Justiça comentada

STF e os pedidos de cooperação internacional em matéria penal

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13 de agosto de 2014, 8h01

Spacca
O aumento na utilização dos pedidos de cooperação jurídica internacional em matéria penal, principalmente no combate à corrupção e à criminalidade organizada, demanda a necessidade do Supremo Tribunal Federal definir os requisitos mínimos necessários para a utilização desse importante meio de prova, sob pena da futura prova produzida vir a ser declarada ilícita por ferimento às inviolabilidades constitucionais, tornando importantes investigações inócuas juridicamente com grave prejuízo para toda sociedade.

O pedido de cooperação jurídica internacional em matéria penal, apesar de algumas variações pontuais em face das leis do Estado requerido e dos tratados firmados, apresenta um núcleo legal fundamental (requisitos mínimos) necessário para seu deferimento, em respeito à Constituição Federal e ao ordenamento jurídico: (a) resumo da investigação causadora do pedido, com claras informações que identifiquem o juízo natural com competência para deferi-las; (b) identificação dos investigados; (c) Narrativa específica e objetiva dos fatos investigados, de maneira a demonstrar a necessidade da medi¬da pleiteada no âmbito da investigação específica, a fim de plena observância do princípio da especialidade; (d) a transcrição dos dispositivos legais imputados aos investigados, de maneira a cumprir o requisito da dupla incriminação (mesmo que, por exemplo, na hipótese do Protocolo do Mercosul tenha havido atenuação desse requisito pelo artigo 1º, item “4”); (e) a especificação da assistência solicitada, ou seja, as diligências a serem realizadas; (f) o objetivo da medida pleiteada.

Esse núcleo legal fundamental está presente na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que é utilizada de maneira geral, em especial nos artigos 43 a 50, que foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003 (Convenção de Mérida), tendo o Congresso Nacional aprovado seu texto por meio do Decreto Legislativo 348, de 18 de maio de 2005 e, passado a vigorar no Brasil por meio do Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006.

Igualmente, esse núcleo legal fundamental está em outros importantes tratados comumente utilizados pelas autoridades brasileiras, como o acordo de assistência Judiciária em Matéria Penal celebrado com o governo dos Estados Unidos da América (Decreto 3.810/2001), o Tratado de Cooperação Jurídica em Matéria Penal entre o Brasil e a Confederação Suíça (Decreto 6.974/2000), e Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do Mercosul (Decreto 3.468/2000), somente, nesse último caso, com atenuação da “dupla incriminação”, nos moldes do artigo 1º, item “4”, porém exigindo expressamente respeito ao “juízo natural” e indicação do “texto das normas penais aplicáveis” e também a “identidade das pessoas sujeitas a procedimento judicial”, respectivamente, nos termos do artigo 4º e artigo 6º, item “3, letras ‘e’ e ‘f’”.

O descumprimento dos requisitos normativos para a cooperação jurídica internacional em matéria penal impedem o deferimento da diligência, sob pena de grave ferimento às inviolabilidades constitucionais do investigado e, posterior, decretação de ilicitude da prova, com incomensuráveis prejuízos à persecução penal.

Não raras vezes, o pedido de cooperação internacional é feito genericamente, sem a descrição das condutas dos sujeitos envolvidos, que é requisito essencial exigido pelos instrumentos normativos, e deve ser entendido como identificação das pessoas e respectivos atos praticados cujos direitos podem ser afetados, de forma direta e eventualmente irreversível, pelas diligências apresentadas na cooperação internacional.

Esses pedidos são inviáveis e conhecidos na doutrina como fishing expedition, pois constituem pedidos de cooperação jurídica em matéria penal de natureza ampla e genérica, que não preenchem os requisitos normativos, não trazendo a necessária descrição e que não tem finalidade específica, mas sim a tentativa de obtenção aleatória de algum tipo de prova, contra algum dos envolvidos, para somente depois analisar a sua indispensabilidade e a existência ou não de nexo causal.

Tais pedidos devem ser repelidos para que esse importante meio de prova não perca sua legitimidade, pois não é possível admitir a solicitação de cooperação internacional sem a identificação de sua indispensabilidade à investigação, bem como sem a demonstração do nexo causal das condutas dos investigados com a finalidade da prova pretendida.

Em situações onde os pleitos não apresentavam a presença dos requisitos legais necessários, o Supremo Tribunal Federal recusou pedidos de Cooperação jurídica internacional em matéria penal, por entender que “a cooperação há de se fazer com respeito irrestrito à organicidade de Direito nacional, reafirmando-se a República como revelada por um Estado Democrático de Direito” (HC 85588/RJ, Julgamento: 05/03/2005, Publicação, DJ 16/03/2005 PP-00015), uma vez que, “a organicidade do Direito direciona à tramitação do processo sem atropelo. Atos processuais hão de ser implementados a partir da utilidade e da necessidade. Atos que levem a constrição, especialmente aqueles situados no campo da excepcionalidade, devem fazer-se presentes uma vez indispensáveis à apuração dos fatos”, concluindo que, “é o momento de se marchar sem o desprezo a valores sedimentados, de se reiterar a máxima do Direito segundo a qual os meios justificam os fins, mas não estes, aqueles”, para determinar o retorno dos autos à PGR, para análise dos documentos e provas já juntadas aos autos (Inq 2206-3/ DF, Julgamento: 07/08/2005 Publicação DJ 16/08/2005 PP-00008).

Há, portanto, na esteira dessas manifestações do STF, a necessidade da fixação de parâmetros constitucionais para a utilização de cooperação jurídica internacional em matéria penal, com a imprescindível ponderação entre a necessidade de combate à corrupção e à criminalidade organizada e o respeito às inviolabilidades constitucionais.
 

Autores

  • é advogado e livre-docente em Direito Constitucional pela USP e Mackenzie. Foi Secretário de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Justiça.

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