Soluções e incertezas

LCP 147/2014 dá vez aos pequenos empresários na recuperação judicial

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20 de agosto de 2014, 7h56

A Lei Complementar 147, de 07 de agosto de 2014 (Lcp 147) implementou significativas e benéficas mudanças na Lei 11.101/2005 (“LRF), microssistema jurídico de tutela do empresário e da sociedade empresária em crise econômico financeira, mas também trouxe junto com as soluções alguns problemas e incertezas.

Desde seu advento a LRF previu a possibilidade das microempresas e empresas de pequeno porte apresentarem pedido de recuperação com base em plano de recuperação especial (artigo 70). Dentre as peculiaridades do plano especial encontra-se a regra de que não será convocada assembleia geral de credores para deliberar sobre o plano (artigo 72) e que a recuperação será concedida desde que o plano não receba objeções de credores titulares de determinado percentual de créditos (artigo 72, parágrafo único). Com a ausência do órgão deliberativo pretendeu-se desonerar as empresas de pequeno porte dos custos envolvidos na sua convocação e imprimir ainda mais celeridade ao processo.

Contudo, antes da entrada em vigor da Lcp 147, o plano especial previsto na LRF mostrava-se contraditório com a finalidade de um processo de recuperação mais benéfico, principalmente porque, ao contrário do plano regular, esse plano abrangia exclusivamente os créditos quirografários, deixando de fora os créditos trabalhistas e decorrentes de acidentes do trabalho e os créditos com garantia real.

Nesse cenário a recuperação com base no plano especial beirou a tornar-se letra morta e foi pouquíssimo utilizada na prática. O número de microempresas e empresas de pequeno porte que pleitearam a concessão da recuperação pelo plano especial foi praticamente insignificante, visto que a sujeição exclusiva dos créditos quirografários era medida que dificultava sobremaneira o soerguimento da situação de crise econômico-financeira. Assim verificou-se que muitas dessas empresas ou deixaram de requerer a recuperação e rumaram diretamente para a falência ou apresentaram pedido com base no plano regular, quando o volume do passivo justificou os custos envolvidos.

O principal mérito da Lcp 147 está na correção dessa contradição, de que o plano especial supostamente mais benéfico acabava por ser mais desvantajoso, ao alterar o artigo 71, inciso I para sujeitar à recuperação todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, excetuados os decorrentes de repasse de recursos oficiais, os fiscais e os previstos nos parágrafos 3º e 4º do artigo 49, da mesma forma como ocorre na recuperação requerida com base no plano regular (artigo 49, caput).

As alterações não pararam por aí e vieram sanar pequenas imperfeições do regramento anterior sobre o mencionado plano. A remuneração do administrador judicial nesse caso foi fixada no limite de 2% do valor dos créditos devidos (art. 24, § 5º), criando-se distinção com relação à remuneração do administrador na recuperação regular que pode chegar a até 5% (art. 24, § 1º), com o objetivo de reduzir a oneração do pequeno devedor. Anteriormente, o devedor que houvesse obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial há menos de 8 anos não poderia requerer recuperação novamente, a partir de agora o prazo foi reduzido para 5 anos (art. 48, III), igualando o prazo aplicável à recuperação regular (art. 48, III).

Os prazos para de parcelamento dos créditos tributários e previdenciários, em sede de recuperação, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei 5.172/1966 do CTN, passam a ser 20% superior àqueles regularmente concedidos às demais empresas requerentes da recuperação normal (artigo 68, parágrafo único). As parcelas de pagamento aos credores que eram corrigidas monetariamente e acrescidas de juros de 12% a.a., passam a ser acrescidas de juros equivalentes à taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic); ainda, definiu-se possibilidade de proposta de abatimento do valor das dívidas, medida usual na recuperação regular (art. 71, II). Como não há assembleia geral de credores na recuperação especial o plano para ser aprovado não pode sofrer objeção de credores titulares de determinado percentual de créditos; visto que passou a haver mais de uma classe de credores o artigo 72, parágrafo único foi alterado para prever que será decretará a falência do devedor na hipótese de o plano ser objetado por “credores titulares de mais da metade de qualquer uma das classes de créditos previstos no artigo 83, computados na forma do artigo 45”.

Em síntese, as modificações legislativas referentes à recuperação com base no plano especial buscaram fazer valer a ideia de que essa recuperação seja de fato “especial”, menos onerosa e em alguns pontos, senão mais benéfica que a recuperação regular, no mínimo a ela equiparada.

Ainda, na falência os créditos devidos aos microempreendedores individuais e às microempresas e empresas de pequeno porte foram elevados à condição de privilegiados (artigo 83, inciso IV, alínea “d”).

Outra significativa alteração da Lcp 147 e que certamente causará expressivos reflexos na dinâmica da negociação sobre o plano de recuperação judicial e votação em assembleia é a criação da uma quarta classe de credores, em que inserem-se aqueles titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte (artigo 41, inciso IV), classe esta que comporá a assembleia junto com as classes dos credores titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho (I), titulares de créditos com garantia real (II) e titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados (III). É interessante notar que na classe IV o cômputo dos votos se dará por cabeça e não pelo valor dos créditos, da mesma forma como já ocorria com os votos da classe I (artigo 45, parágrafo 2º).

