Federalismo fiscal

Transferência financeira entre entes federados é necessária

Autor

  • Cleucio Santos Nunes

    é advogado e vice-presidente Jurídico dos Correios. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos) doutorando em Direito pela UnB e professor nas áreas de Direito Financeiro e Tributário.

14 de agosto de 2014, 6h29

O tema das transferências de recursos prende-se íntima e profundamente à formação do Estado, mais exatamente ao Estado federado e ao princípio do pacto federativo. Neste ensaio quero tratar da necessidade de se transferirem receitas entre os entes da federação brasileira de forma generalizante, obrigando-me a não aprofundar aspectos econômicos, históricos, sociológicos, políticos e estatísticos, os quais, devidamente articulados, podem explicar o estágio de desenvolvimento das regiões e lançam as projeções de crescimento equilibrado de toda a federação.

A noção que se extrai do conjunto normativo da Constituição Federal (em especial dos artigos 1º, 3º, 18, 157, 158 e 159) remete ao conceito de que federalismo fiscal é a descentralização de atribuições e de receitas às entidades subnacionais.

Esse compartilhamento de recursos financeiros para a execução de competências materiais estabelecidas pela Constituição conduz à delicada articulação de fatores econômicos e políticos que buscam explicação na história do desenvolvimento do país.

A transferência de recursos financeiros entre os entes federados, devidamente pré-estabelecida e institucionalizada na Carta Política, opera em regime obrigatório de distribuição, o qual se aloja perfeitamente na previsão do artigo 25 da Lei Complementar 101, de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal, que distingue — sem definir propriamente — transferências voluntárias de transferências obrigatórias.

A distribuição de recursos financeiros dentro de uma federação pode comportar facilmente esses dois sistemas de repasse.

O primeiro (transferências obrigatórias) pede a organização de um sistema que garanta a distribuição de receitas arrecadadas pelo ente central com competência tributária mais ampla. Neste caso, pretende-se a repartição da riqueza nacional em níveis que possam atuar na execução das competências constitucionais estabelecidas para cada ente federado. São exemplos os artigos citados, os quais cuidam da repartição das receitas tributárias na federação.

O segundo (transferências voluntárias) não passa por um regime legal rígido de garantia de recursos, como ocorre com as transferências obrigatórias, já que estas são garantidas por disposições constitucionais. Assim, as transferências admitem também certa flexibilidade. Daí por que dependerão de previsões orçamentárias amplas e de disponibilidades financeiras. Por essa razão são consideradas transferências voluntárias, para distinguir do regime das obrigatórias.

Conforme mencionei, o quadro jurídico dogmático das transferências de recursos no âmbito do federalismo fiscal é amplamente regulado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, podendo ser o regime das transferências obrigatório ou voluntário. Aquele decorre de disposição constitucional ou legal, ou ainda, das transferências do Sistema Único de Saúde (SUS). O outro, a contrário senso, será toda forma de transferência de capital, que se alicerce em regime jurídico precário, porquanto inserido em disposições orçamentárias sem garantia de disponibilidade financeira.

As transferências de recursos no sistema federado são fundamentais. Talvez uma das justificativas da formação de um Estado federado esteja na necessidade de diminuição das desigualdades econômicas regionais, por meio de um esforço conjunto de entidades, sob a organização de um ente central.

O exame adequado da formação da federação brasileira e dos mecanismos de distribuição de recursos entre os entes federados (transferências obrigatórias e voluntárias) auxiliam a compreensão de temas seminais para a democracia. No conjunto desses temas encontram-se a diminuição das desigualdades regionais, o pagamento das emendas parlamentares, celebração de convênios e outros ajustes correlatos.

