Regulamentação pendente

O regime de insegurança jurídica das empresas estatais brasileiras

Autor

  • Alice Voronoff

    é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

22 de agosto de 2014, 15h07

O parágrafo 1º do artigo 173 da Constituição é claro. Mais ainda, ele é categórico: “A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica”. Ao invés de expressões como “caberá à lei” ou “na forma da lei”, o constituinte optou por uma redação impositiva: “A lei estabelecerá”.

Causa perplexidade, assim, que passados mais de 20 anos desde a promulgação da Carta de 1988, não se tenha notícia da lei em questão. Na prática, o regime jurídico das empresas estatais exploradoras de atividade econômica continua sendo definido por referências esparsas, a exemplo do Decreto-Lei 200/1967, da Lei das Sociedades Anônimas e da Lei de Licitações, além da doutrina e da jurisprudência.

Mas não seria mais fácil se enfim fosse editado o estatuto jurídico das estatais? Por que isso ainda não aconteceu? E será que um dia acontecerá?

Não há dúvidas de que a iniciativa seria mais que bem vinda. Ela contribuiria para amenizar o grave quadro de indefinições em torno do tema. A começar pelo conceito dessas entidades, ainda ditado pelo Decreto-Lei 200/1967. De acordo com o diploma, empresa pública e sociedade de economia mista são definidas a partir da ideia de propriedade do capital ou das ações da empresa. Se houver exclusividade, existirá uma empresa pública. Se a maioria das ações com direito de voto pertencer ao ente público, existirá uma sociedade de economia mista.

O conceito legal, contudo, é claramente insuficiente. Vejam-se as chamadas empresas participadas. Nelas, o poder público detém, direta ou indiretamente, participação societária inferior a 50% das ações com direito de voto. Em alguns casos, ele atua como minoritário, sem exercer o controle. Noutros casos, mesmo uma participação minoritária pode assegurar ao Estado o exercício do controle – em razão, e.g., do alto grau de pulverização dos acionistas ou da celebração de um acordo de acionistas. E essa pode ser uma característica permanente ou temporária.

De outro lado, há casos em que o poder público adquire mais da metade das ações de certa sociedade, mas apenas para “salvá-la”. Trata-se de atuação típica dos bancos públicos de desenvolvimento e fomento, que não têm interesse em gerir as empresas privadas e efetivamente não o fazem. Nem aqui, e muito menos na criação das empresas participadas, as definições do Decreto-Lei ajudam o intérprete.

Outra dificuldade tem de ver com a matéria de licitações. Segundo a doutrina e a jurisprudência, se se tratar de atividade-fim, a estatal estará isenta do dever de licitar. Se se tratar de atividades-meio, prevalecerá a incidência dos princípios que regem a Administração Pública.

O problema é que nem sempre é fácil distinguir atividade-fim de atividade-meio. Fora das zonas de certeza positiva e negativa, um contingente expressivo de contratações pode se situar em zona cinzenta. Nela, o critério adotado pela doutrina e pelos tribunais pouco ajuda. Ao contrário: pode dar margem para decisões arbitrárias.

Mas talvez a maior dificuldade resida na definição do que seja o interesse público perseguido pela empresa estatal. O conflito é especialmente relevante nos casos das sociedades de economia, que contam com acionistas privados. Nelas, é preciso conciliar interesses do poder público com o lucro almejado pelos acionistas privados.

Para tanto, recorre-se ao artigo 238 da Lei das S.A., que estabelece que o acionista controlador deve perseguir o objeto social da companhia, mas poderá orientá-la de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação. E o que isso significa? Não há resposta exata – nem nada perto disso.

Por exemplo: a estatal pode ser utilizada como instrumento de macropolítica, com vistas à realização de metas como a diminuição da inflação ou da pobreza? Ou esses seriam objetivos estranhos ao objeto social, e por isso ilícitos, apesar de públicos? E mais: mesmo diante de empresa estatal superavitária, estaria vedada a persecução de objetivos públicos mais amplos?

De outro lado: a empresa estatal pode ser criada com o objetivo exclusivo de obter lucros? É dizer: de atender apenas ao interesse público secundário, como meio para a obtenção de recursos necessários para a realização do interesse público primário?

Em suma, ao menos quanto ao conceito, ao dever de licitar e ao compromisso com o interesse público –três temas centrais ao regime das empresas estatais exploradoras de atividade econômica –, o cenário é de marcada insegurança jurídica. O que só reforça a perplexidade antes apontada: por que, então, o estatuto jurídico previsto no artigo 173, parágrafo1º, da Constituição ainda não foi editado?

Poder-se-ia dizer que a razão seria a falta de consenso. Não havendo alinhamento mínimo sobre aspectos fundamentais do regime dessas entidades, a edição da lei restaria inviabilizada. Mas a ausência de consenso, a rigor, é sintoma da insegurança jurídica, e não de motivo. De mais a mais, o consenso não é exigível, nem viável, em sociedades plurais. Nelas, prevalece a liberdade para se ter opiniões divergentes e viver-se o pluralismo. A despeito disso, cumpre ao legislador definir normas ajustadas ao ideal da razão pública e adequadas para ordenar a vida em sociedade. É dizer: o dissenso, além de natural, não justifica a inércia dos Poderes eleitos há mais de vinte anos.

Na verdade, o que falta é vontade política. E isso porque a indefinição “abre portas”. Quando interessa, criam-se estatais nos exatos termos do Decreto-Lei 200/67 para atender a objetivos os mais diversos. Quando não interessa, buscam-se variações dos formatos previstos no decreto para se escapar das exigências do regime público. Quando é conveniente, faz-se da estatal uma empresa de referência, marcada pela excelência de seu corpo técnico e de seus resultados. Mas com a mesma facilidade captura-se politicamente a estatal, loteando seus cargos entre partidos políticos, aliados e parentes.

Enfim, no regime jurídico das empresas estatais, tal como ele é hoje, existe margem de manobra bastante elástica para o governo usar deste instrumento como melhor entender. Isto é, para fins mais ou menos legítimos. Isso pode, a princípio, trazer consequências benéficas para a sociedade, tais como aquecer o mercado, combater a inflação ou criar a falsa impressão de que o país anda bem. Mas não se vislumbra como tamanha margem de indefinição possa aprimorar as instituições brasileiras.

Infelizmente, em um cenário de incertezas, os incentivos são pelo uso interesseiro ou distorcido das estatais. Se não há balizas, não há parâmetros para o controle. E tudo pode. Daí a urgência de se levar a sério o comando do artigo 173 da Constituição. Pode-se apostar que a definição mais segura do regime jurídico das estatais, ainda que sujeita a ajustes no curso do tempo, por si só será um ganho.

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