Questão que pode suscitar debates é que o critério de enquadramento para a classe IV é a qualidade daquele que detém o crédito, no caso microempresa ou empresa de pequeno porte, inovando e destoando do critério definidor das demais classes, em que os credores são distribuídos com base na natureza do crédito que detém. Em verdade, o critério de divisão por classes em razão da natureza do crédito é apenas o critério aparente, o qual decorre do critério subjacente. O critério subjacente e que justificou a criação das anteriores três classes funda-se na diversidade de interesses que os credores detentores de determinados tipos créditos têm na recuperação, ou seja, presume-se que o voto dos trabalhistas será orientado por motivos diversos daqueles orientadores dos votos dos credores com garantia real, como também, que os interesses dos credores quirografários serão diversos dos demais. Nesse sentido, pode-se afirmar que a Lcp 147 entendeu que os credores que sejam microempresa ou empresa de pequeno porte, independentemente da natureza de seu crédito, possuem interesses diversos das demais três classes já existentes.

Em resumo, a assembleia geral de credores passa a ser composta por quatro classes de credores com interesses aparentemente distintos com os quais o devedor deverá negociar e os quais deverá contemplar em seu plano. Sendo que com uma classe própria as microempresas e empresas de pequeno porte têm seu poder de barganha consideravelmente aumentado.

Ponto de incerteza resultante da criação de uma nova classe de credores refere-se à publicação dos editais contendo relação de credores ocorrida nos processos de recuperação em andamento, visto que a Lcp 147 entrou em vigor na data de sua publicação (artigo 15). Os próximos editais deverão contemplar a classe IV ou as alterações passarão a valer unicamente para as recuperações ajuizadas após a data de 7 de agosto de 2014?

Os dispositivos da LRF que cuidam da confecção das relações de credores e subsequente publicação dos editais são normas processuais, destinada a regular o processo, e como tais sujeitam-se ao princípio da aplicação imediata das normas processuais (tempus regit actum).

Para que o processo esteja em curso, por óbvio, é preciso que o devedor tenha apresentado o pedido de recuperação em juízo com petição inicial instruída com a relação nominal completa de credores (art. 51, III). Nesse caso o ato jurídico perfectibilizou-se com base na redação antiga do artigo 45, ainda que não tenha sido publicado o edital a que se refere o artigo 52, parágrafo único, razão pela qual não parece acertado que se determine ao devedor a emenda da petição inicial para contemplar eventual quarta classe de credores, quanto mais que se ordene a republicação do edital do artigo 52, parágrafo único.

Situação diversa é aquela da relação de credores confeccionada pelo administrador judicial (art. 7º) ainda não apresentada nos autos e publicada no edital previsto no artigo 7º, parágrafo 2º. Dada a natureza processual do artigo 7º as modificações da Lcp 147 ao artigo 45 tem aplicabilidade imediata sobre a elaboração e publicação da relação pelo administrador, a qual deverá contemplar a nova classe de credores. Situação em que, caso o plano de recuperação já tenha sido apresentado, será necessário que o devedor apresente aditivo contemplando a nova classe relacionada.

Já quanto ao quadro geral de credores, na hipótese deste vir a ser consolidado pelo administrador e homologado pelo juiz (art. 18) após a realização da assembleia geral de credores, conforme usualmente ocorre, igualmente ao que se comentou sobre a relação de credores do devedor, não há razão para que contemple a nova classe IV ou que se ordene sua republicação, uma vez que o ato de votação do plano em assembleia já se perfectibilizou.

Há, ainda, omissão da Lcp 147 quanto ao quórum mínimo necessário para concessão da recuperação com base no cram down (art. 58, § 1º), que desde já gera incertezas e se não seja sanada em tempo causará consideráveis problemas. Prevê o artigo 58, parágrafo 1º que juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do artigo 45, desde que, na mesma assembleia, tenha obtido, de forma cumulativa: o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes (I); a aprovação de duas das classes de credores nos termos do artigo 45 ou, caso haja somente duas classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos um delas (II); e na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 dos credores, computados na forma dos parágrafos 1º e 2º do artigo 45 (III).

As disposições sobre o quórum para concessão da recuperação pelo cram down estão estruturadas a partir da redação antiga do artigo 45 que previa a existência de apenas três classes de credores. Havendo três classes de credores, a aprovação em duas das classes é atualmente um dos requisitos cumulativos para o cram down, porém, a partir da vigência da Lcp 147, podem haver quatro classes; por consequência, a redação do artigo 58, parágrafo 1º ao não sofrer alterações ficou omissa com relação à hipótese de haver rejeição em duas das possíveis quatro classes e, em sendo esse o resultado da assembleia, se seria caso de decretação da falência ou se haveria a possibilidade de concessão da recuperação com base no cram down.

A Lcp 147 merece elogios pelo intento de salvaguardar as microempresas e empresas de pequeno porte em situação de crise econômico-financeira ao implementar alterações importantes no regime da recuperação judicial com base no plano especial. Mesmo que possa haver celeuma acadêmica entorno dos critérios empregados para a criação de uma quarta classe de credores para essas empresas ao menos é válido o resultado prático de aumento do poder de negociação destas com relação ao plano. Já seus problemas e suas incertezas precisam ser corrigidos e elucidados com a maior brevidade possível pois, apesar de ainda serem pequenos, podem ganhar dimensão e comprometer os resultados das recuperações presentes e futuras. Por fim, parece que chegou a vez dos pequenos terem, efetivamente, lugar na lei de recuperação de empresas e falências.

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