Em um país com as dimensões do Brasil é impensável abdicar de um amplo regime de transferências de recursos do ente central para as demais unidades federadas. Note-se que a maior parte dos municípios brasileiros tem entre cinco e dez mil habitantes. O contingente populacional pode explicar os baixos índices de desenvolvimento econômico dessas localidades e consequentemente de renda de sua população. Nesse contexto, as condições para geração de receita tributária para suprir necessidades inerentes às competências do município diminuem fragorosamente, razão pela qual a transferência dos recursos no âmbito do federalismo fiscal é medida necessária, mais do que conveniente.

Não se pode perder de vista, por outro lado, as transferências devem ter destinos certos. Assim, recursos federais deverão ser aplicados em projetos bem definidos, cabendo ao Estado ou ao município elaborar projetos consistentes e aderentes às normas técnicas do ente central federal. Importante também é a definição dos preços de bens e serviços que serão executados com os recursos transferidos. Esses preços devem se guiar por valores médios de mercado. O controle por parte do município e do ente repassador das verbas deve ser empreendido com a mesma atenção com que se fiscalizam os empreendimentos com recursos próprios.

Boa parte das influências trazidas pela estrutura histórica regional ainda é sentida na conformação das regiões e estados brasileiros, como herança direta dos ciclos econômicos e da distribuição de riqueza causado por eles.

No momento experimentam-se desequilíbrios que vem sendo corrigidos paulatinamente pelo sistema de transferências de recursos baseadas em um federalismo mais cooperativo do que meramente assistencialista.

Por outro lado, o futuro da federação não deverá ficar previsivelmente refém de práticas de transferências de recursos sem solução de continuidade. A falta de expectativas de desenvolvimento econômico local pode acirrar a dependência dos entes federados ao governo central. Essa dependência, caso se torne desmedida, enfraquece a federação, pois nada adianta a Constituição dividir competências materiais se os entes subnacionais não cumprem suas obrigações básicas em razão da dependência econômica do governo federal.

Seja como for, a questão central é saber se os sistemas de transferências acarretam mais custos ou benefícios para toda a nação. No caso do Brasil, se por um lado foi prevista a divisão da receita tributária da União com estados e municípios, por outro, a competência tributária da União foi ampliada, justamente porque os tributos de viés federal devem ser repartidos em grande parte com os entes subnacionais. Note-se que para compensar as transferências constitucionais é permitido à União instituir várias contribuições sociais, em relação às quais não se prevê repartição com os demais entes federados (CF, arts. 149, 177, § 4º, 195, 212, § 5º, 239, 240). A exceção fica por conta da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a comercialização e importação do petróleo, derivados e álcool combustível (CIDE-Combustíveis). Neste caso o artigo 159, III da Constituição Federal prevê o repasse de 29% da receita da mencionada contribuição para os estados.

Vê-se, pois, que o modelo brasileiro de repartição de receitas tributárias para correção de desigualdades regionais causa impactos econômicos, no ponto em que necessita elevar a carga tributária de interesse da União.

Não obstante esse fato, o modelo federalista do Brasil optou pelo regime de repasses combinado com a previsão de competências tributárias aos entes subnacionais, o que lhes oferece alguma autonomia financeira, embora não seja suficiente em muitos casos à mantença plena de serviços públicos e outros bens sociais.

O ponto nodal é refletir sobre os objetivos últimos das transferências de recursos financeiros no federalismo: se devem buscar reduzir as desigualdades regionais a partir da lógica do repasse para despesas de custeio, ou se deverão viabilizar também a geração de desenvolvimento socioeconômico, o que ensejaria a prática constante de repasses de receitas de capital e o apoio à concepção de políticas desenvolvimentistas na base, isto é, nos municípios.

Tudo indica que o futuro do federalismo fiscal não pode prescindir da ampliação das discussões sobre o modelo de transferências de recursos no contexto do desenvolvimento do país e não somente em se condenar a cooperação da União em favor dos demais entes federados.

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    é advogado e vice-presidente Jurídico dos Correios. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), doutorando em Direito pela UnB e professor nas áreas de Direito Financeiro e Tributário.

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