desde sempre e assumida como objeto possível do writ.

Mas a questão nuclear é: existe realmente uma ‘banalização’ do habeas corpus? Se positiva a resposta, qual é a causa? Será um sintoma de eventuais disfunções orgânicas da jurisdição? De onde veio a moda do ‘não conheço’ do HC substitutivo, mas concedo de ofício?

Nos últimos anos essa é uma bandeira levantada pela maioria (não a totalidade) dos Ministros do STF e STJ para justificar uma restrição à admissibilidade do HC quando (segundo eles) for substitutivo de recurso ordinário, especial ou extraordinário. Isso ganhou corpo de uns dois anos para cá, aproximadamente.

Como dito, não se trata de tentar controlar uma ‘prática nova’, que tenha gerado uma disfução do sistema. Nada disso, pois sempre se usou o writ (também) dessa forma. Existe uma “necessidade nova” de trancar o uso em nome da ‘eficiência’ da administração da Justiça. E de onde veio essa ‘necessidade nova’? Do significativo crescimento do número de ações de habeas corpus impetradas e a incapacidade dos tribunais de dar conta dessa demanda.

E por que a demanda cresceu tanto? Porque é um sintoma da doença!

Porque cresceu imensamente o número de processos criminais; houve uma substancial expansão do Direito Penal; temos hoje a terceira maior população carcerária do país, beirando os 700 mil presos, sendo que quase 300 mil são presos cautelares; temos a completa falência do sistema carcerário e gravíssimos problemas nos processos de execução penal; existe uma imensa resistência de parcela considerável de juízes e tribunais em aceitar posições pacificadas no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal acerca de questões pontuais, que representam ampliação do espaço de liberdade; enfim, um conjunto de fatores que contribui para o entulhamento das varas criminais e, por efeito cascata, dos tribunais superiores (ainda mais entulhados).

Sem embargo, o sistema recursal e o próprio sistema de administração da justiça penal não evoluiu a ponto de dar conta dessa imensa demanda. Não vejo como justificar que existam apenas duas turmas com competência penal no STJ, o tribunal que represa demandas do país inteiro! Com o número de processos criminais represados atualmente, está mais do que justificada a ampliação do STJ e do número de Ministros.

Mas, diante do cenário atual, o que fazer?

Restringir o acesso à Justiça. Como sói ocorrer, não se faz uma restrição pensada, estudada e estruturada, naquilo que é possível/necessário/viável. Não se limita, por exemplo, o número absurdo de acusações absolutamente infundadas; não se coloca um filtro processual sério, para evitar denúncias sem justa causa; não se leva a sério as condições da ação processual penal (rectius, requisitos para a acusação); não se revoga a lei das contravenções penais para acabar com essa balbúrdia dos juizados especiais criminais, completamente corroidos pela lógica negocial e a banalização das imputações penais. Enfim, não se faz uma anamnese séria do problema.

Buscamos, novamente, o caminho mais simples e sem o respectivo estudo de ‘impacto penal e processual penal’: vamos limitar o acesso aos tribunais superiores de qualquer forma. Para isso, vale criar regras para ‘não conhecer’ do Habeas Corpus (e conceder de ofício, apenas quando quisermos… ou seja, indiretamente ampliaram o espaço impróprio da discricionariedade jurisdicional, ampliaram o decisionismo). Também vale dificultar o acesso pela via do Recurso Especial e Extraordinário, dando à Súmula 7 e demais, um alcance absurdo; criando exigências excessivas em relação ao prequestionamento; trazendo categorias do processo civil para o processo penal de forma errônea, mas eficientes como limitadores de acesso; implantando a tal exigência de ‘repercussão geral’, cláusula vaga, imprecisa e indeterminada, absolutamente inadequada para o processo penal; enfim, é o vale-tudo processual em nome do punitivismo e do ‘in dubio pau no réo’. Sim, porque se fizermos uma análise quantitativa, comparando o número de recursos da acusação (especial e/ou extraordinários) admitidos em relação aos recursos da defesa, ficaremos em choque… O contraste é absurdo, comentarei isso em outra coluna.

Mas vamos voltar à banalização do HC e os ‘não conheço’…

Dias atrás fiquei horas assistindo uma sessão no STJ e presenciando dezenas e dezenas de julgamentos sobre Habeas Corpus impetrados e nenhum conhecido….mas alguns poucos concedidos de ofício. Existe parecer do MP, sustentação oral, ampla discussão sobre tema, divergências e, quando chega na votação…“não conheço do HC”. E alguns poucos “não conheço, mas concedo de ofício”. Quem vê a cena não deixa de pensar: que papo de louco…(e que gente louca essa do Direito…). Não se conhece de algo que conheceram e discutiram!

A vantagem da nova ‘política processual’ é uma só: aumentar a restrição e ampliar o espaço discricionário. Agora, o concedo de ofício fica — ainda mais — subordinado ao meu ‘livre convencimento’. Já que a concessão de ofício é uma exceção, mais espaço discricionário tenho ao decidir. É mais uma prática geneticamente marcada pelo decisionismo (tão bem trabalhado por Lenio Streck). Mas afinal, é preciso limitar?

Vejamos alguns números de sites do STJ e STF e uma importante pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) [2] sobre o HC.

Em 2013, foram 31.032 HCs julgados pelo STJ, mais 9.180 Recursos Ordinários em HC. No ano anterior foram 37.336 HCs julgados pela corte. Só no mês de fevereiro de 2014, uma ministra (Maria Thereza Rocha de Assis Moura) recebeu 220 Habeas Corpus. Sim, são números impressionantes, ainda mais se imaginarmos que além de HC eles também têm que julgar recursos especiais, agravos, mandado de segurança etc.

Agora, com base na pesquisa da FGV, quais são as cinco matérias mais discutidas em sede de habeas corpus nos tribunais superiores? 1) Progressão de regime; 2) falta de fundamentação na decretação da prisão cautelar; 3) regime inicial da pena; 4) dosimetria da pena; 5) excesso de prazo na prisão preventiva.

Mais de 70% está relacionado à prisão. Logo, existe restrição real da liberdade. Já não se vislumbra tanta distorção no uso, portanto… Pior é que boa parte desses temas já tem entendimento pacificado no STJ, mas existe uma grande resistência por parte de juízes e tribunais em assimilar essas posições. Mais interessante ainda se constatarmos (sigo com o Relatório da FGV) que de 2008 a 2012, 70% dos HCs são originados de apenas 05 tribunais: TJ-SP (43,8%), TJ-MG (9,4%), TJ-RJ (7,4%) e TJ-RS (6,7%).

Chama a atenção a imensa demanda de São Paulo, que segundo os pesquisadores da FGV, decorre de dois fatores: resistência do TJ-SP em aceitar as decisões dos tribunais superiores mais benignas ao réu e o fortalecimento da defensoria pública (demanda reprimida dos clientes preferenciais do sistema e que agora — felizmente — contam com a defensoria).

A média de concessões chega a 20%, ou seja, em um universo de 37 mil HCs (em 2012), foram concedidas aproximadamente 7.400 decisões favoráveis! Mais interessante ainda é ver que essa média sobe para 33% em relação aos HCs de São Paulo! Logo, são muitos casos de grave ilegalidade reconhecida e que, por si só, justificariam manter a amplitude do HC.

Infelizmente não encontrei no site do STJ informações sobre o número de Habeas Corpus concedidos (seja de ofício ou não), pois esse seria um dado muito importante para justificar a permanência do writ com o alcance que sempre teve.

E o STF? Para termos uma ideia, entre 2011 e 2013, o STF concedeu 1.075 ordens e mais 298 em parte. É um número muito relevante de concessões. E que conclusões (superficiais diante do espaço) podemos extrair?

Primeiro: o HC existe desde 1832 no Brasil. Se agora estão reclamando da ‘banalização’ eu digo: isso é sintoma de uma doença. É sintomático de que algo não vai bem e que muitas ilegalidades estão sendo praticadas na planície. Não adianta restringir o HC (consequência) sem fazer uma anamnese séria das causas.

Segundo: temos um sistema recursal ruim (com importantes recursos sem efeito suspensivo) e uma lenta administração da Justiça nessa matéria. Se você ingressar hoje com um HC no tribunal do seu estado e perder, o caminho correto é o Recurso Ordinário Constitucional para o STJ. O problema é que, não raras vezes, esse recurso leva meses só para ser admitido no juízo de origem e muitos meses mais para ser julgado no STJ (quando não anos aguardando). Como esperar tamanha demora preso, sofrendo uma injusta coação?

Terceiro: desconhecemos por completo o direito de ser julgado em um prazo razoável. É imprescindível definir o prazo máximo de duração do processo e da prisão preventiva, com uma respectiva sanção processual em caso de indevida dilação. Prazo com sanção, como já tratei tantas vezes nos livros e recentemente aqui nesta ConJur.

Quarto: nosso sistema carcerário é medieval e o processo de execução penal é muito ruim! Só quem não conhece a Lei de Execuções Penais a fundo repete aquele chavão: a LEP é boa e o sistema carcerário é ruim. Errado. A LEP é uma lei muito ruim e o sistema carcerário é medieval. Sem falar na resistência de alguns tribunais em recepcionar os mais recentes entendimentos do STJ sobre progressão de regime, inexigibilidade de laudos, fixação inadequada do regime inicial, etc.

Quinto: a fraude processual da nulidade relativa. Quando há nulidade? O que é ‘prejuízo’? Enfim, como já falei várias vezes, a importação dessas categorias do processo civil (culpa da Teoria Geral do Processo) tem cobrado um preço altíssimo e, principalmente, consagrado o decisionismo: é nulo quando eu tribunal quiser, para os casos em que eu quiser e com a extensão que me der vontade de definir… Claro que isso só pode desaguar em HCs no STJ e STF na esperança de ver respeitadas regras básicas do devido processo. E, às vezes, nem assim se resolve…

Sexto: A criação de filtros duríssimos de admissibilidade dos Recursos Especial e Extraordinário conduz ao uso do habeas corpus como – literalmente – ‘remédio heróico’. Os tribunais colocaram tantos empecilhos, que não raras vezes uma matéria não acolhida no Recurso Especial (sequer conhecido…) acaba virando um HC conhecido e provido! Como explicar isso?

Sétimo: Precisamos levar a sério o papel do Direito Penal e reconduzi-lo ao seu devido lugar, pois essa expansão punitivista está servindo apenas para enfraquecê-lo pela banalização. Revogar a Lei de Contravenções Penais e repensar o papel dos Juizados Especiais Criminais é uma medida urgente. Mais critério na hora de legislar em matéria penal, ainda que seja um lugar comum, é uma necessidade urgente. Banalizaram o direito penal, por conseguinte o processo penal e o resultado é isso que aí está.

Oitavo: é imprescindível estabelecer um filtro severo às acusações infundadas, sem lastro probatório mínimo ou sobre condutas insignificantes. Hoje no Brasil acusa-se muito e acusa-se mal. É preciso ter mais responsabilidade no momento de exercer o iu ut procedatur e compete aos juízes levar a sério as condições da ação (do processo penal…) para rejeitar acusações sem fumus commissi delicti suficiente; sem punibilidade concreta; diante de manifesta ilegitimidade ativa ou passiva; ou sem justa causa. Do contrário, seguiremos assistindo um furto de galinhas chegar no STF… Ou o crime ambiental de pescar 12 camarões (cujo HC não foi concedido pelo STF)… Os exemplos de acusações absurdas tem uma lista infindável. O problema é que contribuem para o entulhamento da justiça criminal, que acaba deixando de lado casos penais graves e sérios, para se ocupar de condutas insignificantes. Enfim, são muitos os pontos que contribuem para isso que aí está, sendo reducionista ao extremo o caminho adotado, da limitação de acesso à jurisdição.

No julgamento do HC 113.198/PI (rel. min. Dias Toffoli, 19/12/2013), o ilustre ministro Barroso sublinhou a elevada quantidade de ações de Habeas Corpus que aguardariam julgamento e que seriam impetradas perante a corte diariamente, o que exigiria reflexão, pelo STF, acerca de sua autopreservação. Considerou que, quanto mais expandida a competência para o conhecimento desse tipo de ação, menor o tempo que se poderia dedicar para cada uma delas e maior a demora para julgamento. Vislumbrou que, no futuro, a corte só seria capaz de julgar habeas corpus que envolvesse questão constitucional, violadora de sua competência.

Eu até poderia concordar com o ministro Barroso, mas antes disso, teríamos que resolver os graves problemas que estão gerando essa enxurrada de ações. Teríamos que olhar, no mínimo, para algumas das questões anteriormente citadas.

Mas é claro que uma mudança dessa envergadura é complicado, muito complicado. Admitir que seja sintoma de que o processo penal e o sistema de administração da justiça criminal não estão funcionando a contento é muito difícil… mais fácil é restringir o acesso à Justiça. E, da próxima vez, vamos manter o processo do ladrão de galinhas, para autopreservação do STF, não da população e das liberdades individuais.


[1] Para uma ampla análise dogmática do habeas corpus consulte-se nossa obra “Direito Processual Penal”, 11ª edição, publicado pela Editora Saraiva.
[2] Os dados que menciono da Fundação Getúlio Vargas (FGV) estão no Relatório Final do Projeto de Pesquisa "Panaceia Universal ou remédio constitucional? Habeas Corpus nos tribunais superiores", desenvolvido pela FGV Direito Rio e coordenado pelo Prof. Dr. Thiago Bottino. Excelente trabalho e leitura imprescindível para tratar do tema.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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